Lançado em 1980, The death of nature completa, em 2020, 40 anos de publicação e ainda carecia de uma resenha em português. Apesar do tempo passado desde o lançamento, o livro de Carolyn Merchant apresenta algumas reflexões e contribuições ainda atuais.
Merchant é professora emérita da University of California, Berkeley, e possui publicações nas áreas de epistemologia feminista, história ambiental e história das ciências. É uma das referências do ecofeminismo, movimento que associa ecologismo e feminismo, identificando relações entre a exploração da natureza e das mulheres. Contudo, ainda hoje a autora tem pouca inserção nos cursos e programas de história ambiental e das ciências no Brasil, sobretudo quando a comparamos com outras autoras feministas, como Evelyn Fox Keller e Donna Haraway. Entretanto, isso não é exclusividade brasileira. Apesar do interesse do campo ambiental e feminista, o livro foi marginalizado por historiadores anglófonos e filósofos da ciência moderna, além de ter encontrado um “clima frio” para sua recepção dentro da historiografia da ciência ( Park, 2006 ).
Outro motivo é que, mesmo não rejeitando a ideia de revolução científica, Merchant (2006) atacou duramente os “pais fundadores” da ciência moderna, Bacon e Descartes. Para ela, o movimento fundante da ciência moderna e os novos valores científicos e comerciais excluíram as mulheres e ajudaram a estabelecer uma nova visão de mundo que autorizava o domínio e a exploração da natureza e das mulheres.
The death of nature é a obra mais famosa e a maior contribuição de Merchant para a teoria ecofeminista. Com foco na Europa ocidental dos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, a autora analisou, amparada em um sofisticado e amplo corpo documental, as conexões entre as imagens das mulheres e da natureza existentes na formação do mundo moderno. Com 12 capítulos, o livro poderia ser menor, uma vez que os argumentos são repetidos algumas vezes durante a narrativa. Entretanto, isso parece decorrer do didatismo e do cuidado da autora ao falar de autores e tradições filosóficas que não são tão próximas de um público mais amplo. Mesmo assim, após a leitura, é possível compreender perfeitamente a bem formulada tese central.
Os primeiros quatro capítulos apresentam o mundo orgânico pré-moderno: como as metáforas e imagens da natureza geravam tipos diferentes de atitudes frente ao mundo natural e como as condições materiais daquele período permitiram a substituição do organicismo pelo mecanicismo. A teoria orgânica projetava na sociedade o funcionamento do corpo humano, onde cada indivíduo possuía uma função específica, estando subordinado aos propósitos da comunidade. A natureza, por sua vez, era representada como uma mãe nutridora e benevolente, que supria as necessidades humanas. Essa imagem – que aparece na literatura, arte, filosofia e ciência – gerava uma restrição cultural que impedia o uso arbitrário dos recursos. Após ser alterada para uma visão da natureza como selvagem e desordenada, o comportamento restritivo deu lugar à dominação.
Isso foi possível devido a um conjunto de mudanças ecológicas, comerciais, tecnológicas e sociais. Merchant mostra como a expansão mercadológica mudou comportamentos em relação à terra. O controle comunitário dos recursos, feito pelos camponeses para subsistência, deu lugar ao controle capitalista voltado para o mercado, alterando os padrões tradicionais de integração humano/terra.
As mulheres continuaram a ser ligadas à natureza quando esta passou a ser vista como desordenada e caótica. Era necessário, então, controlar e subjugar a natureza selvagem e também as mulheres, cada vez mais associadas à bruxaria e à luxúria, como mostram os julgamentos de bruxas na Inglaterra quinhentista. Na nova ordem, a figura feminina tornou-se passiva nas esferas produtiva e reprodutiva. Na primeira, a mulher perdeu seu papel na vida econômica e foi relegada à domesticidade do lar. Na segunda, estabeleceu-se a passividade do papel feminino na reprodução. A obstetrícia, anteriormente uma atividade exclusivamente feminina, conforme apontam tratados da época, passou a ser um domínio masculino.
Na última metade do livro, a autora discorre sobre domínio da natureza e a constituição da ordem mecânica. Filósofos naturais, como Bacon e Descartes, sancionaram os novos princípios e métodos científicos que viam a natureza como uma mulher a ser torturada. A natureza feminina, morta, inanimada e controlada pela técnica, estava pronta para ter seus segredos revelados e para ser utilizada em benefício humano, possibilitando a exploração e manipulação irrestrita do ambiente natural. A metáfora do organismo deu lugar à da máquina.
Quando o livro foi publicado, a discussão ambiental já era notória, mas ganhou mais importância, mantendo a atualidade da publicação. Outras cosmologias e alternativas de sociedade, trazidas por Merchant na exposição das utopias científicas, apontam outros modelos sociais que não a ordem mecanicista vencedora. Acusada de essencialismo, a autora não propõe, entretanto, retornar ao modelo orgânico, tampouco que as mulheres têm de resolver os problemas ambientais causados pelos homens. Sua contribuição ecofeminista se funda em uma mudança material e linguística, substituindo a feminilidade da natureza por uma terminologia neutra, e a construção de uma ética de parceria com a natureza (Merchant, 2006). Abre-se uma oportunidade de reflexão conjunta à ideia de “fazer parentes” de Haraway (2016) .
É igualmente importante o argumento de Merchant que coloca as questões de gênero no seio do debate sobre a emergência da ciência moderna na Europa, e de como ideias sexistas conformaram práticas científicas e atitudes em relação ao ambiente natural. Para a história ambiental, seu livro demonstra o valor das ideias na constituição da relação entre sociedade e natureza. O livro é uma boa oportunidade para entender e questionar alguns dos princípios que pavimentaram o caminho para a crise ecológica contemporânea.
Referências
HARAWAY, Donna. Antropoceno, capitaloceno, plantationoceno, chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5, p. 139 – 146. Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4197142/mod_resource/content/0/HARAWAY_Antropoceno_capitaloceno_plantationoceno_chthuluceno_Fazendo_parentes.pdf >. Acesso em: 3 fev. 2020. 2016 .
» https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4197142/mod_resource/content/0/HARAWAY_Antropoceno_capitaloceno_plantationoceno_chthuluceno_Fazendo_parentes.pdf
MERCHANT, Carolyn. The scientific revolution and the death of nature. Isis, v. 97, n. 3, p. 513 – 533. 2006.
MERCHANT, Carolyn. The death of nature: women, ecology, and the scientific revolution. San Francisco: Harper and Row. 1980.
PARK, Katharine. Women, gender, and utopia: “The death of nature” and the historiography of early modern science. Isis, v. 97, n. 3, p. 487 – 495. 2006.
Resenhista
Gabriel Schunk Pereira – Mestrando, Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal de Minas Gerais. orcid.org/0000-0002-8467-5579 E-mail: gabrielschunk@hotmail.com
Referências desta Resenha
MERCHANT, Carolyn. The death of nature: women, ecology, and the Scientific Revolution. San Francisco: Harper and Row, 1980. Resenha de: PEREIRA, Gabriel Schunk. The Death of Nature quarenta anos depois: as contribuições para o ecofeminismo e a historiografia da ciência, História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.2, abr./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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