Torcidas organizadas na América Latina: estudos contemporâneos | Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Temas relacionados a grupos organizados de torcedores de futebol se instalaram mais fortemente na agenda de pesquisadores latino-americanos nos anos noventa, quando já havia um conjunto relativamente vasto de produções sobre o tema na Europa – principalmente sobre os hooligans ingleses, que já constituíam objeto de preocupação constante por parte das autoridades públicas. Evidentemente que isso impactou a produção latino-americana. No entanto, nossos pesquisadores e nossas pesquisadoras têm feito um grande esforço para encontrar seus próprios caminhos interpretativos e oferecer mais substância para compreender o que ocorre nas arquibancadas da América Latina. Compreensão que é fundamental para a criação de políticas públicas mais justas, democráticas e eficazes. Políticas que sejam capazes de transformar, de modo criativo e pacífico, os conflitos no futebol latino-americano.

Sem dúvida, o livro “Torcidas organizadas na América Latina” faz parte desse esforço coletivo, apresentando trabalhos discutidos em dois congressos promovidos pela Asociación Latino Americana de Sociología (Alas), ocorridos em 2013, em Santiago (Chile), e em 2015, em San José (Costa Rica). Trabalhos que foram compilados por dois dos mais importantes pesquisadores das Ciências Sociais latino-americanas e do campo de estudos socioculturais do futebol em particular: os professores Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Onésimo Rodríguez Aguillar. O primeiro é professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da mesma instituição. Já o segundo é professor e pesquisador da Escuela de Antropología de la Universidad de Costa Rica.

Podemos dizer que “Torcidas organizadas na América Latina” é um livro ao mesmo tempo esperado e necessário. Esperado por acadêmicos e apaixonados por esportes em geral, que até o presente momento não contavam com uma compilação tão completa de artigos sobre os grupos organizados de torcedores latino-americanos (mais exatamente, sobre as torcidas organizadas brasileiras e as barras hispano-americanas), ainda que algumas importantes compilações sobre esse tema já existissem. Necessário porque, quando confrontado com essas compilações, o livro se destaca.

Em primeiro lugar, ele se destaca pela sua diversidade temática, pois aborda variados aspectos dos referidos grupos, e não somente a violência – aspecto fundamental para compreender as práticas discursivas e não discursivas de seus membros, mas não o único. Em segundo lugar, pela sua amplitude geográfica, pois apresenta resultados de pesquisas feitas em diversos países latino-americanos, para além dos casos brasileiros e argentinos – os dois principais focos da literatura especializada. Com isso, estimula a reflexão e o debate de ideias, estabelecendo conexões e pontes em um campo ainda fragmentado, marcado por produções isoladas regionalmente e pela falta de troca e contraposições de ideias.

Estruturalmente, “Torcidas organizadas na América Latina” está organizado em nove capítulos, uma introdução, um prólogo e um epílogo. Os dos dois últimos são assinados pelo professor Stefan Rinke e pela professora Verónica Moreira, respectivamente. Já a introdução é do professor Bernardo Borges Buarque de Hollanda. Esta desenvolve uma análise sobre o contexto histórico, geográfico e, sobretudo, intelectual da América Latina para, em seguida, focalizar a temática dos grupos organizados de torcedores. Com isso, ajuda o leitor e a leitora a, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu (2004), compreender o campo a partir do qual e contra o qual os textos foram escritos.

Por sua vez, os capítulos são assinados por renomados pesquisadores de diferentes países e áreas do conhecimento. Esta diversidade é fundamental para a qualidade da obra. Mas não porque ela nos permitiria olhar o fenômeno das torcidas de futebol de diferentes lugares e, com isso, aproximar-se de sua complexidade, como faz crer ingenuamente o ponto de vista perspectivista. Afinal, com isso, teríamos de aceitar que a realidade é independente do sujeito que a observa e que ela permanece inalterada por essa observação (MOL, 2002). Na verdade, o que o livro faz é muito mais radical do que oferecer uma visão mais ampla do fenômeno. Do que multiplicar os olhares sobre ele. Ele multiplica os objetos do conhecimento, fazendo existir o referido fenômeno de diferentes modos. Modos, muitas vezes, ainda não imaginados. Radicalmente novos. Que descontroem uma realidade vista como única, absoluta, total. Modos que, consequentemente, ajudam a desconstruir um dos pilares da ideologia dominante: a naturalização do mundo social.

