Próximo a completar dois anos de gestão, o presidente russo Dmitri Medvedev, à frente do Kremlin desde maio de 2008, herdou, juntamente com sua equipe de governo, o debate característico do século XIX sobre o futuro da Federação Russa e a melhor ordem social e política que incorpore o espírito nacional. Tal debate se intensificou nos anos 1990, quando o mundo se tornou mais complexo a partir do fim da Guerra Fria e as transformações globais e nacionais pelas quais passou a antiga União Soviética (URSS). A nova Rússia que emergiu lidava com problemas estruturais como a perda de seu espaço geopolítico e influência diante dos Estados Unidos (EUA) e a desintegração do seu bloco soviético em 1991. Tal situação culminou, em dias recentes, com a percepção de um plano político-social incipiente e uma dinâmica russa combinada em sucessos e falhas dos governos de Boris Yeltsin, Vladimir Putin e, hoje, o citado Medvedev. Com isso, essas questões vieram à tona novamente, devido à necessidade de redefinir a identidade e os padrões da Rússia na era pós-soviética.
Assim, para compreender a procura russa por novos caminhos e os seus dilemas contemporâneos, faz-se necessário remontar ao seu passado recente, reconstituindo as variáveis de sua trajetória e os fatores que influenciaram e modelaram a política do país, como os culturais, econômicos, geográficos, demográficos, dentre outros. Frente a tal contexto e somada a uma ausência de fórmulas ou modelos que elucidem com precisão a política externa de uma nação, a obra “The Foreign Policy of Russia: changing system, enduring interests”, já em sua quarta edição (2009), publicada pela M.E.Sharpe de New York e escrita pelos norte-americanos Robert Donaldson e Joseph Nogee, se aventura a analisar essas mencionadas variáveis que, de acordo com os autores, influenciaram na mudança de direção da política do país ao longo de sua historia.
A ascensão e o desenvolvimento russo são explorados em nove capítulos, os quais se dividem por si só em blocos de reflexão, acoplando assuntos como a política externa russa desde os seus primórdios no século XV e sua expansão para outros territórios; a política externa soviética da revolução a Guerra Fria; o desenrolar do conflito bipolar; Moscou e o espaço soviético; relações com o Ocidente e com o chamado ‘não-ocidente’ e, por fim, a luta contra o terrorismo global na era Putin.
Dessa forma, Donaldson e Nogee iniciam o exposto demonstrando a falta de clareza na política externa do país ao longo do período soviético da Guerra Fria, em um contexto antagônico entre o mundo comunista e o ocidente, sob auspício de uma agenda que alternava da confrontação militar a cooperação. Dentre as forças e as múltiplas direções que moviam o país, os autores mencionam a mudança na estrutura do Sistema Internacional impulsionada pela transição da multipolaridade para a bipolaridade; desenvolvimento da tecnologia militar; fragmentação política e falhas da economia planejada. Também explicitam, como elemento desestabilizador, as diferenças de personalidades refletidas entre os líderes como Joseph Stalin (1924-1953), Nikita Khrushchev (1953-1964), Leonid Brezhnev (1964-1982) e Mikhail Gorbachev (1985/1991), por exemplo.
Buscando reconstituir essa herança soviética a partir de suas raízes, o capítulo dois faz um resgate da política externa nos tempos czaristas traçando o período de 1462 a 1505, quando Ivan III (Ivan “o Grande”) reinou sobre o estado Moscovita, sendo sucedido por Ivan IV (Ivan “o terrível”) que governou de 1533 a 1584, dando início à expansão do poder moscovita para territórios não russos. Algumas condicionantes como clima; território; população (sendo esta última um dos maiores desafios à nação, vide seu declínio atual e suas implicações para a segurança e economia do país) e revolução (como as três décadas de revolução bolchevique) são fatores abordados nos capítulos dois e três e que, dentre outros aspectos, contribuíram para a modelagem da política externa no período soviético, igualmente exportando sinais de continuidade para os períodos subseqüentes.
O bloco seguinte aborda a política externa do país durante a Guerra Fria (1947/1989), apresentando a luta e as estratégias empreendidas pelos dois grandes poderes – EUA e URSS, que defendiam individualmente suas ideologias e modos de vida distintos. Nesse contexto, muitas técnicas foram usadas na tentativa de estender a influência política para áreas estratégicas como o terceiro mundo. Essas quase quatro décadas de embate político e ideológico não impediram que acordos de cooperação mútuos fossem concretizados, como os acordos nos âmbitos- comercial e segurança, sobretudo na fase da détente (1969/1979). O que se observou nos anos seguintes, no entanto, foi uma opção russa pelo alinhamento e reintegração ao Ocidente refletida nos projetos de reforma doméstica de Gorbachev dos anos 1980- perestroika, glasnost e o “Novo Pensamento”, contribuindo para a derrocada do Império Soviético em 1991 e a emergência dos EUA como única superpotência restante.
