Um dos reconhecidos avanços propiciados pelo chamado Terceiro Debate em Relações Internacionais foi ter aberto a possibilidade de diálogo entre a área e outros ramos das Ciências Humanas, tais como a Filosofia, Sociologia e Linguística. Tal abertura proporcionou um estreitamento dos laços com o que se convencionou chamar Virada Linguística, movimento intelectual que colocou em cheque a concepção representacionalista da linguagem, isto é, a mesma não seria apenas um reflexo das condições materiais e/ou ideacionais da sociedade e às suas funções descritiva e representacional seria mais do que oportuno considerarmos seu caráter produtivo, ou seja, sua capacidade de criar identidades e posicionar sujeitos e objetos em relações entre si.
Nesse sentido, uma tradição intelectual interessante para se refletir sobre o papel da linguagem na construção do real é a Análise Crítica do Discurso (Critical Discourse Analysis), especialmente a contribuição de Norman Fairclough, mais conhecida como Teoria Social do Discurso. Acolhendo influências marxistas significativas, como o dialogismo de Bakhtin e a concepção de hegemonia de Gramsci, mas também influenciado por ideias foucaultianas, especialmente o aspecto constitutivo do discurso e a natureza discursiva do poder, Fairclough define o discurso como uma forma de prática social, um modo de se agir sobre o mundo e sobre a sociedade, enfim, um elemento da vida social que se interconecta com demais práticas. Em suma, o discurso possui uma relação dialética com a realidade, influenciando-a, mas também sendo influenciado por ela, e a ambição do autor, ao longo principalmente de três obras (FAIRCLOUGH, 2008; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1998; FAIRCLOUGH, 2003) foi desenvolver uma teoria do discurso que possibilitasse os analistas a unir a análise linguística dos textos com abordagens da teoria social.
Feito tal preâmbulo, a obra ora resenhada é, em nosso entender, uma contribuição significativa para evidenciar a potencialidade da Teoria Social do Discurso de Fairclough para o estudo de objetos privilegiados na área de Relações Internacionais. The Soft Power of War, coletânea de artigos inicialmente publicada no Journal of Language and Politics e organizada por Lilie Chouliaraki, é um esforço de congregar diversos analistas críticos do discurso para investigar as implicações da invasão norte-americana ao Iraque. Retomando a famosa expressão de Joseph Nye, Chouliaraki argumenta, na introdução do livro, que o intento dos autores é verificar como o discurso contribui para o exercício do poder brando (soft power), ou seja, como a linguagem consegue normalizar e, em última instância, tornar legítimas práticas de dominação que perpetuam um dado status quo. Para tanto, o livro está dividido em 6 capítulos, divididos em dois grandes temas, quais sejam, a guerra no discurso político (the war in political discourse) e a guerra no discurso da mídia (the war in media discourse). É para a apreciação dos capítulos que agora procedemos.
No primeiro capítulo, intitulado The Language of neofeudal corporatism and the war on Iraq, Phil Graham e Allan Luke, a partir da análise da conjuntura e dos discursos de George W. Bush, Tony Blair e John Howard, desenvolvem o argumento de que o corrente contexto geopolítico e econômico pode ser mais bem compreendido a partir do conceito de corporativismo neofeudal (neofeudal corporatism). Segundo os autores, tal conceito consegue capturar a dinâmica das relações políticas e econômicas a partir da invasão do Iraque de forma mais precisa visto que: (1) as relações entre EUA, Inglaterra e Austrália seriam uma forma de comitatus contemporâneo, uma relação de vassalagem entre o líder político hegemônico (no caso, Bush) e seus aliados (Blair e Howard), que conseguem benefícios políticos e econômicos com tal alinhamento; e (2) os componentes corporativos do hegemônico, tais como as empresas e demais elementos econômicos do poderio norte-americano, estariam espalhados pelo mundo, a serviço da manutenção da dominação. Ademais, a distribuição de benefícios, muito comum no feudalismo, estaria aqui presente, na medida em que determinadas empresas norte-americanas conseguiram para si os contratos da reconstrução iraquiana, e a adesão da Austrália à coalizão foi alcançada mediante acordos de livre comércio, segundo os autores. Dos capítulos do livro, certamente é o mais controverso, na medida em que não fica claro como a nova categoria pode dar conta da dinâmica das relações entre os países que intervieram no Iraque e das consequências de tal ação relegando, por exemplo, atores importantes como China e Rússia.
