Joan Scott, professora do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Estados Unidos, tem se dedicado, há tempos, ao estudo da epistemologia do estudo da História, a partir de um ponto de vista crítico. Este volume retoma considerações de Scott e ele desenvolve outras, de forma original e criativa, a começar pela definição, logo no início, da História como crítica, com uma citação de Theodor Adorno sobre a importância da crítica, definida por “resistir às opiniões estabelecidas e às instituições existentes… a democracia define-se pela crítica, nada menos”.
Para além da Escola de Frankfurt, Scott volta-se para história de Michel Foucault, na medida em que a crítica se exerce não mais na busca de estruturas formais de caráter universal, mas na pesquisa histórica sobre como nos constituímos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos. A busca de como e de que maneira, os homossexuais ou os trabalhadores se tornaram um problema abre novas oportunidades de conhecimento. A “verdade”, como um sistema de padrões compartilhados, deixa de ser uma entidade transcendente, como pressupõe a História positivista. Scott questiona a História normativa, fundada no conceito de prova. Já em 1989, Lionel Gossman mostrava que “uma narrativa determina a prova tanto quanto a prova determina a narrativa”. Ela descreve a obra de Thompson como brilhante, ao pretender dar historicidade à categoria da classe social, mas acaba por tomá-la como uma essência, pois o caráter discursivo acaba por evanescer. A experiência é, muitas vezes, descrita em termos de uma identidade essencializada, como se houvesse identidades fixas, fatos sociais tomados como naturais. A natureza aparece no sentido corriqueiro de “descrição do que é, sempre foi e sempre será”, não no sentido original, grego physis como mudança. Isso aparece em descrições como o trabalhador, o camponês, a mulher, o negro, que mascaram os mecanismos de diferença na organização da vida social. Cada categoria considerada como fixa contribui para consolidar o processo ideológico da construção do sujeito, tornando o processo menos aparente, ao naturalizar e não analisar as particularidades, diferenças e mutações.
Scott, portanto, considera que se trata de mudar o objetivo e a filosofia da nossa leitura da História, de passar de uma prática que leva à naturalização da experiência e que acredita numa relação não mediada entre as palavras e as coisas a outra que considera todas as categorias analíticas como sendo conceitos contextuais, contestados e contingentes. Assim, as identidades não existem antes de sua invocação política e do caráter estratégico dessa invocação. As categorias que, de forma aparente, se enraízam no corpo (como gênero e raça) ou na herança cultural (a origem étnica, a religião), não são, de fato, ligadas a tais raízes senão de maneira retrospectiva. Ao contrário, conceitos como gênero, raça, origem étnica, tal ou qual religião, são históricas. Não apenas como disse Hobsbawm, as tradições são inventadas, mas também as identidades.
Joan Scott, de forma concentrada e densa, trata dos principais desafios da historiografia, nos dias atuais. As identidades sociais, em constante mutação no nosso mundo contemporâneo, com sua fluidez e inconstância, desafiam as interpretações normativas e positivistas. As narrativas constroem conceitos e definem práticas, assim como as normas de comportamento definem o que seriam desvios a serem combatidos e corrigidos. A historiografia contemporânea tem sido afetada, de forma muito direta, primeiro, pelos movimentos sociais anti-normativos e críticos e, em segundo lugar, pela superação da noção de conhecimento puro, objetivo e perfeito, como se o historiador fosse um juiz onisciente em busca de provas irrefutáveis. Esta obra, assim outras já traduzidas ao português, como Keith Jenkins e Alun Munslow, contribui para uma discussão epistemológica madura da disciplina histórica
Pedro Paulo A. Funari – Universidade Estadual de Campinas.
SCOTT, Joan W. Théorie critique de l’histoire. Identités, expériences, politiques. Paris: Fayard, 2009. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Dimensões. Vitória, n.25, p. 286-287, 2010. Acessar publicação original [DR]
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