Num mundo dominado por forças hostis, são sempre muito bem vindas pelos progressistas as obras em que a guerra e o imperialismo são criticados. Porém, a crítica não pode deixar de fazer a “crítica da crítica”, a troco de permitir reforçar as posições dos adversários às custas das próprias perspectivas que se julgam contestadoras – como mostrou uma vez Marx na crítica ao Programa de Gotha.
Chegou ao Brasil, praticamente no mesmo momento de seu lançamento nos Estados Unidos, a obra The Three Trillion Dollar War – The True Cost of Iraq Conflict, de co-autoria de Joseph Stiglitz e Linda Bilmes. Joseph Stiglitz é um economista de renome mundial, e dispensa maiores apresentações. Já ela, além de professora da Harvard University’s Kennedy School of Government, trabalhou em cargos do governo norte-americano, tendo sido, entre outros, secretária do Department of Commerce.
Objetivo explícito do livro: recalcular e reavaliar (evidentemente para pior) os custos e impactos iniciais estimados pelo governo norte-americano da invasão e destruição do Iraque. O enfoque visa abordar não apenas o orçamento do governo federal, mas outros aspectos mais gerais, principalmente as decorrências macroeconômicas e sociais advindas de mais uma guerra. Daí, faça-se justiça: o livro contribui para reforçar no discurso econômico (a) uma avaliação crítica da guerra, como um indício de que sempre há caminhos alternativos, e (b) uma avaliação da guerra em termos mais abrangentes do que os limitados apenas aos gastos orçamentários ou nas estatísticas econômicas.
Neste sentido, o enfoque do livro de Stiglitz e Linda Bilmes é interessante, porque nele tentam-se métodos contábeis específicos para o estudo de tais impactos, que não estão apenas no plano do orçamento do governo, como o pagamento de juros pela dívida pública etc.. Exemplo: mensurar uma vida perdida na guerra em termos de dólares. Isto pode soar brutal, mas em termos econômicos é importante como estimativa de quanto os mortos poderiam ter contribuído para a economia de cada nação, em termos de trabalho e produção (num sentido mais amplo: produção física, intelectual etc.). De fato, os dois negam-se a atribuir à perda de uma vida iraquiana custos menores para o Iraque do que os custos da perda de uma vida norte-americana para a economia dos Estados Unidos. Assim, mensuram as perdas das vidas iraquianas em dólares, mesmo que isto não seja correto de um ponto de vista meramente econômico. A estrutura de capítulos espelha então esta metodologia; numa tradução livre, eles são: “São realmente 3 trilhões?” (cap.1); “Os custos para o orçamento da nação” (cap.2), “O verdadeiro custo de cuidar de nossos veteranos” (cap.3); “Custos que o governo não paga” (c.4), “Os efeitos macroeconômicos do conflito” (c.5), “Conseqüências Globais” (c.6), “Saindo do Iraque” (c.7), “Aprendendo mais de nossos erros: reformas para o futuro” (c.8).
Além disso, a leitura é interessante porque dá detalhes que as mídias insistem em não revelar (motivos…?). Exemplos: privatização do exército norte-americano, com milícias privadas organizadas por empresas específicas norte-americanas no lugar de soldados tradicionalmente recrutados, devido às dificuldades de recrutamento e custos menores; superfaturamento de obras de reconstrução, onde as firmas locais são sistematicamente preteridas em relação às do país invasor; etc.
Mas, como se diz, neste mundo nem tudo são flores, ou acertos… Vamos a alguns comentários críticos a pontos específicos e à metodologia da obra, que comprometem em demasia o projeto dos autores.
Na introdução, inicialmente vemos a perspectiva bisonha costumeira de muitos economistas yankees ao definir a própria natureza dos acontecimentos: a guerra é tratada como “falha” (The Failure of Iraq) e “erro” – e não como um fruto de interesses das corporações em sua política de cooptar as políticas públicas do governo. Disto resultam estultices sem par. Por exemplo: na página xix, ainda na introdução, lê-se: “Cientistas sociais tentam entender as fontes sistemáticas destas ‘falhas’ e procurar reformas para reduzir a probabilidade de ocorrerem e para mitigar suas conseqüências.” Qual! A linguagem é bonita, mas só. Nem a Lockheed Martin, nem a Halliburton certamente consideram “erradas” ou “falhas” as compras milionárias de armas e mísseis Tomahawk despejados nas casas e infraestrutura iraquianas. A política econômica, como toda ação social, nunca é um “erro”; ela deriva da intenção objetiva dos grupos sociais. A vida não é um “erro”; ela é, apenas. Ela só é um “erro” no sentido do julgamento de valor que se faz em relação a ela, face àquilo que poderia substituí-la; nunca pode ser em si mesma ser classificada como “falha”, como fazem os autores. Por acaso julgam que há uma vida realmente verdadeira e “sem erros” oculta por detrás dos fatos?
