É inegável a emergência dos direitos humanos no plano internacional a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Não obstante, essa ascensão normativa é acompanhada por certo ceticismo, sobretudo no que concerne às teorias que buscam explicar o que são os direitos humanos. No livro intitulado The Idea of Human Rights, Charles R. Beitz procura justamente trazer um conceito mais adequado, assim como certas bases para uma operacionalização desses direitos, retirando suas premissas da prática política internacional ao invés de partir de princípios abstratos.
Charles R. Beitz é professor de filosofia política do Departamento de Ciência Política da Universidade de Princeton. Seus estudos estão focados em teoria política global, teoria democrática e teoria dos direitos humanos. O livro aqui tratado é uma contribuição para esta última linha de pesquisa. A obra é motivada por dois aspectos centrais: a) direitos humanos tornaram-se uma prática elaborada no plano internacional e b) a prática e o discurso internacional ainda reclamam ceticismo.
Ao introduzir o livro, Beitz já sistematiza suas duas preocupações centrais. Na primeira parte da introdução, ele destaca assuntos que causam ceticismo quanto aos direitos humanos; teorias que serão discutidas; bem como dá uma breve apresentação do que será a sua abordagem proposta na obra: uma teoria prática decorrente da ação política e doutrinária no plano internacional.
Após introduzir os principais aspectos a serem tratados na obra, Beitz inicia o segundo capítulo buscando descrever os elementos da prática dos direitos humanos. Para tanto, o autor divide-o em cinco partes: na primeira, ele trata das origens dos direitos humanos; na segunda, ele traz aspectos da doutrina internacional, enfatizando a normatividade desses direitos, a heterogeneidade e o caráter não estático da doutrina; na terceira parte, Beitz enfrenta algumas questões ligadas à implementação dos direitos humanos no plano internacional; nas duas últimas partes, o autor enfrenta a ideia de prática emergente e os problemas que permeiam essa ação.
Nos terceiro e quarto capítulos, Beitz analisa duas abordagens teóricas que procuram responder o questionamento do que seriam direitos humanos. A primeira é o que ele chama de teorias naturalísticas; já a segunda é definida como teorias de concordância (agreement theories). Ambas são vistas como percepções distorcidas da doutrina internacional de direitos humanos, já que Beitz a vê como prática construída para ter um papel central na vida política global, e não a partir de aspectos filosóficos.
As teorias naturalísticas foram desenvolvidas a partir do pensamento político e legal europeu do início do período moderno, por meio de ideias de filósofos como Locke, Grócio, Pufendorf, etc. Nessa concepção, direitos humanos partiriam de direitos naturais pretéritos. A partir daí, advém o entendimento de que direitos humanos são direitos possuídos por todos os seres humanos (em todos os tempos e lugares) simplesmente em razão de sua humanidade. Seria, portanto, uma tese filosófica; não histórica.
Beitz discorre sobre as premissas centrais das teorias naturalísticas e traz sua crítica no sentido de entender não serem elas as mais adequadas. Nas suas análises, o autor não pretende refutar essas teorias; todavia, discordar da relevância normativa delas para resolver os dilemas principais sobre direitos humanos internacionais.
Beitz centra seu pensamento no fato de as questões de direitos humanos no plano internacional advêm do desenvolvimento de práticas políticas e sociais contemporâneas. Elas devem servir como referências e bases comuns (common grounds) para ações políticas para pessoas situadas em culturas diferentes, com tradições diferentes. Nesse sentido, ele inicia o capítulo quatro tratando das teorias de concordância.
As teorias de concordância conceituam direitos humanos como padrões que são ou devem ser objetos de concórdia entre membros de culturas as quais valores morais e políticos diferem em vários aspectos. A aceitação considerável dessas teorias em muito se dá por sua oposição às teorias naturalísticas, já que estas visariam universalizar valores originários em certas culturas os quais não são compartilhados por outras.
Não obstante, a ideia de que direitos humanos seriam apenas aqueles direitos tratados consensualmente não parece plausível para o autor. Os direitos humanos, na visão de Beitz, são discursos críticos que guiam a ação política internacional e a falta de consenso geral não nega a existência de ações no sentido de resguardar alguns desses direitos.
No capítulo cinco, Beitz apresenta sua alternativa teórica. Inicialmente ele traz as ideias de Rawls em Direito dos Povos, de onde ele irá retirar as bases de sua teoria. Nesse sentido, o autor evolui seu pensamento a partir da concepção de que existiria uma Sociedade dos Povos a qual seria regulada pelo Direito dos Povos.
Num segundo momento, Beitz apresenta a concepção prática. A partir desse entendimento, tem-se a doutrina e a prática de direitos humanos na esfera política internacional como as fontes materiais para a construção da concepção de direitos humanos. Essa ideia prescinde de qualquer concepção filosófica sobre a natureza e as bases dos direitos humanos. De acordo com a prática internacional, direitos humanos seria o nome de uma empresa coletiva internacional com propósito distintivo e modos de ação.
