The crisis of zionism | Peter Beinart

Peter Beinart é professor associado de jornalismo e ciência política na City University of New York, ex-editor do jornal estadunidense The New Republic e autor de mais dois livros: The Icarus Syndrome e The Good Fight. Suas obras são perpassadas pela defesa aberta do liberalismo e pela denúncia do abuso do poder estatal em detrimento de direitos individuais. Liberal e sionista declarado, em sua mais recente obra – eminentemente política – Beinart faz uma reflexão crítica sobre o atual governo de direita em Israel, a comunidade judaica estadunidense e sua relação com o Estado judeu e denuncia o racismo inerente ao sionismo revisionista, bem como a ocupação dos Territórios Palestinos e a política externa vacilante de Obama.

Ao longo dos nove capítulos, o autor exalta a necessidade de fortalecer o sionismo liberal tal qual defendido por Theodor Herzl face às correntes conservadoras e exclusivistas que exaltam o caráter étnico de Israel como Estado judeu, lesando as garantias democráticas presentes em sua declaração de independência e os direitos da população árabe. Tendo como eixo central essa dupla natureza do país – judaica/democrática – e as divergências das propostas sionistas, Beinart expõe as divergências em torno do conflito na Palestina envolvendo a comunidade judaica dos Estados Unidos e os agrupamentos políticos e entidades neste país e em Israel. Sua conclusão é a de que, atualmente, o sionismo liberal tal qual vislumbrado por Herzl estaria ameaçado diante da ascensão da direita em Israel e do apoio incondicional prestado por entidades judaicas estadunidenses, cada vez mais controladas por setores indiferentes ou avessos aos preceitos democráticos daquele país. Por isso a escolha do título: “A crise do sionismo”.

Aos olhos do autor, enquanto entre as entidades judaicas estadunidenses estaria em queda o engajamento entorno de um sionismo de matiz liberal, que as teria caracterizado até os anos 1970, estariam ascendendo setores de direita e outros vinculados à ortodoxia religiosa que, em linhas gerais, enfatizam o caráter judaico de Israel e negam os direitos nacionais do povo palestino. Para esses grupos o cerne da identidade coletiva judaica seria o sofrimento dos judeus ao longo da história diante de um difundido e persistente antissemitismo, que justificaria inclusive as transgressões cometidas por Israel contra a população árabe. Essa visão de que não haveria qualquer marco moral universal a partir do qual o sionismo poderia ser julgado, visto as atrocidades cometidas contra o povo judeu na história, é denominada de “monista”, sendo seus principais defensores os revisionistas, tais como Vladimir Jabotinsky, Benzion Netanyahu e seu filho, Benjamin (duas vezes primeiro-ministro de Israel).

No primeiro capítulo Beinart faz uma leitura idealizada do sionismo liberal, conforme apregoado por Herzl, destacando as possibilidades que ele contém de judeus e árabes conviverem pacificamente na Palestina/Israel, em contraponto a posicionamentos exclusivistas. O autor se vale da novela de Herzl Altneuland para embasar sua visão de que o sionismo é um movimento nacional, mas também desde o princípio liberal, e chega a fazer uma breve crítica a essa vertente que ele mesmo defende, alegando que ela não imaginava a possibilidade de um movimento nacional árabe demandando a Palestina como seu território. Ainda nesse capítulo, é trabalhada a discriminação institucional israelense dentro e fora das fronteiras anteriores a 1967 e são elencadas algumas fragilidades de seu modelo democrático, ainda que seja um Estado democrático em seu território “original”.

Os dois próximos capítulos trazem uma reflexão sobre a comunidade judaica estadunidense e suas entidades, apontando para a tendência de apoiar incondicionalmente a Israel, em detrimento dos valores liberais, o que tem contribuído para os contínuos abusos contra a população árabe, sobretudo a partir da ocupação dos Territórios Palestinos em 1967. Embora não cite Norman Finkelstein em nenhum momento, Beinart reforça a argumentação deste acerca da “Indústria do Holocausto”, ao considerar o uso da Shoah na difusão de uma cultura de vitimização como estratégia para reforçar o engajamento étnico dos jovens e justificar os atos de Israel, imunizando-o contra críticas. Dois tipos ideais de organizações estariam envolvidos nesse processo de recrudescimento étnico: aquelas que estariam perdendo sua tradição liberal ao apoiar ou se calar diante da ocupação e aquelas que sempre enfatizaram a judeidade de Israel em detrimento de sua faceta democrática. No nono capítulo o autor volta a refletir sobre a comunidade judaica estadunidense e suas entidades, apontando que mudanças consideráveis ocorrerão em um futuro próximo, tendo em vista o crescimento de uma geração alheia ao sionismo e ao judaísmo, pois cada vez mais assimilada, e a tomada das organizações por grupos ortodoxos contrários ao Estado palestino e ainda menos comprometidos com os princípios democráticos de Israel.

