BERNSTEIN, Richard J. The Pragmatic Turn. Cambridge: Polity Press, 2012. Resenha de: CURY, Paula Maria Nasser. Principia, Florianópolis, v. 19, n.1, p.171–176, 2015.
Em sua versão clássica, o pragmatismo caracteriza-se por um marcante antagonismo ao dualismo substancialista e ao representacionismo cartesianos, propondo, em seu lugar, um anti-fundacionalismo que coloca em cheque o que Dewey certa vez denominou a busca pela certeza e a teoria epistemológica do espectador. Para os pragmatistas, a chave para a compreensão dessas questões está na relação constitutiva do sujeito-agente com o ambiente normativo e intersubjetivo das práticas sociais. Após um período de relativo descrédito no cenário acadêmico, especialmente a partir da década de 1950, quando passou a, progessivamente, ceder lugar à denominada filosofia pós-analítica, o próprio desenvolvimento da filosofia da linguagem parece ter levado, afinal, a uma retomada de interesse pelo pensamento de autores como Peirce, James e Dewey (p.x). Na obra The Pragmatic Turn, Richard J. Bernstein, filósofo e Vera List Professor of Philosophy na New School for Social Research em Nova Iorque, defende, entretanto, a tese de que a partir da segunda metade do século XIX pode-se verificar uma regularidade e continuidade na abordagem, por filósofos de diferentes tradições e ainda que incidentalmente, de temas que constituíram o núcleo do movimento pragmatista. O livro estrutura-se em prefácio, prólogo e nove capítulos, ao longo dos quais são desenvolvidos os três eixos temáticos que Bernstein se propõe a criticamente analisar: as principais contribuições de Peirce, James e Dewey ao pragmatismo clássico, nos três primeiros capítulos; a influência de Hegel no pensamento pragmatista e os conceitos de verdade, objetividade, justificação e experiência sob a ótica pragmática, nos três capítulos seguintes; a retomada contemporânea do pragmatismo através de Putnam, Habermas e Rorty, nos três capítulos finais.
O capítulo sobre Peirce (p.32–52) gira em torno de suas quatro críticas às inadequações do cartesianismo (p.32–9). Resumidamente, tratam-se dos argumentos de que (1) não dispomos de uma faculdade de introspecção, e que, portanto, nosso conhecimento do mundo interior deriva do raciocínio hipotético sobre o conhecimento de fatos exteriores; (2) não dispomos de uma faculdade de intuição espontânea, e que, portanto, nossas cognições derivam logicamente de cognições prévias; (3) não dispomos de uma faculdade de pensar sem recorrer a signos; (4) não dispomos de qualquer concepção daquilo que é absolutamente incognoscível. À questão da refutação do intuicionismo (ou mito do dado), Bernstein dedica uma análise mais pormenorizada (p.39–52), demonstrando, ao final, que o pragmatismo de Peirce consiste em uma alternativa viável não somente ao intuicionismo, mas também ao coerentismo e ao idealismo. É que Peirce constrói uma estratégia explanatória em que a autoridade epistêmica de nossas interpretações dos signos é considerada falível, podendo ser sempre desafiada por novas investigações. Assim, concilia elementos de diferentes tradições na construção do que Bernstein denomina sua via media epistemológica.
No segundo capítulo da obra (p.53–69), Bernstein se debruça sobre as consequências éticas do pluralismo pragmático de William James. Em James, pluralismo significa a impossibilidade de, a partir de princípios pragmáticos, reivindicar-se previamente uma unidade absoluta em relação a qualquer objeto de investigação (p.60).
A tese central de Bernstein é que o pluralismo pragmático não leva a um relativismo nos moldes do mito do contexto popperiano,1 consistindo, pelo contrário, em uma das respostas mais contundentes a ele (p.55). Assim, o pluralismo de James seria uma alternativa tanto ao atomismo epistemológico dos empiricistas tradicionais como ao monismo dos idealistas (p.58).
O terceiro capítulo da obra (p.70–88) investiga como a ideia de democracia de John Dewey pode contribuir para as práticas democráticas atuais. Dewey parte do pressuposto de que a democracia não é apenas uma forma majoritária de governo, mas também um modo de vida ético (p.72). Sua concepção é de uma democracia radical, que demanda profundas mudanças estruturais para a consecução de seus fins últimos — liberdade e individualidade para todos (p.76–7). É interessante a defesa de Bernstein de que Dewey ultrapassa as fronteiras do debate comunitarismo × liberalismo na medida em que afirma, por um lado, a essencialidade da participação democrática dos cidadãos em espaços públicos e comunidades mas, por outro, não considera o exercício comunitário da democracia incompatível com os verdadeiros ideiais do liberalismo (p.81–2). Entretanto, ao não especificar exatamente quais medidas as comunidades deveriam adotar para implementar esse modo de vida, a proposta de Dewey acaba perdendo em concreção e operacionalidade (p.82). Ainda assim, Bernstein defende que, na atualidade, a democracia radical de Dewey pode, ao menos, servir de motivação para que se repensem e revitalizem as democracias reais (p.88).
