MAZUR, Peter A., The New Christians of Spanish Naples, 1528-1671: A Fragile Elite, Basingstoke, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2013. 197 pp. Resenha de: TAVIM, José Alberto. Ler História, n. 67, 2014.
1 A presente obra de Peter Mazur versa uma comunidade periférica em duas dimensões fundamentais: a sua situação na esfera da soberania espanhola, mas num reino exterior à Península Ibérica, ainda que económica e estrategicamente crucial no contexto da península italiana e do Mar Mediterrâneo – o reino de Nápoles -; e também numa posição geograficamente “extrema” face às outras comunidades de conversos que viviam maioritariamente em Espanha, Portugal e nos seus domínios ultramarinos. Talvez a única comunidade que se aproxima desta, em termos de uma mesma singularidade, é mais antiga dos conversos portugueses que residiam nos Países Baixos sob domínio espanhol, nomeadamente naquela que foi a grande capital económica do norte europeu – a cidade de Antuérpia – e onde pontificaram as famílias Ximenes, Rodrigues d´Évora e Veiga1. Contudo, excepto na primeira metade do século XVI, onde por ordem do imperador Carlos V (1516-1558) se realizaram investigações sobre a idoneidade religiosa do famoso Diogo Mendes (Benveniste) e seus homens, não se verificou aqui o estabelecimento de um braço da Inquisição como no reino de Nápoles. Tal facto vai moldar uma forma de actuação distinta da comunidade conversa do reino de Nápoles cindida, também ao contrário do que acontecia nos Países Baixos Espanhóis, entre conversos de origem aragoneses e conversos de origem portuguesa, chegados mais tarde. E é esta diacronia controversa, de pessoas de origem conversa, de diferentes longitudes, agindo como gente de negócios, de conselheiros e de informadores das autoridades napolitanas, e com parentes permanecendo na Península Ibérica, frequentemente apanhada por uma teia inquisitorial segundo o modelo ibérico, que o livro de Peter Mazur nos dá conta.
2 O livro está constituído por cinco capítulos. Os dois primeiros – “1: From Jews to New Christians: Religious Minorities in the Making of Spanish Naples”, e “2: Conversos in Counter-Reformation Italy” – possuem uma visão geral e de contextualização da evolução identitária e social destes grupos de origem judaica, no reino de Nápoles sob domínio espanhol. Os dois seguintes – “3 – ´El de los Catalanes´: The First Campaign against the New Christians, 1569-1582”, e “4 – The Rise of the Portuguese Merchant-Bankers, 1580-1648” – analisam outra dimensão fundamental, de uma forma mais específica, ou seja, a existência de dois grupos de origem conversa, que se estabeleceram no reino de Nápoles em momentos diferentes, sendo ambos alvo de perseguição sócio-religiosa. Trata-se de uma realidade que diferencia esta comunidade de outras, como a dos Países-Baixos, constituída maioritariamente por indivíduos de uma só origem – a Portuguesa – e recorda o que aconteceu em outras paragens orientais, por exemplo em Monastir, na actual República da Macedónia, em que judeus de origem aragonesa e portuguesa, seguidos de conversos das mesmas origens (mas que ali assumiram uma identidade judaica) se estabeleceram, mantendo a sua idiossincrasia, mesmo de forma conflituosa2. Mas, como já acentuámos, e como se denota pelo título do capítulo 3, em Nápoles lidamos com um conjunto de pessoas que não podiam assumir uma identidade judaica (os judeus foram expulsos em 1541), e portanto estamos também perante uma realidade bem diferente daquela que se vislumbra no Império Otomano3. O capítulo cinco apresenta um enfoque ainda mais específico – como que uma micro-história exemplar do dilema que caracterizou este grupo e o diferenciou como permanecendo fora da Península Ibérica e seus territórios ultramarinos – “The Inquisition against the Vaaz”.
3 Além da “Conclusion” saliente-se a publicação de um valiosíssimo apêndice documental intitulado “Documents from the 1569-1581 Campaign” (ou seja, contra os conversos de origem catalã). Trata-se da transcrição de algumas peças fundamentais de suporte, como processos inquisitoriais pertencendo ao fundo Sant´Ufficio do Archivi Storico Diocesano di Napoli, mas também cartas do fundo Stanza Storica do Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede, no Vaticano. A obra assenta também num conjunto largo de fontes impressas, e de uma bibliografia especializada, quer sobre Nápoles, quer acerca dos cristãos-novos e suas rotas de negócios, e ainda acerca da actuação e evolução dos Tribunais Inquisitoriais. Saliente-se ainda a existência de um precioso Índice Geral.
