Casos emblemáticos como Philip Morris v Austrália e Vattenfall v Alemanha mais uma vez colocam sob escrutínio público os acordos internacionais de investimento, em geral pouco debatidos fora do diminuto conjunto de juristas que os estuda academicamente. A negociação dos chamados acordos megarregionais, como o TPP e o TTIP, e mais recentemente a renegociação do capítulo de investimento do NAFTA reforçam a importância de discutir esse assunto1. Nesse contexto, The Political Economy of the Investment Treaty Regime busca abordar o tema a partir das áreas da Economia e da Política Internacional. A obra foi elaborada em coautoria pelo australiano Jonathan Bonnitcha, professor de Direito na Universidade de Nova Gales do Sul; o sueco Lauge Poulsen, do Departamento de Ciência Política da University College London; e o austríaco Michael Waibel, da Universidade de Viena. Publicado pela editora da Universidade de Oxford, o livro é dividido em nove capítulos que exploram diversos aspectos do emaranhado de tratados de investimento que constituem o elemento central na regulação global do investimento estrangeiro.
Afinal, é possível falar em um regime internacional de investimento? O primeiro capítulo busca caracterizar o acervo normativo formado por tratados de investimento, normas procedimentais e sentenças arbitrais dentro da tipologia de regime criada por Krasner. A resposta é muito mais intricada que mero sim ou não. Não se pode falar em um único regime internacional de investimento, mas em múltiplos que se sobrepõem e resultam em um complexo de regimes. No entanto, o regime formado pelos tratados de investimento continua central, visto que a capacidade de enforcement encontrada nas suas regras procedimentais não encontra paralelo nos outros regimes que compõem o complexo.
No Capítulo 2 os autores exploram a interação entre as literaturas econômica e jurídica acerca do investimento estrangeiro. Os modelos econômicos tradicionais, como o Heckscher-Ohlin, não são suficientes para compreender os fluxos internacionais de capital. Nem a troca de investimento entre economias avançadas, tampouco a atuação de países em desenvolvimento como importantes exportadores de capital são previstas dentro desse quadro teórico. As análises mais recentes pautam-se em fundamentos microeconômicos, isto é, a nível de firma e não de economias nacionais para explicar os fluxos de investimento. Consequentemente, não é possível atribuir ao investimento estrangeiro efeito necessariamente positivo ou negativo sobre o desenvolvimento econômico. Para isso, seria necessário entender as particularidades do investimento específico e as condições do país receptor. Logo, a prática vigente no regime de cobrir quase todo tipo de ativo estrangeiro no país anfitrião não encontra sustentação na literatura econômica recente. A ligação entre desenvolvimento e atração de investimento estrangeiro, que se apresenta como objetivo da assinatura dos acordos, é perdida.
No capítulo 3 do livro, analisa-se a característica mais polêmica do regime e que vem suscitando as mais relevantes discussões no campo da Economia Política Internacional: a arbitragem investidor-Estado como mecanismo central de solução de controvérsias. Os autores contrastam a arbitragem de investimento a outras formas de resolução de controvérsias, como tribunais nacionais, arbitragem entre Estados e até mesmo mecanismos de outros regimes internacionais, como o uso da Corte Europeia de Direitos Humanos para solução de disputas de investimento2. São apresentadas e discutidas algumas características-chaves da arbitragem de investimento com destaque para algumas assimetrias procedimentais que favorecem o investidor, como o consentimento unilateral à arbitragem oferecida pelos Estados ao assinar tratados de investimento e a prerrogativa dos investidores de iniciarem o procedimento. Nesse capítulo, os autores também exploram a função dos órgãos que oferecem apoio administrativo a esses processos como o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (ICSID), a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) e a Corte Permanente de Arbitragem (CPA); e as diferenças entre as regras procedimentais dentre as quais os investidores podem escolher. Finalmente, são descritas em pormenores as etapas que compõem um processo arbitral desde a notificação da intenção de iniciar a ação pelo investidor até o cálculo da indenização, em caso de condenação3.
