A recente publicação em língua espanhola do livro Todos estos años de gente: historia social, protesta y política en América Latina (2020) nos convida a refletir sobre um campo historiográfico há muito referenciado em nossas academias, mas que segue em grande e profícuo movimento: a História Social e seus sujeitos. Organizado por Andrea Andujar e Ernesto Bohoslavsky, o livro reúne renomados historiadores com diferentes abordagens, temáticas e teóricas, provocados pelas indagações sugeridas na mesa redonda La historia y la protesta en América Latina, que integrou a segunda edição do Congreso Internacional de la Asociación Latinoamericana e Ibérica de Historia Social – ALIHS. O encontro ocorrido em 2017, na cidade de Buenos Aires, aparece agora sob uma proposta atenta aos debates historiográficos que, perfilados pela diversidade latino-americana, convoca-nos a pensar as intersecções entre os movimentos sociais e aqueles que os estudam, com especial ênfase na relação humana experienciada no tempo. Os historiadores Andujar e Bohoslavsky, que lançaram seu livro pela Editorial Universidad Nacional General Sarmiento, convocam para o palco principal do debate o fio invisível que conecta as escolhas individuais e as coletivas envolvidas na história dos protestos, resultando num belo exercício crítico sobre memória e ação política.
Nesse ponto, o livro atinge seu máximo propósito: questionar como o reconhecimento, por parte dos acadêmicos, dessa dupla dependência entre narrativa e experiência impõe ao fazer historiográfico uma responsabilidade no presente e no futuro da nossa sociedade. É simbólico que Andujar e Bohoslavsky tenham convidado para compor tal argumento pesquisadores que não participaram do congresso, mas que ajudam a adensar os diferentes embates que precisam enfrentar os intelectuais da América Latina na atualidade. As temáticas em torno do movimento negro, dos coletivos feministas, das reivindicações homossexuais, da intelectualidade indígena e dos protestos campesinos fazem do livro não apenas atual, mas necessário, principalmente diante dos retrocessos que abalizam hoje a agenda de vários Estados latino-americanos. Nesse sentido, os usos da memória deixam de ser privilégio acadêmico e encontra respaldo no espaço público, permitindo que o exercício da história do presente seja encarado como denúncia e ação social.
A linha investigativa da obra é a análise das transformações do debate historiográfico a respeito dos movimentos sociais latino-americanos na segunda metade do século XX e começo do XXI, à luz das trajetórias dos próprios historiadores e suas institucionalidades, pois, como diz Silvia Hunold Lara, a produção historiográfica está diretamente envolvida com as importantes questões políticas do seu tempo. Mais especificamente, o contexto integrador dos capítulos é a renovação teórico-metodológica experienciada pela História Social durante o período das aberturas democráticas nos anos 1980 e 1990, momento em que a profissionalização das Ciências Humanas oferece certa autonomia discursiva para academias da América Latina. Aliás, esse recorte temporal perpassa a própria experiência formativa e atuante dos colaboradores deste livro, o que torna evidente que o tempo presente também pode ser o da coincidência entre o período de vida dos sujeitos em estudo e o do pesquisador, conforme atesta Rodrigo Laguarda. A história social revela-se como repositório de encontros, uma ponte sustentada pela retroalimentação de repertórios.
Desse modo, o livro de Andujar e Bohoslavsky procura desarticular qualquer proposição hierárquica que possa existir entre o historiador e seu objeto de estudo, conforme pondera Carlos Illades, de modo que define como personagens a militância, a historiografia e a ação pública. Embora ancore seu eixo argumentativo no lugar de fala do historiador – afinal, essa obra é resultado de um diálogo acadêmico -, o livro se pergunta pelas fissuras dos lugares historiográficos, o que pode ser apreendido já no capítulo de abertura, Tarea y promessa de la imaginación histórica, com autoria do historiador espanhol José Antonio Piqueras. O autor apresenta um mapa dos grandes entraves da História Social, cujas balizas remontam à virada do século XIX para o XX, momento em que seria anotada na base da análise histórica a superação do abismo entre as expectativas teóricas e a história real.
Pelo fato de o texto de Piqueras trazer referenciais a teóricos essencialmente europeus e estadunidenses, entendemos que ele inaugura o livro para fazer-se compreender a necessidade de descentralizar tais marcos. A aposta do livro é batalhar pela narrativa da História Social latino-americana, assumindo a potência das especificidades de cada movimento social, que estabeleceram franco diálogo com as produções científicas locais.
