Originada no setor subprime do mercado imobiliário norte-americano, a crise de 2007/2008 motivou indagações quanto ao futuro do sistema monetário e financeiro internacional. Não foram poucos a apontar o fortalecimento da regulação financeira, o alargamento da governança financeira global e até possíveis ameaças ao dólar como moeda internacional. Contudo, o fenômeno que podemos observar atualmente é o da manutenção das estruturas e funcionamento do sistema.
Nesse sentido, “Por que as expectativas de transformação da governança financeira global não se confirmaram?” (Helleiner, 2014: 9). Essa é a pergunta que Eric Helleiner busca responder no livro The Status Quo Crisis, lançado em 2014 pela Oxford University Press.
Ocupante da cadeira Faculty of Arts em Economia Política Internacional da Universidade de Waterloo e professor no Departamento de Ciência Política da mesma, também lecionando na Balsillie School of International Affairs, Helleiner se debruça sobre o complexo objeto da governança financeira global para muito além das tradicionais pesquisas da área.
Segundo o autor, são quatro os eixos nos quais se identificavam possibilidades de transformação, reforçadas no pós-crise por acontecimentos específicos: a governança financeira global, a ser renovada pelo recém criado Fórum dos líderes do G20; a posição do dólar como moeda internacional, ameaçada por novas alternativas e pela suposta deterioração de seus fundamentos; o nível de regulação financeira, do qual se esperava ampliação nos moldes macro prudenciais1; e a arquitetura financeira internacional, que poderia ser complementada pela Financial Stability Board, suposto quarto pilar da governança econômica global junto ao FMI, OMC e GBM.
O livro se estrutura ao redor desses quatro eixos, que representam um capítulo cada, acrescidos de uma seção introdutória e outra que comporta a reflexão sobre possíveis cenários futuros. Em cada seção, o autor analisa as expectativas surgidas no pré e imediato pós-crise e os fenômenos que explicam suas frustrações.
A primeira seção, “Did the G20 Save the Day?”, é dedicada a discutir se, no pós-crise, o G20 desempenhou um papel tão relevante na governança financeira global quanto aventado por seus entusiastas, políticos e acadêmicos. O autor analisa os instrumentos mais utilizados e eficazes para conter os efeitos recessivos sobre a atividade econômica global, refletindo criticamente sobre a liderança do G20 como coordenador desse processo.
Negociados bilateralmente pelo Federal Reserve (FED) e pelo Departamento do Tesouro dos EUA, os acordos de swap com Bancos Centrais são reconhecidos como os mais importantes instrumentos de fornecimento de liquidez à economia global. Por sua celeridade, e pela ausência de condições de austeridade atreladas, se provaram mais eficazes que os recursos do FMI e swaps regionais. O FED ainda permitiu aos bancos estrangeiros acesso a sua janela de desconto. Via suas subsidiárias e filiais norte-americanas, bancos europeus tiveram acesso a dólares essenciais para a manutenção de suas operações. Ao estender a liquidez a seus mercados sede contribuíram para limitar a escassez de dólares de empresas e outros agentes econômicos locais. Helleiner ainda destaca as Term Auction Facility e Comercial Paper Funding Facility e o Troubled Asset Relief Program como meios dos EUA oferecer liquidez a instituições estrangeiras.
Outra importante fonte de manutenção de uma mínima atividade econômica internacional, as políticas contra-cíclicas assumidas pelos países emergentes, que juntas se mostraram essenciais em suavizar a queda na demanda global, também não estiveram atreladas ao espaço de governança do G20. Foram motivadas por percepções unilaterais da importância de se minimizar os efeitos negativos sobre a atividade econômica nacional através do estímulo à atividade interna.
Helleiner defende, portanto, que tanto a fundamental atuação do FED como emprestador de última instância ao sistema, quanto as políticas contra-cíclicas mencionadas, foram assumidas independentes da coordenação do fórum criado para “responder” à crise.
Não entendemos, contudo, que o papel do G20 possuiu tão pouca relevância. Tal iniciativa em nível internacional, com a reunião de países emergentes para discussão sobre os rumos da economia internacional, demonstra a força da alternativa diplomática e multilateral frente ao unilateralismo. Mais importante, permite um canal de comunicação e informação reduzindo a incerteza e contribuindo para chacoalhar o cenário político da governança financeira internacional.