As múltiplas realidades criadas pelas pesquisas apresentadas no livro, contudo, não são, obviamente, fruto da simples imaginação dos autores. Claro que não! Elas foram forjadas a partir da trama de diferentes elementos: fontes, metodologias, tecnologias, teorias, valores etc. Tramas tecidas de modo rigoroso e criativo. Tramas tecidas por costureiros sensíveis às lógicas internas do campo das torcidas organizadas e barras de futebol e, ao mesmo tempo, aos processos sociais, econômicos e culturais mais amplos, como observou a professora Verónica Moreira no epílogo.

Esta sensibilidade facultou criar realidades muito distintas daquelas estabelecidas a partir de um ponto de vista eurocêntrico, que faz existir uma América Latina como uma alteridade radical ou, no melhor dos casos, como uma extensão deformada da Europa. Aqui, na América Latina, há barras. Torcidas organizadas. Não há hooligans. E não há hooligans não porque não haja grupos de torcedores violentos. Mas simplesmente porque a Inglaterra não é a norma. Mais exatamente, porque nos recusamos a essencializar os esquemas perceptivos, valorativos e explicativos criados em outros contextos. Sem dúvida, analisar nossas barras e torcidas organizadas a partir desses esquemas exógenos constitui uma violência brutal contra elas mesmas, pois é um modo de negar seu protagonismo nas investigações. Elas são, no máximo, aquilo que se distancia ou se aproxima de outros grupos sociais. São o desvio, em outras palavras.

Assim, ao conferir centralidade analítica a nossas barras e torcidas organizadas, recusando-se a cair em pontos de vista eurocêntricos, podemos dizer que o livro não é somente um estudo sobre grupos organizados de torcedores latino-americanos, mas um estudo latino-americano sobre esses grupos. Um estudo que, paradoxalmente, apresenta, cria, perfoma, uma América Latina complexa, cheia de tensões, contradições, ambiguidades e fraturas. E não uma América latina idealizada. Estandardizada. Sem diferenças e divisões internas. A título de exemplo: é muito interessante notar como os sentidos de porras, barras e aguante são apropriados, ressignificados e utilizados de modo distinto em cada lugar. É igualmente interessante notar como as explicações mudam sobremaneira em cada contexto.

Sem dúvida, esse olhar atento para as singularidades locais, este reconhecimento da perspectiva dos de dentro, produz um conhecimento politicamente comprometido com a transformação das relações de exploração e dominação na América Latina, pois desafia e põe em xeque a produção discursiva hegemônica. Este olhar produz, além disso, um conhecimento cientificamente relevante, pois um dos principais indicadores de relevância científica é justamente o desmonte das ideias feitas e a produção de surpresas em relação aquilo que é habitualmente dito – pelas teorias vigentes ou pelo senso comum (GASKELL; BAUER, 2008).

A título de exemplo: hoje em dia, é cada vez mais frequente a proibição da entrada da torcida visitante nos estádios. Esta medida está apoiada na ideia feita de que a principal causa da violência no futebol são os conflitos entre grupos de clubes rivais. No entanto, como indicam muitos dos capítulos, esta ideia é muito simplista, uma vez que desconsidera as rivalidades internas entre grupos ligados ao mesmo clube, que, com frequência, geram lutas sangrentas pelo poder.

Não obstante, talvez, a principal virtude do livro seja desmontar as armadilhas de uma narrativa maniqueísta, que responsabiliza as barras e as torcidas organizadas por todos os males do futebol latino-americano, ao mesmo tempo em que deixa na sombra a responsabilidade de outros atores. Uma narrativa cheia de metáforas e figuras retóricas que estigmatizam os integrantes dos referidos agrupamentos com o rótulo da irracionalidade e da violência. Um rótulo que, em última instância, serve para autorizar o controle social sobre eles ou, até mesmo, sua eliminação.

Cada um dos artigos, a seu modo, ajuda a desmontar essas armadilhas. O primeiro capítulo, assinado pelo professor Sílvio Aragon, discute as relações entre o “novo sujeito neoliberal” e as novas formas das manifestações da violência nos estádios da Argentina. A partir dessa discussão, o autor sustenta que o individualismo e o personalismo dentro das barras têm produzido novas lutas pelo poder.

O segundo capítulo, assinado pelo professor Marcelo Faria Guilhon, aborda o processo de exaltação e demonização das torcidas organizadas brasileiras para, depois, analisar o tratamento legal dispensado a esses grupos. Ao analisar esse tratamento, o autor defende, entre outros argumentos, que tal tratamento é, sob determinados aspectos, inconstitucional.