Com isso, conclui-se o primeiro eixo temático da obra e Bernstein passa a investigar, no capítulo quarto (p.89–105), a influência de Hegel no pensamento pragmatista.
Dewey se viu especialmente interessado na defesa hegeliana de uma realidade orgânica interrelacionada entre sujeito e objeto, matéria e espírito, humano e divino e na consequente dissolução das dicotomias características da tradição cartesiana (p.91). Peirce, apesar de suas raízes kantianas, acaba por admitir um alinhamento entre as ideias defendidas pelo pragmatismo e pelo idealismo absoluto (desenvolvido sob forte inspiração hegeliana) no que tange à formulação das categorias da primeiridade, secundidade e terceiridade (p.93). James, por vez, reconhece e endossa a contribuição de Hegel quanto à explicitação da natureza dos conceitos: recusando o caráter representacional estático comumente atribuído a eles, Hegel defende a dinamicidade dos conteúdos conceituais, dotados de uma dialética imanente (p.94).
Contudo, a postura em geral desdenhosa de James quanto ao idealismo alemão contribuiu para que Hegel fosse pouco estudado nos EUA até meados da década de 1950. A partir de então, fatores como o surgimento de uma nova esquerda americana ideologicamente ligada ao marxismo, a busca de uma alternativa à filosofia analítica para a compreensão do giro linguístico e, finalmente, a atuação de Wilfrid Sellars levaram a uma gradativa retomada de interesse pela obra hegeliana. Nesse contexto, surgem os chamados hegelianos de Pittsburgh, notadamente McDowell e Brandom.
O primeiro defende, com base em Hegel, que não há uma amarração prévia entre conceitos, e que é exatamente isso que nos garante acesso a uma realidade que, por um lado, se encontra no âmbito do conceitual e, por outro, é independente de nós (p.100). McDowell contesta, assim, a interpretação segundo a qual a filosofia do espírito não contemplaria a realidade independente ou exterior à mente. Para ele, o idealismo hegeliano pressuporia justamente a refutação da dicotomia entre o que está dentro e o que está fora do domínio conceitual (p.101). Já para Brandom, a principal contribuição de Hegel no que tange à compreensão da normatividade subjacente ao uso de conceitos está na asserção de que estados normativos são estados sociais e que, portanto, a normatividade que regula a atividade conceitual é implicitamente instituída através de práticas sociais (p.103).
O quinto capítulo de The Pragmatic Turn (p.106–24) trabalha os conceitos de verdade, objetividade e justificação. O autor preocupa-se em demonstrar que o pragmatismo não comporta uma teoria da verdade como correspondência. Recorrendo a Peirce, Bernstein retoma a ideia de que todo conhecimento pressupõe uma atividade inferencial (p.110). Ao mesmo tempo em que, portanto, o conhecimento não deriva da correspondência entre conceitos e fatos externos, é importante salientar que, em Peirce, ele também não é produto de um acordo entre a comunidade de atores envolvidos (como sugerem as teorias consensuais da verdade), mas da atividade investigativa crítica. A verdade assim apurada seria marcadamente falível, na medida em que não dispomos de nenhuma garantia que nos permita asseverar algo com absoluta certeza (p.112).
Essa concepção de Peirce, embora atrativa, contém problemas aos quais a proposta de Brandom se apresenta como alternativa viável, na ótica de Bernstein. Brandom argumenta que verdade, objetividade e justificação podem ser conectadas à dinâmica intersubjetiva de práticas sociais discursivas se se admite, por um lado, o primado da pragmática sobre a semântica e, por outro, que comprometimentos e intitulações geram normas que regulam o uso de conceitos (p.121). Bernstein enfatiza, a esse respeito, a importância da distinção entre as perspectivas eu-nós e eu-vocês.
Brandom recusa a perspectiva eu-nós, que privilegia o ponto de vista da comunidade, em favor da perspectiva eu-vocês. Nela, a ênfase é na relação entre os comprometimentos assumidos por um agente e os comprometimentos que ele atribui a outros.
Na medida em que realizam a distinção entre formas de aplicação de conceitos objetiva e subjetivamente corretas, ambos os pólos da relação são, temporariamente, privilegiados. A objetividade passa a se relacionar, assim, à forma de aplicação de conceitos, não a seu conteúdo (p.121).
O sexto capítulo, Experience after the Linguistic Turn (p.125–52), é aberto com a argumentação pela necessidade de uma compreensão adequada do conceito de experiência no pragmatismo como consequência do giro linguístico (p.129). Bernstein sugere elementos das obras de Peirce, James, Dewey e Mead que comprovariam essa relação consequencial.