Esse cenário pós-bipolaridade, que teve na queda do muro o símbolo do fim da Guerra Fria em 1989, foi marcado pela deterioração doméstica russa, crise interna no bloco soviético precedida pelo citado desmantelamento da URSS e o encolhimento do poder russo na arena internacional. Os blocos seguintes abordam, entretanto, assuntos que foram essenciais ao contexto enfrentado pela transformada Rússia pós-URSS, que tem buscado reorientação em suas diretrizes domésticas e novos nichos de ação internacional.
Assuntos como a relação da Rússia com as ex-repúblicas (o “exterior próximo”) e seu grau de hegemonia no antigo espaço soviético (entendida pelos autores como uma similar “Doutrina Monroe”); bem como uma competição de idéias focadas na questão da identidade russa (orientações – Ocidentalista ou Atlanticista? Nacionalista pragmática ou Eurasianista?), são tratadas no bloco dos capítulos cinco e seis. A diversidade desses estados pós-soviéticos, a fragmentação e o futuro da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e o avanço de poderes como OTAN, China e União Européia na região, são apresentados como empecilhos às ações russas em áreas de interesses vitais como o Cáucaso e a Ásia Central, dificultando as ambições do Kremlin em direção à hegemonia regional.
No bloco “Rússia e o Ocidente”, duas temáticas são salientadas: segurança e energia. Na relação com a Europa, torna-se evidente a preferência russa em agir por meio de bases bilaterais, bem como os dilemas e dificuldades das relações Moscou-Bruxelas. No que diz respeito ao relacionamento com os EUA, a cooperação se respalda em assuntos de controle e redução de armamentos. O expansionismo da OTAN para o leste europeu tornou-se um dos assuntos mais contenciosos da relação desde os anos 90. Não se pode deixar de mencionar outros litígios que englobam o relacionamento como a relação da Rússia com o Iraque, sintetizada em contratos comerciais lucrativos para Moscou, bem como a política russa no sul-asiático (China e Índia). Ainda, relações de menor intensidade para a política externa da Federação como as relações com a América Latina (a cooperação nuclear e militar com Caracas é um dos exemplos) são exploradas no bloco oito, o qual se intitula “Russia and the ‘Non-West’” (que pode ser traduzido como “não-ocidental”).
O último capítulo, por sua vez, aborda os dois mandados presidenciais de Vladimir Putin (2001/2008), os quais coincidem com os atentados de 11/09 em território continental norte-americano e a emergência do terrorismo global (Guerra Global Contra o Terror – GWT) empreendida por Washington. Nesse contexto, Putin seguiu uma política pragmática, cooperando com os EUA em assuntos de interesse estratégico, mas se opondo em outros, como a construção de um sistema de defesa nacional antimíssil. O conflito do Iraque e a oposição de Moscou às intervenções norte-americanas em Bagdá são mencionados como fatores decisivos para o desgaste do relacionamento recíproco ao final das duas administrações – W. Bush e Putin.
Os autores concluem que ao final da gestão Putin, a Rússia conquistou o poder econômico, em grande medida, devido às altas dos preços de petróleo e gás, redescobrindo o seu status como grande poder. Apesar dessas mencionadas conquistas e o engajamento pragmático da Rússia editada na nova concepção de política externa aprovada por Vladimir Putin em 2000 (cf. The Foreign Policy Concept of the Russian Federation, 2000), a qual estabelece as prioridades da política do país cujas aspirações são globais, mas com um enfoque regional, uma competição interna de idéias e agravantes ainda fazem parte da realidade russa. Dentre os inúmeros desafios a serem enfrentados, citamos o encolhimento populacional e o conseqüente declínio da força de trabalho, bem como a dependência da economia com a extração e venda dos seus recursos naturais.
Frente a esse cenário de incertezas e vulnerabilidades, são muitas as contribuições e reflexões da obra de Nogee e Donaldson, guardada a percepção de que se trata de uma obra de autores norte-americanos sobre a URSS/Rússia, ou seja, traz-se a visão do “outro”. Apresentando episódios históricos e contemporâneos, os autores conseguem abordar os fatores e dilemas que modelaram a política externa da nova Rússia, seguindo a premissa de que muitas mudanças, idéias e formulações, introduzidas no período anterior e posterior a Guerra Fria, seja por czaristas, soviéticos ou russos, tiveram um impacto significativo na política do país, sendo responsável, em linhas gerais, pelo convívio entre aspectos de continuidade e mudança em suas diretrizes atuais.
Resenhista
Alessandra Aparecida Luque – Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (campus de Marília) e bolsista de Iniciação Científica FAPESP. E-mail: alessandra.luque@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
DONALDSON, Robert H.; NOGEE, Joseph L. The Foreign Policy of Russia: changing system, enduring interests. New York: M. E. Sharpe, Inc, 2009. Resenha de: LUQUE, Alessandra Aparecida. Meridiano 47, v.11, n.117, p.35-37, abr. 2010. Acessar publicação original [DR]
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