4 O resultado é uma obra sólida, de documentos bem analisados e interpretados, à luz dos conhecimentos adquiridos em obras de suporte, que permitem ao autor captar a já referida especificidade da vida destas elites de origem judaica no sul da Itália.
5 É esta demonstração de uma especificidade, revelando como as elites de origem conversa agem em função do contexto que encontram, mesmo sob o domínio de uma Coroa Ibérica, o cerne de um trabalho científico conseguido. Citando o autor:
“This research joins that of a growing number of scholars who have shifted their gaze beyond the question of converse religious identity and toward an understanding of the place that they occupied in the societies of Spain and Portugal and their territories across the globe” (p. 7).
6 Salientemos as páginas em que recorda, no primeiro capítulo, as condições que explicam a oposição e mesmo a insurreição da população e das elites do reino contra a instalação de uma Inquisição segundo o modelo espanhol (revolta de Maio de 1547), porque tal afectaria os laços de convivência social e económica com os dinâmicos cristãos-novos de origem ibérica; mas também porque sentiam que a instauração desse modelo de tribunal religioso representava a intromissão de uma política espanhola centralista, que se mostraria negativa para a prossecução dos interesses tradicionais locais. O facto de, mesmo quando foram instaurados processos contra os cristãos-novos, se verificarem tensões entre os funcionários do Santo Ofício e os vice-reis, mostra que a implantação de um tribunal religioso sob o controle das autoridades napolitanas facilitou em muito a permanência destas famílias de cristãos-novos no reino, “substituindo” em outra dimensão, aquela que havia sido a necessária estadia dos judeus em Nápoles até 1541. De facto, segundo o modelo romano finalmente aprovado, o vice-rei passou a ter direito de veto, limitando por exemplo o poder do Santo Ofício no confisco da propriedade dos heréticos e seus familiares. Um dos motivos apontados para esta solidariedade entre muitos dos vice-reis e os grupos de cristãos-novos é o facto de aqueles necessitarem destes para a construção, “in loco”, de um estado moderno, ou seja, à margem do poder da aristocracia terra-tenente local.
7 Após a contextualização muito bem conseguida, no capítulo dois, da política gizada em relação aos judeus e conversos, em vários estados da Itália, no século XVI, e da forma diferenciada de operacionalidade da Inquisição Romana em relação às Hispânicas, Peter Mazur passa a analisar, nos dois capítulos seguintes, a situação social dos dois grupos de cristãos-novos estabelecidos no vice-reinado, e a reacção inquisitorial face a estes.
8 O capítulo três – ´El de los Catalanes´ – traça o devir histórico do grupo mais antigo de conversos, de origem catalã, também alvo da primeira incidência da Inquisição entre 1569 e 1582, que produziu 15 volumes de documentação e devastou por exemplo o poderoso clã dos Pellegrino, interrompendo a sua ascensão social e a sua posição nos assuntos financeiros do vice-reinado. Mas como outros clãs, como os Sanchez, raramente foram tocados, o grupo, em geral, manteve a sua actividade. Os Sanchez, por exemplo, foram mesmo elevados ao marquesado, chegando a ser governadores de cidades tão importantes como Àquila, Nola, Bari, Taranto, Cápua e outras. Um membro de outra importante família de conversos de origem catalã – Girolamo Vignes – foi mesmo chamado para lidar com as questões financeiras dos colégios jesuítas e missões estabelecidas no sul da Itália e no estrangeiro. Na verdade, como acentua Peter Mazur, a campanha inquisitorial napolitana de 1569-1582, mais que erradicar fenómenos de criptojudaísmo, afinal acelerou o processo de assimilação destes conversos na sociedade local, através de um processo de aculturação, casamentos mistos e adaptação.
9 Os vice-reis continuaram contudo a ter necessidade de auxílio nos sectores administrativo e financeiro, sobretudo face à pressão fiscal de Espanha. Foi então que outro grupo de cristãos-novos, de origem portuguesa, aliciados por esta oportunidade, e usufruindo das prerrogativas da União Dinástica de 1580, decidiram estabelecer-se também em Nápoles, desempenhando o papel que coubera agora aos assimilados catalães. É este o grupo alvo do quarto capítulo – “The Rise of the Portuguese Merchant-Bankers, 1580-1648)” – constituído por famílias como os Vaz (Vaaz ou Vaez), negociando em grão, cochinilha, lã e seda, entre outras mercadorias. A figura mais famosa desta família seria Miguel Vaz, que cerca de 1610 entrou ao serviço do vice-rei Pedro Fernández de Castro, conde de Lemos, administrando o reino em seu favor, como por exemplo quando controlou a alfândega de Benevento. E tal como os Catalanes, mostrou-se interessado na aquisição de propriedades, como parte essencial da sua estratégia de investimento e afirmação social. O autor também demonstra que os Vaz revelaram uma inegável lealdade para com a Coroa Espanhola, mesmo nos momentos mais conturbados de revolta da população napolitana.