Em seguida, o autor entra em um dos pontos principais do seu trabalho: o modelo teórico de dois níveis. Esse modelo seria composto por três elementos. O primeiro identifica os direitos humanos como normas que têm como intuito proteger interesses individuais urgentes contra certas ameaças previsíveis (standard threats). O segundo corresponde ao primeiro nível: a proteção dos direitos humanos deve ser feita primeiramente pelas instituições políticas dos Estados. Já o último elemento trata do segundo nível, o qual se refere ao entendimento de que direitos humanos é objeto de preocupação internacional.
Depois de adentrar em cada um dos elementos, buscando clarificá-los, Beitz passa a discutir dois outros tópicos considerados importantes. Um seria o problema do que ele chama de manifesto rights, que configuram direitos com pouco respaldo para ação política, no entanto, continuam sendo um guia de ação para agentes – uma espécie de direcionamento. O outro tópico versa sobre o papel dos Estados, aqui ele enfatiza o caráter estadocêntrico de seu modelo – mesmo assim, o autor não nega a existência e importância de outros atores não-estatais.
O modelo de dois níveis serve principalmente para conceitualizar direitos humanos. Não obstante, há ainda a necessidade de retirar suas bases e determinar seu conteúdo. Esses objetivos são tratados pelo autor no capítulo seis, que cuida da normatividade.
Ao discutir a normatividade de sua teoria, Beitz traz conceitos de Sociedade Anárquica, de Hedley Bull, no sentido de ressaltar que os Estados estabelecem certas regras e normas. Essas normas internacionais definem a esfera de autonomia dos Estados, eles se valem delas contra interferências coercitivas externas. Mas essas normas também servem para regulação dos Estados, agentes não-estatais e indivíduos e, por vezes, funcionam como base para críticas e até sanções advindas da Sociedade de Estados.
Ao discutir a normatividade, Beitz usa um esquema dividido em três partes: 1 – o interesse a ser protegido por um direito seja suficientemente importante para ser visto como uma prioridade política; 2 – que seja vantajoso proteger o interesse por instrumentos políticos e legais disponíveis pelo Estado; 3 – que a falha seja objeto passível de preocupação internacional. Nesse esquema, ele busca justificar o conteúdo da doutrina de direitos humanos.
Beitz finaliza o capítulo seis lidando com a questão da tolerância para definir limites para as ações externas – temperar as ações entre excessos e negligências. Assim, ele distingue tolerância e autodeterminação. Utiliza mais uma vez Rawls para achar os limites da ação externa a partir da ideia de sociedades “decentes” e liberais. Seriam elas duas sociedades as quais seguiriam o Direito dos Povos, sendo membros plenos da Sociedade dos Povos e assim não passíveis de intervenções externas. Contudo, de acordo com as premissas rawlsianas, não haveria obrigação de se tolerar sociedades que não fossem nem “decentes”, nem liberais.
Assim, concluindo a parte de normatividade, Beitz pondera que os direitos humanos são guias para ações em casos de violação, mas as formas de ação e a intensidade delas dependem do contexto.
No último capítulo, Beitz procura sair dos aspectos de abstrações teóricas e passa a investigar casos concretos. Desse modo, ele analisa três casos difíceis (hard cases). Seriam eles o caso dos direitos contra a pobreza, os de participação política e o referente à proteção da mulher. Em cada um, ele procura revelar a existência dos direitos a partir da prática internacional e investigar problemas específicos presentes neles – fato que os tornam casos difíceis. Para suas análises, Beitz aplica os aspectos teóricos desenvolvidos ao longo da obra.
Nas suas conclusões, Beitz retoma a problemática do ceticismo teórico (conceitual e normativo) no tocante aos direitos humanos, o que ele chama de resíduos de ceticismo; além de também identificar outros comportamentos céticos os quais ele intitula como sendo patológicos. Nesse sentido, o autor reafirma a concepção de direitos humanos como autoridade moral a qual proporciona, mesmo que por vezes de forma inadequada, capacidade de agir. Assim, direitos humanos são padrões racionais para ações, seu conteúdo normativo é de certa forma aberto e sua aplicação é frequentemente contestada. Mas isso é normal, partindo do entendimento do autor de que se trata ainda de uma situação de normatividade emergente.
Resenhista
Mikelli Ribeiro – Doutorando em Ciência Política (UFPE). E-mail: mikelli.lucas@gmail.com
Referências desta Resenha
BEITZ, Charles R. The Idea of Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2009. Resenha de: RIBEIRO, Mikelli. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.3, n.6, p.329-334, jul./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]
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