1 O livro em apreço tem origem na tese de doutoramento do autor, defendida em 2019 na Radboud University, tendo sido publicado em 2020 como parte integrante da série Routledge Studies in Modern European History. A obra foi desenvolvida entre acervos físicos, com periódicos que não existem na versão digital, e a busca de palavras-chave em acervos digitais. Bem como já destacado por Laurel Brake e James Mussel, a análise de Smits atenta para a importância de se considerar os dois tipos de acervo, uma vez que o digital fornece um acesso limitado ao passado, mas ao mesmo tempo enseja uma ampliação significativa dos estudos a serem realizados.1 Sendo assim, trata-se de um livro que apresenta uma interessante discussão historiográfica sobre o uso de fontes primárias.
2 Nos anos 1950, os historiadores começaram a considerar como fonte as imagens produzidas na imprensa do século XIX. Tal tendência se intensificou nos anos 1980, com estudos focados no caráter nacionalista e identitário das imagens. Segundo Smits, entretanto, é preciso ir além desta perspectiva e considerar o caráter transnacional dos jornais ilustrados. A base da argumentação do autor está no conceito de história transnacional de Jürgen Osterhammel,2 sendo os periódicos vistos como pontos de comunicação entre espaços nacionais. Por isso, o livro analisa os três principais jornais em circulação entre 1842 e 1870: Illustrated London News, l’Illustration e Illustrirte Zeitung, de procedência britânica, francesa e alemã, respectivamente. Em seguida estende a análise para outros 40 jornais de diversos países ao redor do mundo, a fim de entender como os leitores olhavam para as mesmas imagens.
3 O apogeu do jornal ilustrado, segundo o autor, ocorreu entre 1842 (lançamento do Illustrated London News) e 1870. A partir da década de 1880, a reprodução de fotografias passou a ser viável. Não obstante, ao contrário do que comumente se acredita, a cultura visual da atualidade não se inicia apenas com a difusão da imagem fotográfica. O próprio discurso de objetividade da imagem criado pelos jornais ilustrados colaborou para que existisse uma confiança por parte do público leitor de que as imagens veiculadas condiziam com a realidade. Portanto, as raízes para uma cultura visual global, de acordo com Smits, estão assentes ainda em meados do século XIX. O primeiro capítulo mostra como os jornais mais conhecidos da época, Illustrated London News, l’Illustration e Illustrirte Zeitung, foram além de suas fronteiras nacionais e atingiram leitores tanto do meio rural quanto urbano, chegando até mesmo a cruzar fronteiras rumo a lugares como, por exemplo, a Holanda e as colônias inglesas na Austrália. Por meio de uma metodologia baseada em buscas por palavras-chave em arquivos digitais, Smits conseguiu encontrar informações sobre os locais de distribuição e recepção, situados em três diferentes níveis geográficos: a cidade, a nação e o exterior.
4 Jornais como o Illustrated London News e o l’Illustration estavam intimamente conectados ao ritmo urbano das cidades de Londres e Paris. Quanto ao âmbito nacional, indícios encontrados em anúncios apontam que o Illustrated London News intencionava atingi-lo. Já o l’Illustration e o Illustrirte Zeitung talvez tivessem também tal pretensão, todavia sua circulação era bem menor. No que tange aos espaços coloniais, o único que intentava alcançá-los era o Illustrated London News. A partir de anúncios publicados em jornais australianos, encontrados em coleções digitalizadas, Smits traçou parte da rede de distribuidores nesse país e na Nova Zelândia. Apesar da dificuldade de estimar tal circulação em termos numéricos, é fato que o Illustrated London News atuava como uma conexão visual entre britânicos na terra natal e nas colónias. Para os três principais jornais ilustrados estudados por Smits é revelada uma ampla distribuição internacional a partir de três exemplos: edições do Illustrated London News sobre a exposição de 1851, captação de leitores internacionais por parte dos três periódicos e um estudo de caso relativo à Holanda e suas colónias, que consistiu em um mercado visado por eles.