O segundo capítulo, Blair’s contribution to elaborating a new doctrine of international community, de autoria do próprio Norman Fairclough, tem objeto e foco mais bem delimitado que o primeiro: mediante uma seleção de discursos do ex-premiê britânico de 1999 a 2003, o autor pretende mostrar como Tony Blair contribuiu para uma nova concepção de comunidade internacional e segurança internacional. Para tanto, Fairclough debruça-se sobre como Blair narra as mudanças mundiais neste período e quais seriam os novos desafios que perpassam o sistema internacional. Nos discursos de 1999, a globalização era a grande novidade: tinha capacidade de agência, pois transformava as economias de todos os países, impactava eventos locais ao mesmo tempo em que era compreendida como ameaça econômica, na medida em que problemas financeiros na Ásia afetavam o cotidiano dos britânicos. Contudo, nos discursos de 2002, a ameaça global de eventos locais é muito mais pronunciada, certamente devido aos eventos de 11 de setembro, o que acarreta em uma maior ênfase na dimensão militar, e não financeira do perigo e a globalização seria um facilitador para a propagação de tais perigos.
Com relação à concepção de Blair sobre segurança internacional, o foco do trabalho de Fairclough é sobre como são representados o Ocidente e seus antagonistas. Tanto nos discursos de 1999 como 2002 há uma visão maniqueísta do mundo, dividido entre os aliados e os inimigos; porém, se em 1999, à época do conflito no Kosovo, o perigo emanava de ditadores, em 2002 as ameaças advêm de forma mais pronunciada do terrorismo e das armas de destruição em massa, ainda que as últimas tornem-se apenas uma ameaça nas mãos erradas. Ademais, a ameaça oriunda dos países que supostamente patrocinam o terrorismo é mais elaborada agora, pincelada com expressões como ‘caos’, ‘instabilidade’, ‘desordem’, entre outros adjetivos e substantivos pejorativos. Por fim, as justificativas para intervenção militar são sempre retrospectivas, ou seja, legitimadas pelos prováveis bons resultados que, ao fim e ao cabo, os aliados conseguiram empreender.
O último artigo do bloco temático sobre discurso político é de Teun van Dijk, cujo título é War rethoric of a little ally: political implicatures and Aznar’s legitimation of the war on Iraq. A ideia do autor é analisar os discursos feitos no parlamento espanhol pelo então primeiro ministro José Maria Aznar, entre fevereiro e março de 2003, em apoio à intervenção militar dos EUA no Iraque. Segundo o autor, o principal motivo pelo qual Aznar defende a intervenção americana contra Saddan Hussein, a despeito do rechaço da opinião publica espanhola, seria para enfatizar que seu governo encontrava-se a favor da paz. Por conseguinte, o então primeiro ministro tenta consolidar a ideia de que a luta contra o terrorismo é uma luta justa e que quem não se encontra a favor dela, não está a favor da paz e democracia. O desdobramento lógico seria enquadrar o Partido Socialista Espanhol como contrário à paz e às forças democráticas, porquanto não fora a favor da intervenção e, consequentemente, não seria favorável a derrotar o terrorismo. Para tanto, Aznar faz uso do pronome “nós” referindo-se às democracias ocidentais, aquelas responsáveis pela segurança global e pela ordem internacional. Em contraposição, o pronome “eles” é usado para indicar aqueles que colocam em risco a segurança da comunidade internacional, restando a “nós” a obrigação de manter “eles” sob controle. Em suma, temos uma tentativa de traduzir o debate político doméstico com os termos da Guerra ao Terror.
O primeiro capítulo do bloco sobre o discurso da mídia é de Bessie Mitsikopolou e Dimitris Koutsogiannis, intitulado The Iraq War as curricular knowledge: from the political to the pedagogical divide. Seguindo o espírito da Teoria Social do Discurso e mesmo a natureza do conceito de poder brando, tal como postulado por Nye, a ideia é mostrar que a construção da hegemonia perpassa todas as camadas da sociedade e, portanto, a importância do impacto das representações da invasão nos currículos escolares. Em linhas gerais, os autores analisaram o impacto que dois sítios de informação conseguiriam ter sobre estudantes de ensino fundamental e médio, sendo um em apoio à intervenção armada estadunidense no Iraque, o News Hour Extra, e outro com uma proposta mais crítica, o Rethinking Schools. Os autores destacam como os discursos pedagógicos dos sítios foram capazes de influenciar o posicionamento dos estudantes: enquanto o News Hour Extra enviesava as questões aos estudantes, direcionando seus posicionamentos, o Rethinking Schools optava por lições mais críticas sobre a necessidade da guerra. Outro ponto levantado pelos autores é o fato de que o sistema educacional americano exige a aplicação de provas para medir o conhecimento de seus alunos e o Rethinking Schools, não concordando com esse método, não previa a aplicação das mesmas em suas lições. Isso acabou por tornar as lições do News Hour Extra mais comuns entre os professores americanos por se adequar aos padrões exigidos no sistema educacional americano.