No quarto capítulo, evidenciando seu engajamento liberal e favorável à criação do Estado palestino, Beinart apresenta os argumentos justificadores da expansão da ocupação israelense nos Territórios Palestinos, contestando-os um a um – a exemplo da suposta contribuição da manutenção dos territórios para a segurança nacional. Ele desconstrói parcialmente o discurso oficial israelense acerca da desocupação da Faixa de Gaza, em 2005, e do Hamas como entidade terrorista, apontando ao invés para a influência do modelo de apartheid no “desengajamento unilateral” promovido por Sharon e para as evoluções políticas pelas quais passou a resistência palestina islâmica. Nos capítulos cinco, sétimo e oitavo é apresentada a trajetória do presidente estadunidense Barack Obama, atentando-se para a influência do sionismo liberal em sua visão do confronto e como, gradativamente, ele foi cedendo à pressão do lobby israelense “monista” em suas declarações e ações. As relações de força desfavoráveis em seu próprio país teriam desfeito seu discurso inicial e suas críticas a Israel. Conforme Beinart (p. 154), a partir de maio de 2011 o presidente estadunidense teria abandonado de vez seu posicionamento “sionista liberal”, sido completamente aparelhado e aderido à visão do establishment monista em todos os pontos.

No sexto capítulo é abordado o pensamento do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que engrossaria o campo do sionismo revisionista, visto sua visão política e representação dos árabes e do conflito de forma geral. Ele seria um epígono de Jabotinsky, por intermédio da influência paterna em sua formação, tendo uma visão monista do sionismo e racista dos palestinos, desumanizando-os ao descrevê-los como “bárbaros” e “selvagens” que só conhecem a força e compará-los, frequentemente, aos nazistas. Beinart aponta algumas evidências de que “Bibi” poderia ser, inclusive, favorável à “transferência” da população árabe e desmistifica seu posicionamento político, apresentando-o como contrário à criação de um Estado palestino tal qual requerido pelas resoluções da ONU e negociado com as autoridades da resistência local. Sua proposta, cuja implementação se daria por meio do modelo da “muralha de ferro” de Jabotinsky, seria a da autonomia árabe em quatro cantões isolados na Cisjordânia, desconectados da Faixa de Gaza.

Apresentada a obra como um todo, cabem algumas considerações críticas. Ainda que o livro tenha uma narrativa bem articulada e traga importantes contribuições sobre a comunidade judaica estadunidense e o víeis racista do sionismo revisionista, seu valor científico é questionável devido aos paradigmas que embasam a visão do autor sobre Israel e o conflito. Seu engajamento político assumido – sionista liberal – acaba por comprometer a objetividade de sua análise, tanto pelo que afirma e da forma como o faz quanto pelo que silencia, situando a obra fora daquilo que Eric Hobsbawm chama de “discordância científica legítima”. Primeiramente, destaca-se a visão idealizada do sionismo liberal, contraposto a um sionismo “monista”, que encarnaria e seria o responsável exclusivo pelas contradições entre etnicidade e democracia em Israel – salvo o único erro do primeiro, de não ter reconhecido a possibilidade de desenvolvimento de um nacionalismo árabe que reivindicasse a Palestina como território. As formulações racistas e os projetos de transferência da população árabe (limpeza étnica), desde os primórdios do nacionalismo judaico, são assim relacionados unicamente ao campo revisionista, fundado por Jabotinsky. Ao enfatizar sobremaneira o liberalismo do projeto herzeliano, Beinart se cala completamente diante de seus elementos antiliberais – fundamentais para a compreensão da formação e atuação contemporânea dos partidos sionistas ditos liberais ou até de esquerda. Elementos que ele denuncia no pensamento monista, como o racismo e as propostas de transferência, são detectados por historiadores israelenses como Ilan Pappé [238] e Nur Masalha [239] nas formulações dos pioneiros do movimento, inclusive Herzl. Conforme Pappé e Masalha, as representações racistas dos árabes como culturalmente inferiores permearam todas as correntes, a exemplo da perspectiva colonial do território vazio de civilização (vide o slogan sionista “uma terra sem povo para um povo sem terra”), pois habitado por “selvagens” ou “bárbaros”, que deveria ser colonizado em prol do progresso. Além dessa visão colonialista/orientalista comum, assim como os “monistas” tanto Chaim Weizmann quanto David Ben-Gurion propuseram a transferência da população nativa da área futuramente designada como Estado judeu.