Na sequência, em “Was the Dollar’s Global Role Undermined?”, o autor analisa a predominância contínua do dólar na economia internacional a despeito das previsões de que sua função central sofreria sério desgaste com a crise financeira. No momento anterior ao colapso financeiro, a crise do dólar era esperada em caso de um evento de grandes proporções que pudesse finalmente disparar o gatilho da desconfiança. O déficit orçamentário já longo (apenas no governo Clinton houve superávit), o déficit em conta corrente e a posição de grande endividamento externo sem a perspectiva de equilíbrio dessas funções fomentavam tais preocupações.
Com efeito, tratando daqueles trabalhos que apontavam, antes da crise, que a posição do dólar já estava perdendo a confiança dos mercados, o autor busca interpretar o fenômeno da valorização do dólar em plena crise. Ademais, também são analisadas as tentativas e demandas por uma maior relevância dos Direitos Especiais de Saque e pela internacionalização de outras moedas em detrimento do dólar, por parte de autoridades de diferentes nações, e os obstáculos de mercado encontrados nessas iniciativas.
Nessa análise, Helleiner destaca que, ao longo da crise, os atores envolvidos no sistema monetário internacional não cooperaram pela manutenção do dólar. Foram as decisões unilaterais de cada ator, dentro das oportunidades e limitações oferecidas pela estrutura do sistema, que garantiram suporte oficial ao dólar, embora o governo norte-americano tenha se aproximado minimamente de seus principais credores. Ou seja, decisões não coordenadas forneceram estabilidade ao funcionamento do sistema por conta do poder estrutural dos Estados Unidos, tendo o dólar como moeda internacional e Wall Street como o maior e mais profundo centro financeiro internacional. Enquanto alguns países enfrentaram fuga de capitais e seus costumeiros choques na balança de pagamentos, no câmbio e nos investimentos, nos Estados Unidos observou-se o contrário com entrada de capitais e fortalecimento da moeda. Facilitaram-se, assim, as políticas de resgate aos bancos, o fornecimento de liquidez ao sistema via swaps entre Bancos Centrais e estímulos keynesianos à atividade econômica.
Quanto à oportunidade de redefinição do padrão de regulação financeira, uma vez mais se percebe a frustração das hipóteses e expectativas ensejadas pela crise. No capítulo “Was the Market-Friendly Nature of International Financial Standards Overturned?”, segundo o autor, os desafios à liderança liberalizante assumida por norte-americanos e britânicos foram menores e menos consistentes do que o esperado.
Helleiner destaca a capacidade norte-americana de iniciar rapidamente os debates regulatórios no nível doméstico, permitindo posição pioneira nas negociações internacionais. Desde a administração Bush, buscou-se coordenar o conteúdo das negociações internacionais com o conteúdo doméstico. Tentava-se evitar desvantagens competitivas às instituições norte-americanas na competição global, evidenciando a percepção estratégica das instituições financeiras e do mercado financeiro aos EUA.
Por sua vez, países do Sul, como a China, marcaram constantemente posição favorável ao cerceamento da liberdade dos mercados, porém, pelo menor poder de mercado, acabaram assumindo papel secundário nas negociações, a não ser no tema de controle aos fluxos de capital. França e Alemanha, apesar de se mostrarem favoráveis à regulação de temas como fundos de hedge, regras de contabilidade e Credit Default Swaps, não foram capazes de sustentar posições regulatórias em todos os aspectos abordados e muito menos constranger, através do poder de mercado europeu, a posição norte-americana. Pesou a falta de coesão ao longo da UE para flexionar a potencialidade da região, muito por conta da oposição britânica.
Ainda no mesmo capítulo, o autor aponta que a esperada diminuição da capacidade de influência das instituições financeiras sobre as negociações regulatórias, tanto nos EUA quanto a nível internacional, não se concretizou. O resgate a essas instituições trouxe-as de volta a uma grande capacidade de influência sobre a política, limitando significativamente o alcance das reformas financeiras. Outra hipótese que preconizava o fortalecimento da regulação se apoiava sobre a perda de força das ideias neoliberais, dando lugar a uma interpretação macro prudencial como norte para a regulação financeira. Entretanto, o intenso lobby nas negociações barrou o potencial de articulação dessas ideias, legando inovações de supervisão, ao invés de constranger o funcionamento dos mercados.
Criada pelo G20 como órgão responsável por reunir os principais esforços de regulação financeira, a Financial Stability Board (FSB) representou a expectativa de estabelecimento de um quarto pilar na arquitetura econômica global, responsável por avançar na implementação dos padrões de regulação financeira a nível internacional.
