A obra Red International of Labor Unions (RILU) 1920-1937, de Reiner Tosstorff, é o maior esforço analítico conhecido, até agora, sobre a Internacional Sindical Vermelha (ISV), a chamada Profintern. Bastante ignorada, mesmo pelo público especializado no Brasil, a Profintern foi uma das maiores organizações subsidiárias da Internacional Comunista (Comintern). Fundada em 1921, colocada em serviço efetivo em 1922 e dissolvida em 1937, a ISV retratada por Tosstorff é parte também de um gigantesco esforço transnacional.
O livro está dividido em nove capítulos e é resultado de trabalho realizado para obtenção da livre-docência. Publicado inicialmente em alemão em 2004, o trabalho monumental terminou traduzido e publicado nos Estados Unidos em 2016 em um calhamaço de quase mil páginas. A quantidade de páginas, neste caso, é virtude. Não teria sido possível dispor ao leitor tantas minúcias de labor de pesquisa em menos páginas.
Alguns autores já abordaram traços da história da ISV, sempre tangenciando a sua história de maneira acessória a algum outro argumento ou propósito. Alguns deles incluem autores tais como: Edward Hallet Carr, Pierre Broué e Kevin McDermott. A ISV também aparece telegraficamente no volume VI da História do Marxismo. Em termos de trabalho monográfico, há uma tese já longínqua sobre os primeiros anos da ISV, de 1964, escrita sob espírito da Guerra Fria, defendida por um jovem Albert Resis, na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, intitulada “The Profintern: origins to 1923”.
A abordagem de Tosstorff relaciona permanentemente a história da Profintern com fenômenos da história mundial. Num outro nível analítico, estabelece os pontos com as organizações do trabalho explicando, com pormenores, o “contexto de fatos”. E a narrativa se desdobra no permanente “ir e vir” entre fenômenos de natureza contextual e a própria história interna das organizações de trabalhadores.
No aspecto da disposição do texto, os três primeiros capítulos estão relacionados com a fundação da ISV. Dois argumentos principais que subjazem toda estrutura argumentativa do livro podem ser recuperados desta parte do livro: 1) a Profintern foi fundada por sobre os escombros deixados por um movimento sindical agonizante, resultado das disputas fratricidas no ocaso da II Internacional; 2) uma persistente cultura organizativa do sindicalismo do período anterior (ou seja, até a cisão da II Internacional) criou dificuldades crescentes para os comunistas hegemonizarem uma organização trabalhista internacional.
Os capítulos 4, 5 e 6 reconstituem a história da ISV como uma ferramenta de ação política, desde o congresso de fundação ao debate sobre o papel da organização. O eixo condutor dos capítulos deriva da premissa elaborada ao longo de todo texto: a avaliação política que sustentara a criação da ISV, a saber, que os comunistas estavam em uma ofensiva revolucionária, já não poderia ser a mesma em 1922, depois da derrota da Revolução Alemã e do distanciamento de Lênin a partir de meados de 1922. A realidade havia mudado. Em resumo, esses três capítulos evidenciam como a organização se sustentou, politicamente, num frágil equilíbrio programático. Orbitou entre a disputa pela hegemonia do movimento operário global, por um lado, e, por outro, uma agenda menos esquerdista, de frente única, composta por diversas correntes do movimento operário, coerente com o novo período de refluxo revolucionário pós 1922, tal como definido pelas diretivas definidas no IV Congresso da Internacional Comunista.
Os últimos três capítulos tratam do período de stalinização da organização, do ultra-esquerdismo pós-1928 até a dissolução da organização em 1937. Esses últimos capítulos demonstram como a fragilidade programática da ISV se impôs paulatinamente no dia a dia da atividade militante. Até a dissolução da Profintern, a tese central que respaldava a organização era a necessidade de manter um organismo revolucionário para os trabalhadores e seus sindicatos. Isto se dava por causa da avaliação crítica que se fazia, por parte dos comunistas, da atuação Federação Internacional de Sindicatos (FIS) – também conhecida como a “Internacional de Amsterdam”. Tosstorff argumenta que os comunistas transitavam entre duas teses: lutar contra a FIS ou fazer parte da FIS, disputando sua direção. Essa ambiguidade gerou fraturas permanentes.
Em todo caso, o arco de alianças que os comunistas da ISV precisaram montar para fazer frente à FIS permitia pouca margem de manobra para inflexões táticas radicais. A aliança com Sindicalistas, por exemplo, dificultava a hipótese de transitar de uma política de enfrentamento para uma conciliação via frente única. Além desse aspecto onipresente na história da Profintern, as dificuldades intestinas na Comintern e na própria União Soviética não deixariam de intensificar dificuldades organizativas da ISV e catalisar rupturas.
