Onde reside a soberania haitiana? A questão é sempre urgente durante cada virada da espiral da história política haitiana, com suas crises e a consequente insistência na busca de “soluções” que eternamente pioram o problema que pretendem resolver. O que é difícil – mas necessário quando se fala da urgência do momento – é também encontrar, de alguma forma, um caminho para guiar nossas ações por uma compreensão da história profunda do agora. No Haiti, como em toda parte, mas nem sempre com a mesma intensidade, a tirania das rotinas interpretativas e das categorias sem saída limitam o presente, frequentemente nos impedindo de ver o que está bem em nossa frente.
Isso não surpreende, dado que vivemos na sequência de dois séculos de retórica de contenção, de confusão intencional sobre a natureza da soberania haitiana. Como Karen Salt mostra em seu livro The Unfinished Revolution, o trabalho de resgatar e articular essa soberania tem sempre esbarrado numa espécie de labirinto de premissas raciais sobre uma impossibilidade. E como Johnhenry Gonzalez nos mostra em Maroon Nation, isso se dá em grande parte porque aquilo que estava sendo afirmado pela maioria da população haitiana, dentro e através dessa soberania, representava um repensar e um retrabalhar radicais, e um desafio para o mundo como ele era e para entendimentos impostos sobre como o mundo deve ser.
A chave para essa história, como numerosos estudiosos argumentam cada vez mais, está no Haiti do século XIX, um período ainda menos estudado do que a Revolução Haitiana, mas terreno cada vez mais fértil para reflexões. Estudos pioneiros de Marlene Daut e Deborah Jenson, e um livro recente de Chelsea Stieber, enriqueceram profundamente nossa compreensão da história intelectual e literária do Haiti no início do século XIX.1 A pedra de toque para esse trabalho é um conjunto de escritos oitocentistas de figuras como Beaubrun Ardouin, Juste Chanlatte, Thomas Madiou e o Baron de Vastey, mas o livro de Stieber expandiu marcadamente nossa percepção dos participantes e a escala da cultura impressa no Haiti durante aquele período.
O desafio continua sendo como interpretar a interface entre a palavra escrita e a realidade social no Haiti do século XIX, período em que ocorreu uma das mais importantes e impactantes transformações nas áreas rurais haitianas, e que Jean Casimir chama de “sistema da contra-plantation”.2 De fato, esse sistema de um certo modo criou seus próprios arquivos: a língua kreyòl haitiana, incluindo um corpo de provérbios que são parte do nexo de um pensamento filosófico e político expresso através da língua; a prática do Vodu, que por meio de preces, canções, objetos, movimentos e espaços carrega filosofia e história; práticas de cultivo e de posse da terra que são também expressão de visões e princípios sociais. Porém, são todas coisas em larga medida não escritas. E a tirania do texto escrito no campo da História, embora não seja absoluta, permanece bastante forte. O que às vezes cria uma espécie de impasse no estudo do Haiti, em particular, embora, de novo, isso não seja peculiar a seu contexto de forma alguma.
Salt e Gonzalez navegam por essas questões de diferentes formas, com vozes e estilos interpretativos mui diferentes. O livro de Salt é organizado como uma extensa meditação e interrogação sobre os sentidos, contradições e encenações da soberania. Seus capítulos estão focados em torno de vários corpos distintos de textos relacionados a diferentes aspectos do século XIX, inclusive uma interessante série de escritos acerca de um projeto do presidente Jean-Pierre Boyer convidando afro- -americanos a migrarem para o Haiti e um conjunto de materiais acerca do pavilhão haitiano na Exposição Universal de Chicago, em 1893, onde o já idoso Frederick Douglass fez um famoso discurso sobre o país. Em sua rica introdução Salt articula seu ambicioso projeto, que é o de explorar “como a soberania negra haitiana se movimentou pelo mundo atlântico e o transformou”. Uma das particularidades das demandas feitas por vários líderes e intelectuais que ela estuda é que a deles seria “uma soberania que celebra, mesmo quando rejeita, o status marginal” do Haiti. A soberania haitiana, segundo ela, é essencialmente incompleta, ainda em processo, constituída a partir de uma “visão futura de liberdade e poder” que sempre opera em meio a constrangimentos profundos, embora mutantes. A perspectiva aqui é generosa, “se abrindo para um terreno político de descobertas”, como ela coloca, terreno que é parcial, mas que ela oferece como convite a uma maior exploração. Ela também insiste na urgência e relevância dessas reflexões. “Assombrações raciais do passado têm reencarnações no presente; e futuros imaginados, mas não terminados no passado – como a soberania negra do Haiti – carregam para o presente o peso de sua incompletude” (p. 8, 14-15, 25, 40).
Muita da tensão na análise de Salt gira em torno do significado de “soberania negra”. “Negro não pode ser um país”, ela escreve, “mas, para aqueles que vivem suas vidas como um ‘estranho’ dentro de casa, pode ser a coisa mais próxima que têm de alguma coerência” (p. 29). O livro começa com uma citação de Paul Gilroy em The Black Atlantic, especificamente uma nota de rodapé na qual ele evoca apenas de passagem a necessidade de um “pensar renovado sobre a importância do Haiti”.3 Nesse sentido, o trabalho de Salt se junta ao de Marlene Daut em seu livro sobre o barão de Vastey, e o que ela chama de “humanismo atlântico negro”, ao tratar dos modos com que o Haiti moldou os contornos do pensamento e da prática em torno da negritude no século XIX.4 Como no trabalho de Daut e no de Chelsea Stieber, é vital lembrar da riqueza e complexidade do pensamento e da prática política haitianos no século XIX, e de sua presença central no interior de correntes históricas mais amplas.