O terceiro capítulo, assinado pelo professor Miguel Conejo, analisa as barras chilenas e sustenta que o modelo econômico predominante no Chile – que busca, entre outras, coisas o individualismo exacerbado – ajuda a explicar as situações de violência no futebol. Também trata do Plan Estadio Seguro e argumenta que ele é insuficiente para resolver o problema da violência. Segundo o autor, as soluções passam por, entre outras coisas, mudar a infraestrutura dos estádios, melhorar os trabalhos das forças de ordem e aplicar responsabilidades penais aos infratores.

O quarto capítulo, assinado pelo professor Alejandro Villanueva Bustos, discute, a partir de uma perspectiva crítica, os aspectos jurídicos y normativos referentes às barras colombianas. Ao realizar essa discussão, o autor defende, entre outras coisas, a importância do trabalho social com seus integrantes e sua inclusão no processo de elaboração de protocolos de segurança, indicando caminhos alternativos ao paradigma vigente.

O quinto capítulo, assinado pelo professor Onésimo Gerardo Rodríguez Aguilar, analisa as dinâmicas organizativas e estruturais de uma das mais importantes barras da Costa Rica, focalizando as práticas de poder de seus líderes. Entre outros aspectos, esta análise indica que a luta de classe dentro do grupo constitui apenas uma dimensão aparente, um pretexto utilizado por esses líderes.

O sexto capítulo, assinado pelo professor Jacques Ramirez Gallegos, aborda as dinâmicas das hinchadas equatorianas – seus conflitos e práticas – e sustenta que essas dinâmicas não podem ser compreendidas sem considerar três fatores: a questão regional, a profissionalização do futebol no Equador e o surgimento das barras y das identidades futebolísticas.

O sétimo capítulo, assinado pelos professores Roger Magazine e Sergio Fernández González, trata do surgimento, territorialização e criminalização das barras mexicanas. Apesar de reconhecerem a eclosão dos conflitos entre elas, os autores argumentam que a gravidade e a frequência da violência são sobrestimadas, gerando um “pânico midiático”, nas suas palavras. Também indicam que o crescimento das barras é uma reação contra a dominação clientelar exercida pelos diretores dos clubes, membros do governo e outras autoridades.

O oitavo capítulo, assinado pelos professores Aldo Panfichi e Jorge Thieroldt, examina as identidades emocionais, práticas de confronto e rivalidades sociais entre as barras peruanas. Ao realizar este exame, os autores argumentam que esses elementos se converteram em um dos mais importantes mecanismos de diferenciação cultural e social no Perú, atravessando as tradicionais fronteiras de classe, etnia, comunidade e gênero.

O nono e último capítulo, assinado pelo professor Leonardo Mendiondo, tece alguns apontamentos sobre as barras e torcedores uruguaios, explorando algumas dimensões operacionais do conceito de identidade social. Entre outros argumentos, sustenta que o futebol é uma referência duradoura para os torcedores, gerando laços de lealdade e de adesão mais estáveis do que outros campos sociais.

As reflexões feitas nesses noves capítulos e sintetizadas aqui fazem com que possamos dizer, com segurança, que estamos diante de um daqueles livros que são de “leitura obrigatória”. Um livro que, com o perdão da metáfora realista, não somente ilumina a lógica das torcidas latino-americanas, mas também expõe as entranhas, as veias abertas, da América Latina. Um livro que cria uma América Latina complexa, fraturada, mas também potente. Um livro que desafia o senso comum e também as ideologias cristalizadas. Um livro que, por isso mesmo, é munição nas mãos dos dissidentes (IBAÑEZ, 2001).

Referências

BOURDIEU, Pierre. Esboço para uma auto-análise. Lisboa: Edições 70, 2004.

GASKELL, George; BAUER, Martin W. Para uma prestação de contas públicas: além da amostra, da fidedignidade e da validade. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 445-469.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; AGUILAR, Onésimo Rodriguez (Org.). Torcidas organizadas na América Latina: estudos contemporâneos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.

IBAÑEZ, Tomás. Municiones para disidentes: realidad-verdad-política. Barcelona: Gedisa Editorial, 2001.

MOL, Annemarie. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke Univesrtity Press, 2002.


Resenhista

Felipe Tavares Paes Lopes – Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba e pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: lopesftp@gmail.com


Referências desta Resenha

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; AGUILAR, Onésimo Rodriguez (Orgs.). Torcidas organizadas na América Latina: estudos contemporâneos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017. Resenha de: LOPES, Felipe Tavares Paes. “Torcidas organizadas na américa latina”: contribuições científicas e políticas de um livro latino-americano sobre torcidas de futebol. Recorde: Revista de História do Esporte, v.10, n.2, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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