5 O capítulo seguinte discorre sobre o início do comércio transnacional de imagens. O processo de produção das gravuras é narrado detalhadamente por Mason Jackson em Pictorial Press.3 A produção da gravura começa com o desenho, que em seguida é entalhado na madeira, gravado e, enfim, impresso. Quem reproduzia as cenas era a figura do artista especial, enviado pelos jornais para cobrir notícias importantes in loco. Os jornais endossavam tal processo, a fim de conferir autenticidade às gravuras de atualidades. As imagens poderiam também chegar à redação enviadas por amadores. Entretanto, Smits mostra que na prática a reprodução assumia um papel essencial na produção, por meio do estereótipo e do eletrótipo. Tais práticas aceleraram o processo de obtenção de imagens, porém ainda pressupunham o contato com as estampas originais. Em meados dos anos 1850, as técnicas fotográficas dominaram a reprodução, tanto que no fim dos anos 1860 a fotoxilografia tornou possível a pirataria de gravuras de atualidades em larga escala.
6 O comércio transnacional de imagens no período entre 1842 e 1870 teve importância ímpar, com as técnicas fotográficas como grandes aliadas na reprodução dos clichés depois de 1850. A historiografia atesta que, após 1850, os grandes jornais começaram a produzir suas gravuras nas oficinas próprias. Este seria o início de uma nova fase do comércio transnacional de imagens, destacada por Smits. Foi construída uma base de dados de gravadores ingleses e franceses, o que possibilitou demonstrar uma conexão entre diversos atores. Smits prova que é possível conectar os primeiros colaboradores do Illustrated London News e do l’Illustration aos primeiros gravadores em madeira da Europa. O autor parte da extensa rede de colaboradores dos principais jornais ilustrados e destaca a trajetória de Henry Vizetelly, eixo central na rede transnacional de imagens de atualidades em meados do seculo XIX.
7 São três as fases do comércio transnacional de imagens: a primeira (1842-1850) é marcada pela predominância do Illustrated London News, a segunda (1850-1860) é caracterizada pela ampla produção de imagens pelos três maiores jornais da época, o Illustrated London News, o l’Illustration e o Illustrirte Zeitung. A terceira (1860-1870), por sua vez, se dá com o surgimento de diversos jornais ilustrados com preço reduzido. Tais jornais utilizavam as imagens já publicadas durante a segunda fase, momento que coincide com a apropriação maciça da fotoxilografia como método de cópia, fator que alterou a dinâmica do comércio transnacional de imagens da atualidade. Para corroborar a prática extensiva da cópia, Smits cita como estudo de caso as imagens estrangeiras publicadas na imprensa holandesa entre 1830 e 1870. Em meados dos anos 1850, a pirataria tornou-se comum no comércio transnacional de imagens. A técnica da fotoxilografia e a falta de regulações dos direitos autorais favoreceram tal prática, exemplo disso é a imprensa dos Estados Unidos que copiava imagens oriundas da imprensa inglesa em grande quantidade.
8 O exemplo das gravuras da Guerra da Crimeia é objeto de análise no terceiro capítulo. Tais registros visuais demonstram que leitores ao redor do mundo viam as mesmas imagens do conflito, imagens estas que podiam ganhar significados distintos de acordo com as legendas ou textos que as acompanhavam. Isso afirma também a importância de considerar o jornal ilustrado como um todo, ou seja, deve-se considerar o conjunto composto por textos, imagens, legendas. A partir do exemplo das imagens e textos da guerra nos três primeiros volumes do jornal britânico Cassell´s Illustrated Family Paper, que nunca foram estudados, Smits analisa como as imagens francesas circularam junto a textos traduzidos para se adequarem ao contexto nacional britânico e aponta como essa relação entre imagem e texto foi importante no que se refere ao conflito representado.
9 Conforme constatado na busca de anúncios em acervos digitalizados, verificou-se a ampla circulação geográfica do Cassell´s, que tinha um preço bem mais acessível que seus concorrentes, tendo, portanto, classes mais populares como público leitor. A metodologia utilizada se baseou em duas bases de dados feitas pelo autor, com imagens e textos da Guerra da Crimeia presentes no l’Illustration e no Cassell´s, de acordo com a noção de trabalho composto de Mitchell,4 que preconiza a análise tanto do conteúdo visual quanto textual. Partindo do corpus original, as imagens do l’Illustration, Smits conseguiu rastrear o que foi republicado no Cassell´s e os fatores implicados nesta apropriação. O contexto no qual a Guerra da Crimeia se desenrolou coincidiu com o rápido desenvolvimento das comunicações, de forma que as pessoas podiam acompanhar as notícias do conflito com uma rapidez sem precedentes.
