Ao nos aproximarmos do vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlin, a prolixidade acadêmica acerca da Guerra Fria continua firme e forte. Assim como The Cold War: A New History, de John Gaddis (resenhado na edição 1/2006 desta revista), o livro de Arne Westad traz novas interpretações, baseadas em arquivos recém-abertos dos Estados Unidos, da União Soviética e de diversos países do Terceiro Mundo, que desafiam antigas visões da Guerra Fria.
Um dos principais problemas para estudiosos da Guerra Fria é a sua definição: ela pode ser vista como um período, um conflito ideológico, uma disputa político-militar ou de uma série de outras formas. Westad propõe estudá-la como um conflito verdadeiramente global entre duas superpotências, cada uma portadora de um projeto ideológico universalista da modernidade. O grande palco da disputa entre esses dois arautos da modernidade que o autor caracteriza, não sem ironia, como o “império da liberdade” (EUA) e o “império da justiça” (URSS) teria sido o Terceiro Mundo, que ao emergir do processo de descolonização, buscava alcançar a independência política e o desenvolvimento econômico. O livro é concebido, portanto, como uma história do intervencionismo das superpotências no Terceiro Mundo ao longo da Guerra Fria.
Não se trata de uma história completa ou exaustiva. O autor explicita sua opção por concentrar-se nas décadas de 70 e 80 e naqueles conflitos em cuja evolução a intervenção teve um papel central (relegando a América Latina com a exceção de Cuba à sua costumeira obscuridade em estudos sobre o período). A obra tem como seu foco não os conflitos em si, mas a evolução das percepções e políticas que nortearam o intervencionismo no período.
O livro pode ser dividido em duas partes: os primeiros cinco capítulos descrevem a “montagem do tabuleiro” a constituição das superpotências, do Terceiro Mundo e do cenário político-ideológico da Guerra Fria enquanto os últimos cinco examinam os motivos, as percepções, as justificativas, os meios e os resultados das intervenções no Terceiro Mundo a partir da década de 70.
O autor se destaca pela sua determinação em evitar estereótipos: ao invés de simplesmente repetir lugares-comuns sobre a importância do Destino Manifesto e do expansionismo czarista para a Guerra Fria, por exemplo, ele se debruça sobre a relação das futuras superpotências com a modernidade européia nos séculos XVIII e XIX, tirando conclusões interessantes e convincentes. Entre outras coisas, destaca o papel da escravidão em moldar a visão americana do Terceiro Mundo, através dos conceitos de emancipação e tutela, e do legado para a URSS das visões da Rússia imperial acerca da modernização e do papel russo na transformação da Europa.
Ao analisar a descolonização e os conflitos onde houve intervenção pelas superpotências (os principais sendo Angola e Moçambique, Etiópia e Somália, Irã e Afeganistão e América Central), o autor explora de forma minuciosa as raízes, facções e valores em jogo. As nuances com qual descreve a situação em cada país contrastam, aliás, com as visões que deles tinham os EUA e a URSS, cegados ou pelo menos reduzidos a um daltonismo debilitante pela forte ideologização suas políticas externas.
Westad tende a privilegiar o papel soviético sobre o americano, levando a um panorama fascinante das visscitudes da política da URSS para o Terceiro Mundo, apresentada por ele como um genuíno (e até tragicômico) esforço de fazer sentido de conflitos étnicos, religiosos e culturais pelas lentes do marxismo-leninismo, e de formular uma política coerente a partir dessa visão. Torna-se evidente, também, que a incapacidade americana de entender esse esforço, e a conseqüente atribuição à URSS de um desejo expansionista irrestrito e incondicional, levou os EUA à longa e trágica série de incompreensões que orientaram a maior parte de suas intervenções no Terceiro Mundo. Como é de se imaginar, Westad conclui o livro com um balanço decididamente negativo acerca das intervenções das duas superpotências.
The Global Cold War é um livro bem-pesquisado, bem-escrito e com uma contribuição original para a historiografia. Tem o mérito de trazer o Terceiro Mundo para o centro da Guerra Fria, e as implicações da Guerra Fria para a política internacional no século XXI. Assim, trata-se de uma leitura valiosa não só para os estudiosos do período, mas para todos aqueles interessados em como o poder é condicionado e orientado por ideologias nas relações internacionais.
Resenhista
João A. C. Vargas – Diplomata e mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: joaovargas@gmail.com
Referências desta Resenha
WESTAD, Odd Arne. The Global Cold War. Nova York: Cambridge University Press, 2005. Resenha de: VARGAS, João A. C. Revista Brasileira de Política Internacional, v.50, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]
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