Segundo lugar: soa bastante curiosa a preocupação dos autores pelos custos que envolverão “repor o desgaste das armas”. Eles contam isto como um dos elementos que irão levar aos três trilhões, classificando-os como imprescindíveis, mas não declarados oficialmente pelo governo. (Os trechos onde isto aparecere parecem vir especialmente de Linda Bilmes, pelo estilo da escrita; mas desde que Stiglitz os aceitou, assume o fardo também…) Quando falam em tom de alarme em “the cost of replacing military equipment, weaponry, and inventory, and restoring the armed forces to their prewar strenght” (p.34), sub-repticiamente estão legitimando o poder das forças armadas na política econômica, quando deveriam justamente, coerentemente com a lógica da obra, criticá-los! Quer dizer: porque as armas e seu desgaste têm de ser repostos? Não se trata de diminuir a militarização? É claro que os autores estão tentando construir um cenário que reúna muitos simpáticos à causa de suas críticas, inclusive entre os que dificilmente vão simpatizar com o “recado”: lamentavelmente, pode-se ler que Stiglitz e Bilmes não são tão críticos do complexo-industrial, como poderia sugerir sua obra.
“We will have to invest heavily on the troops to restore their prewar levels of strenght, fitness and readiness”. (p.43)
Em terceiro lugar: a avaliação do que significa a guerra e as forças armadas em termos sistêmicos. “Hoje nenhum economista sério sustenta que a guerra é boa para a economia” (p.115). Evidentemente, novamente o problema da valoração, da categorização objetiva. A guerra não é “boa” para os soldados que vão à guerra; não é “boa” para os que necessitam do sistema público de saúde; não é “boa” para os iraquianos. Ela talvez ainda não seja “boa” para os acionistas das empresas de Dick Cheney, que podem lamentar que a alta de seus papéis se dêem “infelizmente às custas de algumas milhares de vidas”. Mas é lucrativa, e é o que basta.
Mas, certamente, os gastos federais com as empresas de guerra permitem realocar a poupança que as corporações não alocam devido à tendência para a queda dos lucros; permite realocar a poupança dos setores mais ricos que conseguem poupar; permitem alimentar um tipo de demanda que não tem um limite determinado pelo tamanho e pela “propensão marginal ao consumo doméstico”; permitem manter o predomínio militar norte-americano; e, contrariamente ao que os autores dizem, os investimentos no complexo industrial-militar permitem sim elevar a taxa de produtividade. Lembremos que a internet nasceu como um projeto do Pentágono; poder-se-ia perguntar quantas tecnologias aplicadas à produção não surgiram como derivadas de descobertas feitas no complexo industrial-militar.
Ora, o sistema americano sempre esteve indissoluvelmente ligado à guerra. A questão não é lhe atribuir as características que ela não traz à economia. É entender qual o seu papel estrutural na economia norte-americana como um todo, e, como uma questão de princípio, intervir a favor de outro tipo de organização social. A vida social deve ser criticada pela atividade racional consciente, o que implica extinguir em extinguir o militarismo e reordenar a orientação dada aos recursos. A economia pode crescer de duas, três, n maneiras possíveis, cada qual com suas vicissitudes. Todas maneiras têm “custos”, no sentido dado pelo livro; mas todos têm diferentes efeitos benéficos, seja para os trabalhadores ou para os lucros. O fato de que a economia vem crescendo à base dos investimentos na indústria de guerra simplesmente mostra que a guerra é a mais funcional para os interesses corporativos dominantes na política norte-americana. Mas não adianta negar à guerra, com o argumento que ela acarreta custos, as vantagens que ela traz a um determinado tipo de crescimento do PIB dos Estados Unidos. O caso é: há outros tipos de crescimento?