A segunda contribuição do bloco sobre mídia é o artigo Computer games as political discourse: the case of Black Hawk Down, de autoria de David Machin e Theo van Leeuwen. Tendo em vista a capilaridade dos discursos oriundos dos filmes de Hollywood e dos jogos eletrônicos na população, o propósito do capítulo é analisar como a intervenção americana na Somália, ocorrida em Março de 1993, é representada no filme e jogo de vídeo game, ambos chamados Black Hawk Down. No caso em tela, destaca-se como tanto o jogo quanto o filme foram construídos através de um longo processo de negociação com o Pentágono, para que nenhuma informação contraria à concedida pelo governo americano fosse passada. Por conseguinte, tomou-se cuidado na construção e representação dos personagens: os soldados são heróis capazes de levar a democracia; os civis somalis são famintos e tem a aparência sofrida, resultado do governo ditatorial e tirânico de Aidid, o qual deveria ser derrotado. Logo, a constituição desses sujeitos é fundamental na construção da narrativa da história e na comoção dos que jogam e assistem ao filme. Assim sendo, a ideia principal é que mediante a construção de identidades nesses tipos de mídia, os discursos produzidos ajudam a legitimar a intervenção militar, ainda que a posteriori.
Por fim, o último capítulo, de Lilie Chouliaraki, é Spetacular ethics: on the television footage of the Iraq war. Nesse capítulo, a autora destaca o papel da televisão como formadora da opinião publica sobre a guerra no Iraque, em especial os telejornais das redes BBC e CNN. Ao mostrarem os efeitos destrutivos da guerra, os telejornais sob análise conseguem manter a opinião pública à favor da intervenção militar: assim, segundo Chouliaraki, o argumento humanitário de que os soldados americanos estavam no Iraque para salvar o povo iraquiano da tirania do regime de Hussein acaba higienizando todos os horrores perpetrados pela intervenção. Ademais, os repórteres que cobriram a guerra, ao se mostrarem como testemunhas oculares dos eventos, acabavam provendo – ainda que de forma não intencional – mais legitimidade ao discurso e à intervenção, pois atestavam in loco a tirania do regime de Saddam Hussein. A autora ressalta também que, embora a guerra estivesse sendo mostrada em tempo real, não se televisionavam os estragos que essa causou, isto é, privilegiou-se uma visão panorâmica dos bombardeios, mas não o sofrimento dos civis, os hospitais cheios de feridos e as ruas destruídas. Dessa forma, a autora conclui, os telejornais foram decisivos nos processos de normalização e legitimação da guerra no Iraque.
Somadas as contribuições, temos uma importante obra que procura operacionalizar as ideias e conceitos da Análise Crítica do Discurso, mostrando como a linguagem é um componente fundamental para, ao influenciar a construção da realidade, permitir que a dominação e a hegemonia se perpetuem nas diversas esferas sociais. Assim, o livro contribui de duas maneiras importantes para a área de Relações Internacionais: é um guia que possibilita aos leitores entender os aportes teóricos e metodológicos da Teoria Social do Discurso de Fairclough, ao mesmo tempo em que é uma intervenção no debate político, ao mostrar que a representação do Iraque pré e pós – intervenção, com destaque para a benevolência dos atores externos e a barbárie local, são construções sociais e nada tem de naturais, passíveis de serem constantemente questionadas e – com um pouco de otimismo – transformadas.
Referências
CHOULIARAKI, Lilie; FAIRCLOUGH, Norman (1999). Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh University Press.
FAIRCLOUGH, Norman (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge.
FAIRCLOUGH, Norman (2008). Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UnB.
Resenhistas
Aureo de Toledo Gomes – Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: aureo@ie.ufu.br
Tainah Espíndola – Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. E-mail: tainahespindola@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
CHOULIARAKI, Lilie (Ed.) The Soft Power of War. Philadelphia: John Benjamin Publishing Company. Resenha de: GOMES, Aureo de Toledo; ESPÍNDOLA, Tainah. Meridiano 47, v.14, n.136, p.43-46, mar./abr. 2013. Acessar publicação original [DR]
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