A pesquisa de Tosstorff conclui que a ISV foi encerrada por um conjunto específico de razões. Uma delas foi a pressão para que os sindicatos soviéticos se filiassem à Federação Internacional de Sindicatos, desfazendo as condições políticas de existência do organismo. Tal direção política coincide com a estratégia da Frente Popular adotada pelo Comintern e por todos os partidos comunistas, formalmente a partir de 1935. Em nossa leitura – não está presente em Tosstorff – é provável que a dissolução da Profintern tenha feito parte do farto rol de concessões que a União Soviética fez às potências ocidentais a fim de fragilizar os organismos que propugnavam a Revolução Mundial. Tudo isso em troca de trégua.
A abordagem do autor alemão privilegiou, como obra pioneira, um exame detido das linhas políticas traçadas em espaços oficiais da ISV. A quase totalidade do abundante material documental utilizado por Tosstorff é oriundo de pesquisa em arquivos russos sobre o período soviético. Isso permitiu que o autor concedesse algum espaço aos grupos derrotados internamente, tais como a oposição de esquerda, em particular a trotskista, o caso de Andreu Nin e, por fim, a esquerda holandesa.
Tosstorff entende, em sua obra, a história da ISV como contingente às políticas da URSS e da Comintern. Por essa razão, a fim de garantir legitimidade entre sindicatos de todo o globo, a ISV precisou construir um simulacro de autonomia e independência. O autor identificou três momentos-chave da história da ISV que corroboram com essa dualidade tensa. O primeiro deles se exemplifica no impulso inicial que justificou a fundação da ISV, considerando período revolucionário pós-guerra e o enfrentamento que correntes Sindicalistas e Comunistas do movimento operário global impuseram à FIS. A ISV foi fundada, dessa maneira, como parte de uma tentativa global de impor uma nova agenda política às organizações do trabalho em todo o globo, fugindo, como já dito, das teses conciliatórias da “Internacional de Amsterdam” e enfrentando aquela cultura organizativa da II Internacional. O primeiro problema da ISV foi, precisamente, garantir que o trabalho da entidade obedecesse aos interesses dos trabalhadores e não parecesse, aos dirigentes sindicais, sobretudo, uma correia de transmissão dos interesses soviéticos. Isto serviria a dois propósitos: manter a aliança com Sindicalistas e, ao mesmo tempo, fazer frente à “Internacional Amarela” (como os comunistas também chamavam a FIS). O segundo problema foi lidar com a mudança da conjuntura: o período de refluxo da vaga revolucionária se impunha a partir de 1922, de acordo com as avaliações da Comintern. Junto a esse processo e no continuum dos abalos no movimento operário que tiveram lugar no pré-guerra, opondo tendências internacionalistas aos grupos chauvinistas – estes últimos apoiando o esforço de guerra imperialista de suas respectivas nações – a ISV sobreviveu, imediatamente à sua fundação, sob o peso de uma enorme contradição: os comunistas estavam dispostos a dissolver a ISV a qualquer tempo desde sua fundação. O alto comissariado avaliava, diuturnamente, o ônus político para organização dos trabalhadores e a durabilidade da frente com os Sindicalistas, além da própria frente única, definida pela Comintern após 1922.
Um segundo momento-chave se deu a partir do IV Congresso da Profintern e do VI Congresso da Comintern em 1928. Pela primeira vez o Congresso da ISV ocorria antes do encontro da Internacional Comunista. A substância da decisão que seria tomada pela Comintern em julho de 1928 fora, efetivamente, antecipada pela ISV. Ou seja, a retórica ultra-esquerdista de 1928 que daria, em tese, à classe trabalhadora um papel de protagonismo na organização política foi encampada pelo organismo responsável por conduzir a política sindical bolchevique. Solomon Lozovsky, secretário-geral da Profintern, chamaria a atenção para três questões essenciais àquela altura: 1) enquanto os capitalistas recrudesciam e radicalizavam na ofensiva, os sindicatos reformistas se entrelaçavam cada vez mais com as burguesias; 2) o horizonte tático do momento era de uma “frente única a partir de baixo”; 3) a ênfase nos “de baixo” era dirigida aos trabalhadores não-organizados em sindicatos já que estes tendiam a ser mais revolucionários que os sindicalizados. Em resumo: disputar as massas e não aparatos. Poucos meses depois, a Comintern inaugurava o chamado período do obreirismo, quando se rompia toda e qualquer conciliação com a pequena-burguesia, inclusive com a destituição de intelectuais de lugares de direção de organismos partidários. Como consequência lógica, a ISV ganhou centralidade protocolar em termos de formulação de táticas políticas, mas nenhum poder real foi acrescentado à organização até sua dissolução. Ironicamente, os personagens que continuaram a dirigir a organização faziam parte da “facção política”, aquela mesma que era combatida pelo obreirismo, em oposição aos “verdadeiros” representantes da classe trabalhadora.