Mas quais são os “custos” macroeconômicos da guerra, na visão deles, ao todo, incluídos os custos sociais como as mortes de trabalhadores que iriam contribuir para o PIB futuro? Como chegam a 3 trilhões? Vejamos. Além dos custos sociais, o fato de que parte da poupança doméstica faz “desviar capital” do investimento privado para o estatal representaria parte de tais custos. Isto sugere que naturalmente houvesse uma alocação automática da poupança para os investimentos privados. Mas, pode-se perguntar: se o pagamento de juros pelo governo vai aos bancos, posteriormente porque não são re-emprestados ao setor privado, isto é, porque o setor privado não os toma emprestado? O governo é o único cliente do sistema financeiro norte-americano? As empresas privadas estão mesmo “disputando capital” com o Estado? Se é assim, porque a economia não tem crescido à base somente da economia privada?
Em segundo lugar, assumem-se como virtuais “custos” a queda dos níveis de produtividade, pois os investimentos são feitos em bens não consumíveis na produção ou consumo final. Já se comentou este ponto acima; é impossível calculá-lo com alguma precisão. Em terceiro, o aumento do preço do petróleo vindo com a guerra (o porquê exato do qual eles não explicam). Neste caso, corretamente, os autores apontam os custos para a economia como um todo, em favor das corporações norte-americanas que extraem o petróleo. Só se esquivam de ressaltar: o suprimento de petróleo está garantido às corporações e por decorrência à economia norte-americana.
Vamos acompanhar a metodologia dos autores mais de perto, no cálculo das “perdas”. Tal se faz pela noção de multiplicador e, derivada dele, pela noção de quanto gastos agregados a economia deixou de realizar em forma de consumo, por exemplo, pela elevação dos preços do petróleo pago aos países que o exportam aos Estados Unidos. Eles estimam um multiplicador de 2, bastante conservador.[2] Daí que, se os custos do aumento do petróleo são de aproximadamente 25 bilhões ao ano em consumo de bens de consumo a menos, 260 bilhões a menos foram gastos na economia norte-americana, em favor dos exportadores árabes. Adicionando as perdas que o comércio exterior norte-americano teve porque seus parceiros tiveram de comprar também petróleo mais caro (deixando de comprar bens dos Estados Unidos, logo), chegam a um total de perdas de 800 bilhões em “custos” (isto é, gastos que deixaram de ser feitos). Adicionam mais 90 bilhões em perdas no consumo das famílias no fato de que o governo terá de aumentar impostos para financiar os juros mais altos, frutos de seu próprio endividamento maior. A isso unem: os efeitos “inquantificáveis” do aumento da “incerteza” e suas implicações para a “psicologia” das corporações; os custos de manutenção de veteranos; as futuras operações de guerra, ainda a serem feitas.
Muito bem; os “custos” chegam a 3 trilhões de dólares, ou 4, dependendo-se de uma série de variáveis a adotar, como a dimensão do multiplicador. “Só” há dois problemas: a metodologia utilizada: (1) confunde radicalmente custos reais, isto é, perdas que realmente não se realizaram, com outros elementos que não são perdas macroeconômicas, mas sim gastos de tipos diferentes do que os juízos de valor dos autores gostariam que fossem, e (2) incrivelmente não leva em consideração os efeitos multiplicadores dos próprios gastos militares a partir de 2003, face à tendência histórica de queda deles desde 1990! Fazem as contas como se os gastos bélicos não tivessem representado um determinado aumento da demanda efetiva! Ora, trata-se de miséria da macroeconomia!
De fato, os custos adicionais do petróleo e as perdas em comércio exterior podem ser corretamente vistas como perdas reais; isto é, deixaram de ser gastas, e não serão mais. Mas contabilizar os custos futuros das operações militares, o auxílio a veteranos, e o efeito crowd out (o deslocamento e a assim as perdas dos investimentos privados ocasionados pelos empréstimos ao governo) como perdas, é estranho demais, visto que eles representaram e representarão gastos, de qualquer forma. Nesta macroeconomia esquisita, calcular os custos das virtuais perdas sem subtrair os efeitos multiplicadores dos gastos que o governo fez e efetivamente fará no futuro, significa computar apenas os custos contrapostos ao cenário ideal que visualizaram (isto é, ausência da guerra), sem computar como positivos (para o PIB) os gastos efetivamente feitos pelo governo, e que significaram demanda efetiva!