10 A partir do exemplo das imagens da Guerra da Crimeia publicadas pelo periódico francês l’Illustration, Smits esclarece os argumentos principais do seu livro: o fato de que os jornais ilustrados foram além de suas fronteiras nacionais e de que as imagens eram produtos transnacionais. Jornais como os três aqui analisados contavam com leitores não somente locais, mas em diferentes pontos do globo, fazendo com que as audiências fossem muito mais internacionais do que o previamente esperado. Antes mesmo da impressão direta da fotografia nas páginas dos jornais, as imagens da atualidade circulavam de forma ampla em variados espaços geográficos. Como já foi dito, o autor argumenta que a cultura visual transnacional tem sua origem ainda no século XIX, muito antes do fotojornalismo do século XX.
11 Um outro estudo de caso é referido no quarto e último capítulo do livro. Este diz respeito às imagens da Exposição Universal de 1867 presentes na imprensa ilustrada, que endossa a existência de uma cultura visual da atualidade vigente em meados do século XIX. As imagens da exposição veiculadas em 31 periódicos em 15 países diferentes mediaram a experiência de muitas pessoas que tiveram contato com o evento apenas por meio dos jornais. A análise de Smits comprova que as páginas dos jornais ilustrados criaram diferentes experiências da exposição, o que era diferente de ver a exposição pessoalmente. Um exemplo claro disso é o fato de alguns pavilhões nacionais terem mais ou menos cobertura da imprensa, independentemente do tamanho do pavilhão físico. Mais um exemplo de imagem enviesada estava relacionado aos pavilhões que ainda não estavam completos no momento da abertura da exposição, mas que eram veiculados pela imprensa como já terminados. Tais imagens não eram neutras e sua escolha pelos periódicos se baseava na disponibilidade do conteúdo visual já produzido. Por meio da análise de redes, o autor conseguiu visualizar os jornais que mais venderam imagens para outros.
12 Em suma, o consistente trabalho de Thomas Smits situa a imprensa ilustrada nos estudos de caráter transnacional e dialoga com metodologias digitais, evidenciando a importância de considerar tanto o acervo físico quanto o digital. Além disso, o autor realiza pesquisas em diversas línguas, como, por exemplo, inglês, francês, alemão ou holandês, dentre muitas outras, o que amplia consideravelmente o escopo do estudo empreendido. Por fim, a organização do livro é outro aspecto a ser notado. Cada um dos capítulos tem secções de historiografia e metodologia, o que denota clareza do ponto de vista historiográfico e ajuda a guiar o leitor na apreensão das análises concebidas. Trata-se de uma pesquisa bem fundamentada, recomendada a todos aqueles que se interessam por imprensa ilustrada no século XIX e desejam compreender as origens e dinâmicas do comércio transnacional de imagens de atualidades.
Notas
1 Laurel Brake, “London Letter: Researching the Historical Press, Now and Here”. Victorian Periodicals Review, 48 (2) (2015), pp. 245-53. James Mussell, “Digitization”, in A. King, A. Easley, J. Morton (eds), The Routledge Handbook to Nineteenth-Century British Periodicals and Newspapers. Abingdon: Routledge, 2016, pp. 17-29.
2 Jürgen Osterhammel, “A Transnational History of Society. Continuity or New Departure?”, in H. Haupt, J. Kocka (eds), Comparative and Transnational History: Central European Approaches and New Perspectives. New York: Berghahn Books, 2009, pp. 39-52.
3 Mason Jackson, The Pictorial Press: Its Origin and Progress. London: Hurst and Blackett, 1885.
4 William John Thomas Mitchell, Iconology: Image, Text, Ideology. Chicago: University of Chicago Press, 2009.
Resenhista
Bruna Oliveira Santiago
Referências desta Resenha
SMITS, Thomas. The European Illustrated Press and the Emergence of a Transnational Visual Culture of the News, 1842-1870. London/New York: Routledge, 2020. Resenha de: SANTIAGO, Bruna Oliveira. Ler História. Lisboa, n.79, p. 277-280, 2021. Acessar publicação original [DR]
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