O terceiro momento chave é o encerramento das atividades da Profintern. A liquidação da ISV culminaria na tentativa de participação dos sindicatos russos na Federação Internacional de Sindicatos (FIS). A dissolução do aparato se deu na esteira de um dos expurgos. Entre prisões e desaparecimentos, a questão fundamental que envolveu a dissolução da ISV, em 1937, se deu pela centralidade da política de boa vizinhança soviética com as potências ocidentais, o abandono da revolução mundial como horizonte programático e, por fim, como resultado do isolamento causado pela política obreirista. A ISV já não representava muito e o ocaso trágico era o preço a se pagar tanto pelo esquerdismo pós-1928 quanto pela ambivalência que lhe marcou a história desde a fundação.
Um assunto importante deixado, inteligentemente, na lateral, é a questão das destituições e expurgos. Por suposto que houve tentativas reiteradas de remover dirigentes fundadores da ISV de espaços de direção por parte da burocracia stalinista e Tosstorff trata desses momentos mais de uma vez. Desse quadro geral é possível afirmar que, quanto mais próximo do fim, mais as ações de expurgo e destituições tiveram êxito.
Um outro importante debate historiográfico que diz respeito às organizações soviéticas como Comintern, Profintern e Krestintern está ligado à inequação da autonomia versus heteronomia, que serve, até hoje, para alimentar narrativas anticomunistas, especialmente no Ocidente. Basicamente, deve-se perguntar, qual a amplitude do controle de Moscou sobre organismos que funcionavam em Amsterdam, Hamburgo e Pequim? Senão era absoluto, qual o nível de autonomia que dirigentes possuíam? Tosstorff argumenta que a ISV teve muitas desvantagens sobre outras organizações sindicais internacionais. Para ele, uma delas foi a centralização exacerbada, na medida que as decisões de natureza política ocorriam de cima para baixo, quebrando as já frágeis tradições de democracia sindical. Tal procedimento também fragilizou o compromisso firmado entre forças políticas do movimento operário que garantia independência do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Estes aspectos colocaram a tese de livre-docência de Reiner Tosstorff ao lado daqueles que creditam à Profintern como parte de uma cadeia de comando cujo centro esteve em Moscou.
Não se trata de dizer que Reiner Tosstorff se aproxima da tradição anticomunista de Theodore Draper ou mesmo que se compare, em suas premissas, com a dura análise de Paulo Sérgio Pinheiro, em seu Estratégias da Ilusão. O estudioso alemão pavimenta uma estrada sólida e segura, para que novos estudos projetem perguntas inovadoras sobre a atuação da Profintern e sua relação com o aparato soviético em Moscou. O caso brasileiro, por exemplo, é espetacularmente desconhecido e, ao mesmo tempo, promissor. Embora não conste no livro de Tosstorff, foi por pressão advinda de grupos de comunistas negros organizados no âmbito da Profintern que um dos mais interessantes documentos de avaliação sobre a questão negra no Brasil foi elaborado. O Secretariado Sindical Pan-Pacífico da ISV foi responsável por disputar e organizar sindicatos de marinheiros e trabalhadores portuários, num misto de atividade revolucionária (no sentido da revolução mundial), anti-imperialista e anti-colonial, ironicamente, em períodos de vigorosa atividade stalinista quando os aparelhos estavam sendo desativados para o agrado das potências ocidentais.
Dentre os pontos críticos, está claro que permanece como um desafio para os estudiosos reconhecer a presença da oposição de esquerda no trabalho sindical entre os comunistas durante a década de 30. A expectativa é que novos estudos joguem mais luz sobre esses movimentos, em especial por causa dos novos documentos de Verkhneuralsk. Persiste, ainda, as dificuldades de compreender como os organismos internacionais (Internacional Camponesa, Internacional da Juventude, Internacional da Mulher, Internacional do Esporte e outras) operaram em países periféricos. Há referências e indicações limitadas quanto a isso no monumental trabalho de Tosstorff.
A obra termina com dois apêndices que constituem fontes importantes para pesquisadores interessados na história da ISV. O primeiro é um esboço biográfico sobre Solomon Lozovsky, o secretário geral da Profintern. O segundo é uma lista de pequenos parágrafos biográficos de várias figuras relacionadas com a história da ISV.
Por fim, com esta tradução, Reiner Tosstorff, autor também de trabalho seminal sobre o Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), contribui enormemente para que pesquisadores de todo o globo possam conhecer um pouco mais sobre a, ainda obscura, história da Internacional Sindical Vermelha (ISV). Embora em inglês e com preços proibitivos, ao menos agora sabemos que o livro está mais próximo.
Resenhista
Aruã Silva de Lima – Professor de História da Universidade Federal de Alagoas, Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisa esquerda, o movimento comunista internacional, o Partido Comunista do Brasil (PCB). E-mail: arualima@gmail.com/arua.lima@fsso.ufal.br
Referências desta Resenha
TOSSTORF, Reiner. The Red International of Labour Unions (RILU) 1920 – 1937. Brill; Historical Materialism Book Series, 2016. Volume 120. Resenha de: LIMA, Aruã Silva de. A Internacional Sindical Vermelha e a organização dos trabalhadores: revolução e contra-revolução, 1920-1937. História & Luta de Classes, ano 16, v.31, p. 128-132, mar.2021. Acessar publicação original [DR]
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