Na verdade, é impressionante como conseguiram chegar aos custos sem contrapô-los a tudo o que o governo investiu e investirá na guerra (já que põem os custos totais de 3 trilhões como resultados dos gastos ainda vindouros também). Isto implica afirmar que a guerra representou somente “custos”; isto é, que são “custos” o fluxo de salários, consumo e investimentos gerados pelos déficits fiscais no complexo industrial-militar. É uma maneira engraçada de falar. Teriam chegado a resultados muito diferentes se: (a) tirassem dos custos os resultados que não são efetivamente “custos”, mas demanda efetiva, pura e simples – demanda de padrão diferente do que se gostaria de ter, mas ainda sim demanda; (b) tivessem tomado as variações dos gastos com defesa depois de 2003, mais os que virão no futuro, os multiplicado por 2 (o multiplicador) e os subtraído dos “custos” estimados, presentes e futuros, porque estes gastos com a guerra foram e serão demanda efetiva. Chegariam à conclusão de que, simplesmente, a guerra representou um fluxo de consumo e investimentos enorme.
Assim, os gastos com a guerra de 646 bilhões efetivamente feitos desde 2003 (aproximadamente o aumento das despesas militares, dada a antiga tendência herdada do período da guerra fria, como se vê abaixo), mais as operações futuras de 526 bilhões, mais os gastos com veteranos (desde quando isto não virará demanda efetiva na economia?), mais os outros custos de desmobilização de 132 bilhões (idem!), vezes dois, nos dão 2 trilhões e seiscentos bilhões. Ficam de fora da conta somente os gastos com petróleo e com o comércio exterior, que são perdas reais, e as perdas em vidas humanas – gastos estes que, no total, ficam em 500 bilhões, aproximadamente. Nesta perspectiva, o impacto positivo no produto da guerra foi dois trilhões e cem bilhões.
Assim, todo o cálculo realizado na obra fica comprometido por aplicarem juízos de valor à macroeconomia, não vendo que os gastos de guerra foram e serão efetivamente realizados – quer dizer, que se tornaram, objetivamente, demanda efetiva. Os pontos complicados restantes, alguns dos quais apontados acima, são obscurecidos por esta miopia fundamental, que por sua vez obscurecem as qualidades que o livro tem. O problema todo reside em quererem caracterizar o tipo de gastos de uma economia em guerra como “custos econômicos”, quando eles são, no máximo, custos sociais: o que se gastou em armas poderia ter sido gasto de forma racional. Mas de modo algum a demanda efetiva em forma de compras à indústria de guerra é “ruim para a economia”, nos seus próprios termos; tal como está arranjado o complexo industrial militar, os gastos de guerra impactam positivamente no PIB. É uma ilusão achar que os efeitos negativos advindos da manutenção da demanda efetiva em forma de produção para a guerra (aumento da inflação, por exemplo) são muito maiores que as dificuldades que a economia teria para expandir-se de modo “pacífico”.
Teria sido melhor a Stiglitz e Linda Bilmes escrever um livro eminentemente político, do que enveredar-se por uma macroeconomia que desconsidera a realidade objetiva simplesmente porque a julgam (neste único caso, corretamente) ruim. Talvez o caminho do mundo industrializado sem a indústria da guerra seja apenas o da estagnação, como no Japão e na Alemanha, evidentemente pior de um ponto de vista daquilo que os liberais esperam que seja o capitalismo – um sistema que apresente crescimento contínuo da produção e do consumo.
Notas
2. Calculei, a partir das contas de consumo e poupança do Bureau of Economic Analysis, um multiplicador de 5,88. Para isto, basta-se fazer a regressão entre renda (x) e consumo (y), em dólares correntes, para obter a pendente da reta, que é justamente a propensão marginal a consumir. Depois, realizar o cálculo do multiplicador, sendo ele 1/1- pmc.
Resenhista
Vitor Eduardo Schincariol – Mestre e Doutorando em História Econômica – USP. Professor do Departamento de Economia – UFAL.
Referências desta Resenha
STIGLITZ, Joseph; BILMES, Linda J. The Three Trillion Dollar War – The True Cost of Iraq Conflict. Nova York: W.W. Norton & Company. 2008. Resenha de: SCHINCARIOL, Vitor Eduardo. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 06, n. 16, p. 120-128, janeiro, 2009. Acessar publicação original [DR]
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