No capítulo 4, os autores se debruçam sobre os padrões de tratamento, o direito substantivo estabelecido pelos tratados de investimento. Destaca-se a distinção entre padrões relativos e absolutos de tratamento. Os padrões relativos são dados tomando como base o tratamento que o Estado anfitrião dá aos seus próprios nacionais ou a estrangeiros de uma terceira nacionalidade. Já os absolutos garantem proteção contra a atuação estatal independentemente de como outros investidores ou investimentos são tratados4. O entendimento desses últimos ainda não é pacificado entre os juristas o que leva a incoerências em relação a como são interpretados caso a caso. A discricionaridade concedida aos árbitros na aplicação dessas cláusulas faz com que padrões absolutos sejam invocados pelos investidores mais frequentemente que os relativos, numa tentativa de obter sentenças favoráveis. Também neste capítulo são abordadas exceções temáticas (carve-outs) que alguns acordos têm deixado fora do alcance da arbitragem investidor-Estado como saúde, meio ambiente, direitos trabalhistas e tributação, e as implicações dessas exclusões para o regime.
Os capítulos 5 e 6, voltam-se para os efeitos econômicos dos tratados de investimento. No primeiro deles, exploram-se aspectos microeconômicos dos tratados, isto é seu efeito sobre as decisões específicas de investimento das firmas e dos governos. A análise dessas considerações microeconômicas ajuda a compreender as justificativas usadas para a promoção dos acordos de investimento. Em vários dos casos, modelos teóricos apoiam o argumento de que os acordos de investimento podem levar a uma situação de maior eficiência que na sua ausência. No entanto, se reconhece a ausência ou fraqueza de estudos empíricos que confirmem essas teses.
O capítulo seguinte volta-se para o efeito dos tratados sobre o fluxo de investimento e a promoção de desenvolvimento para os países signatários – tema que é de especial interesse para os países em desenvolvimento, que veem nesses acordos importantes ferramentas de atração de investimento. Pesquisas recentes apresentam resultados mistos quanto à existência de efeito positivo da assinatura de tratados bilaterais de investimento (BITs) sobre a entrada de investimento estrangeiro. Boa parte do capítulo é dedicada a explorar os desafios metodológicos enfrentados na avaliação do impacto dos BITs sobre o recebimento de investimento.
Segue-se com a análise das motivações que levam países desenvolvidos a aderir ao regime de tratados de investimento (Capítulo 7). Os achados dos autores reforçam o ponto de vista de que os países desenvolvidos iniciaram a onda de BITs nos anos 1980 em resposta à articulação dos países em desenvolvimento na Assembleia Geral da ONU, que foi enxergada como hostil aos direitos de propriedade. Isso contradiz a visão de que o regime foi impulsionado pela ação direta dos investidores, em geral apáticos aos tratados de investimento, ou com objetivo de isolar os governos dos efeitos políticos das disputas de investimento, que é justamente o oposto do que veio a acontecer.
Uma questão ainda mais complicada é entender por que os países em desenvolvimento foram tão ávidos em assinar BITs nos anos 1990, visto que na posição de anfitriões dos investimentos as obrigações dos acordos recairiam exclusivamente sobre eles (Capítulo 8). Essa atitude aparentemente despropositada advém de dois fatos (1) o abandono das políticas de industrialização por substituição de importação e a opção pela liberalização nos anos 1990 e (2) a subestimação do risco envolvido na assinatura dos BITs, que consiste na possibilidade de ser processado via arbitragem de investimento. No entanto, não foi apenas no Sul Global que houve surpresa com a série de litígios na década de 1990. Países do Norte haviam assinado acordos de investimento entre si, o que os expôs a ações de investidores de parceiros comerciais também desenvolvidos5. Em ambos os casos, o susto inicial resultou em maior cautela na negociação desses tratados.
O capítulo final da obra discorre sobre a recente crise de legitimidade enfrentada pelo regime dos tratados de investimento. Essa crise decorre do fato de que políticas públicas importantes foram alvo da arbitragem investidor-Estado. Apesar de ter como base a arbitragem comercial, esse mecanismo vem assumido um papel de controle cada vez mais similar ao que é em geral desempenhado pelas cortes nacionais. O foco do debate é sobre o regulatory chill, isto é, a capacidade de imobilizar ou retardar a ação do Estado frente uma política pública. No entanto, também são abordadas algumas outras características polêmicas desse tipo de arranjo institucional como: baixa transparência, conflitos de interesses entre as partes e os árbitros, inconsistência das decisões arbitrais e inexistência de obrigações aos investidores.