Contudo, em “Was a Fourth Pillar of Global Economic Architeture Created?” o autor aponta que a criação da FSB foi pouco significante para desenvolver, como desejaram seus criadores, a governança financeira global. As jurisdições nacionais se demonstram pouco inclinadas a ceder autonomia regulatória e o órgão não foi munido de poder formal. Não há, por exemplo necessidade de ratificação de qualquer tipo de legislação pelos países membros.
Também não existem incentivos na forma de punições ou retaliações que incentivem os membros a proceder com a implementação dos acordos padrões. Mesmo o órgão máximo na tomada de decisão, a plenária, envolve todos os membros e baseia seu funcionamento em uma regra de consenso. O que permite aos membros uma margem de ação política para obstaculizar o avanço de reformas indesejadas.
Em sua reflexão final (What’s Next?) Helleiner aponta três possíveis cenários para a governança financeira global: fortalecimento do multilateralismo nos moldes liberais; fragmentação da cooperação e conflitos; e uma mistura de cooperação e descentralização da governança. No primeiro, assume que a mudança institucional é historicamente lenta, e que a crise pode representar o início de um longo processo de fortalecimento da via multilateral, a despeito dos apontamentos negativos até o momento. A segunda possibilidade pressupõe insatisfação com a atual estrutura financeira e suas reformas, fortalecendo a fragmentação, observada em convergências regionais, bilaterais e unilaterais nas disputas por poder monetário e menor constrangimento financeiro. Finalmente pode ocorrer o fortalecimento contínuo (e lento) da institucionalidade multilateral, paralelo a ações autônomas, porém cooperativas, ensejando uma estrutura híbrida de regulação financeira e um sistema monetário com menor centralização dos custos e poder.
Conforme buscamos apontar, Helleiner oferece uma abrangente análise dos fenômenos relacionados à crise. Seguindo a linha de trabalhos anteriores, como States and the Reemergence of Global Finance (1994), e The Future of the Dollar (2014), co-editado com Jonathan Kirshner, o autor foca variáveis políticas estruturais do cenário pós-crise, sem perder de vista a importância e as limitações das variáveis econômicas. Sua análise oferece um bom exemplo de superação do mutual neglect 2, denunciado por Susan Strange em 1970. Compõe uma cuidadosa análise dos objetos sem uma questão teórica anacrônica, ou importações conceituais “duras”. Sua pesquisa abrange trabalhos de várias vertentes interpretativas, integrando os contextos domésticos, interestatal e transnacional, bem como oferecendo insights documentais a respeito do G20, da FSB e de processos legislativos domésticos.
Em termos gerais, a constatação do autor é a de que as transformações que deveriam ser substanciais foram barradas pelo poder estrutural norte-americano sobre a economia internacional e por conta de políticas ativas do mesmo país. Contaram também a falta de força da Europa e o conservadorismo de mercados emergentes como China e outros países.
Antes restritos aos economistas, os temas da regulação financeira, da transição de padrões monetários internacionais, da arquitetura financeira internacional e da governança global são analisados a partir de uma visão do poder das finanças globais. Nesse sentido, The Status Quo Crisis é uma importante contribuição aos estudantes de Economia Política Internacional na busca por compreender o impacto da crise de 2007/2008 sobre a estrutura do sistema monetário financeiro internacional, a partir das lentes da política que perpassa a governança financeira global.
Notas
1 O foco da regulação macro prudencial são os fatores que afetam o sistema como um todo, diferentemente da regulação micro prudencial, preocupada com os fatores que afetam as instituições individualmente. No pós-crise a regulação macro prudencial ganhou espaço no debate por conta da aparente incapacidade da regulação em voga (micro prudencial) em conter a crise.
2 Em artigo seminal publicado em 1970 Strange apontou a negligência mútua (mutual neglect) entre as pesquisas em Relações Internacionais e Economia Internacional. As intensas transformações daquele período, segundo a autora, necessitavam que interpretações nessas áreas dialogassem entre si a nível conceitual em favor de enriquecer os campos e oferecer interpretações mais sofisticadas. Sem diálogo, as áreas corriam o risco de perder de vista a relação entre a interpretação acadêmica e a realidade internacional da época.
Resenhista
Lucas de Almeida Carames – Mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ. E-mail: lucasacarames@gmail.com
Referências desta Resenha
HELLEINER, Eric. The Status Quo Crisis – Global Financial Governance After the 2008 Financial Meltdown. Oxford University Press, 2014. Resenha de: CARAMES, Lucas de Almeida. Crise econômica, manutenção política. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.5 n.9, p.341-347, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]
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