Se o trabalho de Salt é sobre um conjunto de conflitos em torno da possibilidade de soberania para o Haiti num contexto atlântico alargado, Gonzalez destaca, ao contrário, os principais conflitos internos sobre os sentidos da soberania no interior mesmo do Haiti. Maroon Nation discute “as origens das instituições sociais características do país: a lavoura familiar, os mercados públicos e as sociedades religiosas secretas”. A energia central da obra é investida em mostrar que aquelas instituições e o mundo do Haiti rural oitocentista “foram criações deliberadas de um povo com a mente independente, que historicamente beneficiou-se de uma paisagem impenetrável e ilegível do ponto de vista fiscal para fugir do trabalho forçado, da tributação predatória e da repressão estatal”. Na concepção de Gonzalez, o Haiti independente é o clímax de um padrão mais dilatado de quilombagem nas Américas: enquanto a Jamaica e o Brasil tiveram “uma história de enclaves quilombolas, eu argumento que o Haiti representa o único exemplo de uma nação quilombola, um lugar onde o fenômeno quilombola veio a caracterizar o país inteiro”. O resultado foi a criação de um ambiente que, “para pessoas negras no século XIX”, representou “a coisa mais próxima a um país livre em qualquer parte no Novo Mundo” (Gonzalez, p. x, 2, 12, 47).
Maroon Nation é sustentado pela teorização fundamental de Jean Casimir, que argumentou em favor de uma compreensão radicalmente diferente do Estado e da soberania no Haiti, enraizada na experiência da própria população ao invés de uma sedimentação das projeções e categorias coloniais que, ele acha, têm de fato dominado muito das análises feitas tanto dentro quanto fora do país.5 Lançando mão de um conjunto particularmente rico de documentos obtidos em arquivos na França, nos Estados Unidos e, mais importante, no Arquivo Nacional do Haiti, Gonzalez documenta esse processo como uma história de lutas intensas entre as populações rurais e sucessivos governos haitianos. Foi “a vitória de antigos escravos sobre elites sucessivas, cada uma das quais, por sua vez, falharam em reconstruir uma economia de plantation estável e lucrativa”. Como tal, o trabalho de Gonzalez é também uma análise poderosa da história do Estado haitiano, que o autor descreve sem rodeios como um que “demandava tudo sem oferecer nada”. E o livro é também uma análise da sedimentação de perspectivas e atitudes em relação ao Estado num país em que “a população nunca foi socializada para acreditar na legitimidade de qualquer instituição oficial ou de elite” (p. 16, 31).
Considerados juntos, os livros de Salt e de Gonzalez levantam questões cruciais para considerações contemporâneas sobre a natureza do Estado e da soberania no Haiti. Salt enfatiza as maneiras pelas quais a geopolítica racializada do mundo atlântico constantemente questionou e minou demandas por soberania negra, forçando um conjunto de respostas sempre imaginativas da parte de seus defensores. Gonzalez aponta as maneiras pelas quais os projetos da população haitiana, sua própria insistência na soberania sobre seus corpos e seus futuros, de muitos modos têm sido e permanecem ilegíveis se julgados segundo “o ideal da democracia liberal e os padrões europeus ou norte-americanos de institucionalidade e governança” (p. 47). Essa ilegibilidade é um impasse intelectual, que é também político, porque ela torna particularmente difícil analisar, e portanto confrontar, os tipos de crise que vemos hoje ― e os consequentes e aparentemente intermináveis chamados a uma nova rodada de ataques à soberania haitiana. Salt e Gonzalez não oferecem soluções imediatas, mas decerto oferecem um deslocamento do terreno intelectual, uma abertura que pode deitar as fundações para uma abordagem diferente.
Notas
1 Marlene Daut, Tropics of Haiti: Race and the Literary History of the Haitian Revolution in the Atlantic World, 1789-1865, Liverpool: Liverpool University Press, 2015; Deborah Jenson, Beyond the Slave Narrative: Politics, Sex and Manuscripts in the Haitian Revolution, Liverpool: Liverpool University Press, 2011; Chelsea Stieber, Haiti’s Paper War: Post-Independence Writing, Civil War, and the Making of the Republic, 1804-1954, Nova York: New York University Press, 2021.
2 Jean Casimir, La cultura oprimida, Cidade do México: Nueva Imagen, 1981; Jean Casimir, The Haitians: A Decolonial History, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2020.
3 Paul Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness, Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 17.
4 Marlene Daut, Baron de Vastey and the Origins of Black Atlantic Humanism, Nova York: Palgrave Macmillan, 2017.
5 Casimir, La cultura oprimida; The Haitians.
Resenhista
Laurent Dubois – University of Virginia. https://orcid.org/0000-0002-7151-9673
Referências desta Resenha
SALT, Karen. The Unfinished Revolution: Haiti, Black Sovereignty and Power in the Nineteenth-Century Atlantic World. Liverpool: Liverpool University Press, 2019. GONZALEZ, Johnhenry. Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti. New Haven: Yale University Press, 2019. Resenha de: DUBOIS, Laurent. Haiti soberano. Trad. da resenha João José Reis. Afro-Ásia, n. 64, p. 636-641, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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