Cinco historiadores latino-americanos compõem a obra Todos estos años de gente: os mexicanos Carlos Illades e Rodrigo Laguarda; a argentina Mirta Zaida Lobato; a brasileira Silvia Hunold Lara; e a boliviana Rossana Barragán Romano. Romano e Laguarda foram os historiadores convidados posteriormente para compor o livro e corresponderam ao desafio, assim como os demais, de apresentarem as perspectivas de estudo no campo social desde suas terras natais. Enquanto Laguarda discorre sobre a contribuição do historiador para o desbravamento de uma área de estudo, Illade apresenta a força da História Social mexicana na leitura crítica dos protestos do presente; Lobato enfatiza a construção do seu lugar como historiadora numa argentina arregimentada pelas múltiplas reivindicações de coletivos feministas, do mesmo modo que Lara e Romano definem a força com que os movimentos sociais se impuseram, no Brasil e na Bolívia, à produção do conhecimento científico.
Correspondendo ao tom provocativo dos organizadores, Carlos Illades reforça em seu capítulo Algunas reflexiones sobre la historia y la protesta social a indagação sobre como a história social pode contribuir para o conhecimento do presente na América Latina, consolidando sua preocupação em torno do brutal episódio sobre os 43 estudantes desaparecidos em Ayotzinapa, no ano de 2014 no México. O autor chama atenção para o fato de que a história do presente desvela um processo, sendo que os próprios movimentos sociais reivindicam o passado como forma de legitimar suas demandas que geralmente têm como destinatário comum o Estado. Illades confirma nessa definição o próprio compromisso do historiador para com o debate público, uma vez que ele é responsável por articular a complexidade da diversidade política e cultural do país e, assim, aproximar as diferentes facetas dos protestos. Ao trazer para o debate o entrecruzamento de movimentos como os dos padres de Ayotzinapa, dos neozapatistas, dos ejidarios de Atenco e das madres de mayo, o autor nos mostra a possibilidade de entendê-los sob o signo dos direitos humanos, uma vez que revelam na violência estatal a incapacidade histórica dos Estados incorporarem a diversidade étnica e cultural. Portanto, Illades defende nesse compromisso acadêmico a não despolitização dos objetos de estudo, de modo a inviabilizar a esterilização das demandas atuais da sociedade.
Nesses mesmos moldes críticos, Mirta Lobato abandonará em seu capítulo Mujeres, protestas e historiografia a preponderância da Estado para pautar seus estudos sobre as demandas dos coletivos de mulheres na Argentina, entendendo que tais movimentos acabaram se impondo ao saber científico. Invertendo, portanto, a lógica discursiva que primaria pelas duas institucionalidades em questão, a estatal e a acadêmica, a autora busca nos fundamentos dos protestos feministas o surgimento de novas ferramentas metodológicas que foram sendo paulatinamente incorporadas ao escopo analítico dos historiadores. Se as tensões do mundo do trabalho chegaram definitivamente para a história em fins dos anos 1980, Lobato enfatiza a necessidade pungente de desmasculinizá-la. A autora apresenta em sua argumentação um quadro de ações públicas a partir das quais a História Social precisou se abrir para os temas das questões de gênero. Ou seja, os movimentos feministas acabam por desestabilizar a própria ideia de protesto, porque impõem uma revisão à história operária que apagou a especificidade feminina dos cenários de lutas e de reivindicações. Destacando as mulheres que sempre estiveram ao lado dos homens como piqueteiras, mas também como proporcionadoras do bem-estar coletivo que viabiliza os protestos, Lobato aponta uma mudança na topografia do protesto que, assim, garantiu a transformação das formas, das práticas e das palavras que envolvem o universo da pesquisa histórica.
Com o propósito de transitar por entre as convulsões vivenciadas no seio dos movimentos sociais, Rodrigo Laguarda apresenta em seu capítulo Sobre los homossexuales como sujetos de interés en la academia mexicana um viés acadêmico dos anos 1990 interessado em atrair uma faceta progressista e democrática das reivindicações homossexuais, garantindo diversidade ao tradicional campo da História Social. Em seu relato, Laguarda nos oferece uma imersão formativa pelas sinuosidades dos gay studies, revelando a vontade pessoal de desbravar uma temática absolutamente silenciada pelos historiadores em seu país. Sua aposta teria evidenciado a circulação elitista do conhecimento, não só no México, mas também entre os mexicanistas estrangeiros que esbarram nos estereótipos das nacionalidades latino-americanas. O autor defende, portanto, que a politização do pessoal consolida o envolvimento direto do historiador com seu objeto de estudo, assim como viabiliza a abertura das fronteiras acadêmicas ao amplo cenário social.