Sem dúvida, a obra já se justificaria enquanto síntese dos estudos sobre os acordos de investimentos. No entanto, para além da revisão de literatura, introduzem-se avanços claros frente o estado da arte como a distinção entre o regime dos tratados de investimento e o complexo de regimes de investimento dentro do qual ele está inserido. Mesmo quando não inovam, é visível o esforço dos autores de apresentar análise aprofundada e crítica dos trabalhos citados. Tendo em vista o nível de abstração envolvido, a oferta de casos concretos como exemplos favorece a compreensão, a começar pelo prefácio que traz o caso Alemanha v Vattenfall para dar tom ao começo da leitura.
A emergência de fenômenos recentes significativos na área da economia política internacional, como o movimento de renovada rejeição ao regime na América Latina, torna a obra ainda mais relevante. O conhecimento das deficiências e idiossincrasias dos tratados de investimento é de especial importância aos pesquisadores e formuladores de políticas de países em desenvolvimento, que via de regra são os mais atingidos pelos processos arbitrais. Porém, mesmo os países desenvolvidos têm tomado medidas, ainda que mais reformistas e moderadas em comparação às suas análogas no Sul Global, para impedir as disfuncionalidades apresentadas pelos tratados de investimento.
A opção por uma abordagem holística do assunto pode ajudar a trazer novas perspectivas àqueles que concentram suas pesquisas em apenas um dos aspectos do regime. A linguagem relativamente simples e acessível, tendo em vista a complexidade do tema, ajuda a compensar a barreira linguística e torna possível que pesquisadores que não têm formação específica na área ou que buscam se inteirar sobre investimentos estrangeiros possam desfrutar da obra como primeiro contato com o tema. De qualquer forma, os autores podem dar como alcançado o objetivo declarado de fazer o leitor refletir tanto o aspecto jurídico, quanto o político e o econômico dos acordos internacionais de investimento.
Notas
1 As siglas referem-se respectivamente à Parceria Transpacífica, à Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento e ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte.
2 Para um caso emblemático, veja Yukos v Rússia, um processo submetido à corte europeia em paralelo à arbitragem investidor-Estado.
3 São destacadas cinco etapas principais do processo de arbitragem (1) notificação pelo investidor, (2) estabelecimento do tribunal, (3) julgamento em relação à jurisdição do tribunal, (4) julgamento em relação aos méritos da ação e (5) cálculo da indenização. Para além disso, a sentença pode passar por uma comissão de anulação caso haja contestação em relação à lisura procedimental do processo. Em alguns casos a execução da sentença tem que ser pleiteada em tribunais nacionais.
4 Padrões relativos, como tratamento nacional e de nação mais favorecida, também são encontrados em tratados de comércio. Já os padrões absolutos (proibição à expropriação, tratamento justo e equitativo, cláusula guarda-chuva e livre transferência de fundos) são exclusivos de tratados de investimento.
5 Nesse contexto, o NAFTA merece menção por ter dado origem a uma série de ações atípicas Norte-Norte entre Canadá e Estados Unidos. Segundo Anderson (2017) isso teve papel fundamental na deflagração da crise de legitimidade pela qual passa o regime na atualidade, explorada mais profundamente no Capítulo 9 do livro.
Referências
ANDERSON, Greg. How did investor-state dispute settlement get a bad rap? Blame it on NAFTA, of course. The World Economy, v. 40, n. 12, p. 2937-2965, 3 jul. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1111/twec.12515. Acesso em: 12 out. 2020.
BONNITCHA, Jonathan; POULSEN, Lauge N. Skovgaard; WAIBEL, Michael. The Political Economy of the Investment Treaty Regime. Oxford: Oxford University Press, 2017.
Resenhista
Lucas Silva Amorim – Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais (UFPB). ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-8993-9967. E-mail: lucas.amorim1@outlook.com
Referências desta Resenha
BONNITCHA, Jonathan; POULSEN, Lauge N. Skovgaard; WAIBEL, Michael. The Political Economy of the Investment Treaty Regime. Oxford: Oxford University Press, 2017. Resenha de: AMORIM, Lucas Silva. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.9 n.17, p.562-568, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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