A partir do sétimo capítulo de The Pragmatic Turn, tem início a abordagem do último eixo temático da obra, o pragmatismo na contemporaneidade. Quanto a Putnam, Bernstein considera especialmente interessante problematizar sua defesa da insustentabilidade da dicotomia fato × valor (p.153–67). O argumento de Putnam é que só podemos compreender conceitos como coerência, razoabilidade e plausibilidade se não os reduzirmos à dimensão factual, admitindo que eles são valores e envolvem avaliações normativas. Valores assumem, assim, um papel indispensável para a análise da correção e adequação do conhecimento: sem eles, não há fatos (p.157–8).
Outro ponto de destaque no capítulo sobre Putnam é sua tese de que todo conhecimento é perspectivista, envolve interesses humanos e de que a objetividade é, portanto, compatível com diferentes escolhas conceituais. Ela é, em suas palavras, uma “realização [achievement] conflitual em andamento” (Putnam 1990, p.21, tradução livre). Vista sob esse prisma, Bernstein coerentemente destaca que a pretensão de Putnam é sustentar que devemos nos organizar, enquanto comunidade ética, para promover as práticas sociais que possibilitem e ampliem o grau de objetividade em situações complexas (p.164).
O objeto do oitavo capítulo (p.168–199) é o pragmatismo de Jürgen Habermas.
Habermas vê em Peirce a possibilidade de reconstruir, de modo simultaneamente destranscendentalizado e analítico, as condições universais de possibilidade do discurso e da ação, compatibilizando a normatividade que constrange os atores no mundo da vida com a faticidade de formas de vida que se desenvolveram natural e contingentemente (p.169–71).
Admitindo que a abordagem do conceito de verdade unicamente a partir da perspectiva epistêmica não é suficiente para garantir a sua validade, Habermas afirma que aspectos pragmáticos também devem ser levados em consideração. Ele sugere um recurso às práticas cotidianas, em que agimos com base em certezas comportamentais, salvo quando encontramos oposições que nos levam a, discursivamente, tentar justificar nossas pretensões de verdade. Surge, assim, a noção de uma verdade com a face de Janus, que só pode ser encontrada no medium entre a ação e o discurso, e levanta uma necessidade pragmática de justificação satisfeita por meio da conversão de crenças em novas verdades comportamentais (p.184). O ponto alto do capítulo é o diálogo que Bernstein passa a travar com Habermas quanto à incorporação desses elementos pragmatistas em sua teoria. Nesse sentido, Bernstein concorda com Rorty quando este acusa Habermas de ignorar que, para Peirce, crenças são somente hábitos de ação, e, portanto, um discurso racional seria apenas um entre demais contextos de ação nos quais emerge uma espécie de certeza comportamental (p.186–7).
Por fim, o nono capítulo (p.200–16) cuida do humanismo de Richard Rorty. O texto foge ao estilo dos demais e aproxima-se de uma narrativa biográfica. Destacase, contudo, a justificativa de Bernstein para qualificar Rorty como humanista. Rorty define o pragmatismo como “a doutrina de que não há limitações à investigação, salvo as conversacionais” (Rorty 1982, p.165, tradução livre), ou seja, todas as limitações ou constrangimentos impostos a ela são produzidos pelo próprio homem. Por isso, a preocupação filosófica deveria deslocar-se da objetividade em direção à solidariedade (p.207). Na convicção de Rorty de que somos os únicos responsáveis pelas próprias limitações e que, portanto, não haveria nenhuma autoridade em que nos poderíamos apoiar para superá-las senão nós mesmos, repousaria o humanismo de Rorty, sustenta Bernstein (p.211).
Seguramente, a riqueza das exposições e dos argumentos empregados por Bernstein na defesa de seus posicionamentos escapa aos limites da presente resenha, que procurou, antes, demonstrar como o leque de autores e de discussões abordadas em The Pragmatic Turn contribui para uma compreensão aprofundada do pragmatismo clássico e de seus desdobramentos contemporâneos. Ao final, nos parece que o autor conclui com sucesso não somente seu intento principal, qual seja, demonstrar que temas centrais do pensamento pragmatista foram recorrentes na filosofia dos últimos cento e cinquenta anos, mas também um outro importante objetivo: analisar teorias, criticar suas insuficiências e oferecer alternativas a elas. O leitor pode esperar da obra, assim, muito mais do que uma descrição do ideário pragmatista de ontem e de hoje. Ao longo das páginas de The Pragmatic Turn, experimentamos o desenvolvimento de argumentos próprios por parte de um autor que dialoga com as suas fontes e não se omite quando se trata de fixar seus pontos de vista.
Referências
Bernstein, R. J. 2012. The Pragmatic Turn. Cambridge: Polity Press.
Putnam, H. 1990. Realism with a Human Face. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
Rorty, R. 1982. Consequences of Pragmatism. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Notas
1 O mito do contexto sugere que estejamos de tal forma presos em nosso contexto teórico, linguístico e pré-conceitual que não nos conseguimos mover para além dele e nos comunicar com outros contextos que apresentem diferenças substanciais em relação ao nosso. Tratarse- ia, nesse sentido, de uma incomensurabilidade contextual (Bernstein 2012, p.54).
Paula Maria Nascer Cury – Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg. ALEMANHA paulanasserc@gmail.com
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