10 No entanto, a princípio, este isolamento dos Vaz não lhes foi benéfico. Embora tivessem sucesso nas suas estratégias de aliança com a nobreza local, nunca conseguiram juntar-se a importantes linhagens, de forma a fazer crescer as suas propriedades e prestígio. Pelo contrário, investiram mais na endogamia – no casamento entre primos – de forma a manter intacto o seu património. E, embora tal como os catalães apostassem no “low profile” para evitar problemas, acabaram por ser alvo, devido à sua idiossincrasia, no século XVII, da pena de alguns influentes observadores da sociedade napolitana.
11 É então o momento de compreender a investida da Inquisição contra os Vaz, objecto do capítulo cinco desta obra. A situação é complicada, com a existência de dois tribunais da Inquisição – o local e o outro criado pela Congregação do Santo Ofício Romano, insatisfeita com a autonomia e registo desigual da corte episcopal. Os Vaz atraíram as atenções quando em 1616 três nobres denunciaram Duarte Vaz, conde de Mola, por práticas judaicas, contando a Inquisição com o apoio do duque de Osuna, Pedro Téllez-Girón, que via naquele um perigoso especulador, contrário a um bom governo. As confissões de Duarte e seus familiares fizeram com que se insinuasse o clássico tópico da “conspiração marrana”. Em 1661, no Santo Ofício de Roma, verificou-se a abjuração de Vaz, que foi considerado formalmente apóstata, sentenciado a cárcere perpétuo e a uma multa de 2.000 ducados. Também nessa data o vice-rei Gaspar de Bracamonte y Guzmán, conde de Peñaranda, aproveitou para ordenar, em Nápoles, o confisco dos seus bens. Foi no entanto a incidência da aristocracia local em manter os seus privilégios que salvou de um destino pior os cristãos-novos portugueses. Quando o inquisidor Camillo Piazza se atreveu a prender um criado do duque de Noci teve que fugir do vice-reinado, temendo pela sua vida. E chegou mesmo a ser produzido um tratado contra as consequências dos excessos da Inquisição nas prerrogativas dos cidadãos napolitanos. A agitação dos representantes populares e da aristocracia em favor dos Vaz, para que o rei repusesse os seus direitos, devem entender-se assim mais no contexto do receio da imposição de um regime autoritário em Roma, no qual as condenações ordenadas pela Igreja serviriam para enriquecer e fortalecer excessivamente o Estado. E embora os Vaz tivessem de facto recuperado em parte as suas propriedades e títulos, o seu destino assemelhar-se-ia ao dos cristãos-novos catalães: transformaram-se numa nobreza rural, visto que não conseguiram competir com a nova geração de permissivos cobradores de impostos e de funcionários régios.
12 A conclusão assinala os principais vectores que, segundo o autor, minaram a vitalidade da rede sefardita no início do século XVIII, e termina mostrando como um dos mais poderosos sinais reveladores da plena integração destes grupos na sociedade napolitana é o facto de se tornarem indistintos da sociedade circundante.
13 Seria interessante saber se houve alguma aproximação entre os dois grupos de cristãos-novos catalães e portuguesas, mesmo depois da sua “ruralização”. Mas sem dúvida que estamos perante uma obra segura, que conjugando material vário, analisado em profundidade, permite perscrutar a idiossincrasia adaptativa destes grupos de pessoas. Enfim, de forma prosaica, leva-nos para o Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, nos anos cinquenta do século XX, nos apresenta um Don Fabrizio siciliano consciente que a classe aristocrática terra-tenente – uma classe tão ambicionada pelos variados peões do prestígio e do poder – em Maio de 1860, perante o desembarque de Giuseppe Garibaldi, está inexoravelmente a perder a supremacia: só então.
Notas
1 Vide, entre outros, J.A Goris, Étude sue les colonies marchandes meridionales (Portugaises, Espagno (…)
2 Vide Jennie Lebel, Tide and Wreck. History of the Jews of Vardar Macedonia, Bergenfeld, Avotaynu, 2 (…)
3 Entre outros vide Joseph Hacker, “The Sephardim in the Ottoman Empire in the Sixteenth Century”, in (…)
José Alberto Tavim – Instituto de Investigação Científica Tropical.
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