De forma a relativizar a dinâmica dessa interação, a historiadora Silvia Hunold Lara, em seu capítulo Historia de la esclavitud, movimentos sociales y políticas públicas contra el racismo en Brasil, baseia sua reflexão na ponderação dos diálogos estabelecidos ao longo do tempo entre militantes e historiadores, reconhecendo que a própria historiografia registra as tensões existentes nessa relação. Desde o início do século XX, diferentes instâncias se debruçaram nos significados do passado escravocrata para refletir sobre a formação social do Brasil contemporâneo, ainda que fosse para negar o racismo como um problema fundamental da nossa sociedade. A autora observa que desde os anos 1930, com a consolidação de uma intelectualidade branca e elitista que se apoiava na tese freyriana de democracia racial, as universidades inibiram a presença do movimento negro e suas reivindicações, embora ele nunca tenha abandonado a cena pública. Os militantes começam a se aproximar da academia apenas nos anos 1970, mas o imperativo do contexto ditatorial adia para o período da redemocratização o encontro. Lara apresenta nessa tessitura a possibilidade de esgarçar o conceito de liberdade, fruto de uma revisão histórica advinda do próprio movimento negro para fugir da dualidade “escravos” e “livres” que rotulam as relações sociais até a atualidade. Na verdade, a historiadora indica como as lutas da militância negra levam até a academia seus ganhos externos e, assim, impõe suas pautas. A consolidação da obrigatoriedade, por exemplo, do ensino da história e da cultura afro-brasileira a todas as instituições de ensino do país é um ganho dos protestos abraçado pela academia, que devolve para a comunidade tal ação política em formato de cotas universitárias.
No último capítulo do livro, De puentes y precipicios. Una perspectiva sobre los vínculos entre historia/s y movimientos sociales en Bolivia (de 1970 a la actualidade), a historiadora Rossana Barragán Romano leva essa reflexão sobre as trocas recíprocas e irregulares entre academia e movimentos sociais para o contexto boliviano, que traz à tona as dinâmicas do sujeito social indígena. Mais uma vez, temos em mãos a prerrogativa de um pensamento binário, que divide a sociedade entre brancos e indígenas e que, portanto, não dimensiona a pluralidade das relações sociais, encobrindo as premissas racistas presentes em projetos políticos e econômicos na história do país. Nesse sentido, Romano salienta a importância de pensar os muitos anos de protestos indígenas na Bolívia que, embora atravessem toda a experiência do século XX, não são respaldados na tardia institucionalização universitária boliviana. Com a preponderância de intelectuais acadêmicos marxistas nos anos 1970, cuja temática girava em torno de proletários e de mineiros, a autora indica que a questão indígena estava posta como uma questão infrapolítica. No entanto, para além da academia, existia um amplo fortalecimento da comunidade indígena em sua luta por reconhecimento, que se empenhava em desmistificar a ideia da inércia. Seria apenas nos anos 1980 que a ponte entre o movimento indígena e a produção intelectual seria construída, com a emergência da figura do intelectual indígena. Nas décadas seguintes, os debates sobre etnicidade e diversidade cultural povoam os temas de estudos acadêmicos, resgatando a memória das diferentes comunidades étnicas. Para anotar o impacto dessa conjuntura recente na sociedade boliviana, Romano destaca a conquista da titulação de terras comunitárias de origem que, inclusive, foi dirigida por um antropólogo. A intelectualidade indígena roga para si um importante papel social, como ativista e assessora, ainda que precise ampliar seu leque de lutas, como a incorporação das questões de gênero.
O percurso pela história social sugerido pelo livro Todos estos años de gente entrecruza histórias e memórias de modo a explorar a potência da experiência latino-americana, a partir da constatação da diversidade e da autenticidade dos movimentos sociais e historiográficos. Definitivamente, os últimos dois capítulos extrapolam essa aposta do livro, pois constatam a importância sentimental que conecta o historiador a seu objeto de estudo, sintetizando a implacável autoridade do presente tanto para as áreas do conhecimento, quanto para as da ação social. Se os protestos na América Latina são plurais, também os são os saberes e seus usos.
Referências
ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina I. Buenos Aires: Katz, 2008.
ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina II. Buenos Aires: Katz, 2010.
Resenhista
Ivıa Minelli – Universidade Estadual de Campinas. Departamento de História. Campinas, SP. E-mail: viaminelli@gmail.com
Referências desta Resenha
ANDUJAR, Andrea; BOHOSLAVSKY, Ernesto (Eds.). Todos estos años de gente: Historia Social, protesta y política en América Latina. Los Polvorines: Universidad Nacional de General Sarmiento, 2020. Resenha de: MINELLI, Ivıa. A História e o protesto Fios invisíveis entre movimentos sociais e História Social. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 37, n. 75, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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