Em sua análise idealizada Beinart sequer menciona que para o próprio Herzl o Estado judeu seria uma “sentinela avançada da civilização em meio à barbárie asiática” e que seu romance Altneuland, para além dos elementos liberais ali presentes, evidencia essa perspectiva tipicamente racista e colonial. Ao projetar um recanto da Europa na Palestina a comunidade fantasiada por Herzl é um ode ao colonialismo (a diferença é que Jabotinsky assume abertamente esse caráter da empresa sionista). As vilas deixam de ser os “focos de sujeira” de outrora e os sionistas levam um acelerado desenvolvimento tecnológico e econômico para os nativos. Os fazendeiros que “tinham vivido em pobres casas de barro, que não estavam aptas para servir de estábulo”, cujos bebês “estavam ao ar livre, nus e descuidados, e cresciam como bestas e animais”, agora “têm uma vida respeitável, suas crianças estão saudáveis e estudando” [240]. Ademais, há uma passagem riscada em seu diário que apresenta de forma embrionária a solução de transferência dos árabes – para Beinart, patrimônio da “direita”.

Contudo, a principal fragilidade da obra não está nessa depuração silenciosa do sionismo liberal dos elementos que podem denunciar seu vínculo com parte da barbárie espraiada na Palestina – atribuída aos próprios palestinos e aos “monistas”. Seu calcanhar de Aquiles está no uso incorreto do conceito de etnocracia para pensar a atuação de Israel somente nos Territórios Palestinos, o que denota uma falta de solidez teórica. Para Oren Yiftachel, que fundamenta a análise de Israel como uma etnocracia, considerá-lo como uma democracia dentro das fronteiras pré-1967 (como faz Bernart) é um equívoco, pois a linha demarcatória não existe de fato (vide as colônias e a garantia de cidadania israelense para seus habitantes) e a lógica fundamental do Estado é justamente o processo de judaização de Israel/Palestina. O núcleo da crítica de Yiftachel, que Beinart ignora completamente, é a necessidade de pensar toda a área controlada e “etnicizada” pelo “Estado judeu” (qual seja, Israel, colinas de Golã, Gaza e Cisjordânia) como parte de um mesmo regime etnocrático. Se para Beinart o cerne do projeto sionista é como conciliar democracia e etnicidade, para Yiftachel é como proceder a judaização do território palestino/israelense. Na visão deste, a maior evidência do caráter não democrático de Israel seria o descolamento de cidadania e geografia, deficiência que impede a criação de um demos estável (“corpo inclusivo de cidadãos com poderes em um dado território”). Em Israel e nos Territórios Palestinos Ocupados, ao invés do demos, o princípio organizativo central é o ethnos, que determina a pertença pela origem comum e não pelo território [241]. Em suma, se Beinart tivesse considerado o conceito de etnocracia de fato, teria possivelmente reformulado sua interpretação de Israel como uma democracia e uma etnocracia ao mesmo tempo. Também teria avaliado melhor as discriminações cometidas dentro de Israel, ao invés de considerar o tratamento diferenciado da população árabe como fato isolado dentro de uma suposta democracia liberal.

Há ainda outros pontos que reforçam a constatação de que a obra não tem valor científico, como a não problematização e aceitação da existência de um “terrorismo palestino” como fim em si e a consideração tendenciosa ou ingênua da ampla destruição e das vítimas civis durante a operação Chumbo Fundido em Gaza como meros efeitos colaterais, apesar dos diversos relatórios que apontam em sentido oposto. A obra apresenta ainda uma visão caricaturada daqueles chamados de “críticos de esquerda” do Estado de Israel, cujos argumentos não são debatidos, mas simplificados erroneamente como equivocados por interpretarem o Estado judeu como uma ponta-de-lança do imperialismo na região. Dessa forma, Beinart desconsidera as alegações bem fundamentadas – que inclusive ele próprio chega a tangenciar, mas não as aprofunda – de que a afirmação legal da judeidade de Israel gera a discriminação nas políticas públicas, conforme a pertença étnica dos grupos.

Por fim, cabe destacar que, embora o autor contemple de forma ampla os argumentos dos palestinos utilizados no processo de paz, em nenhum momento ele faz uma análise partindo do direito internacional e da assimetria do conflito. Isso reforça pelo menos duas falsas percepções. Primeiro, é salientada a imagem de uma liderança árabe intransigente, em contraposição ao fato de que, à luz do direito internacional, desde Oslo é sempre esta que abre mão de direitos nas negociações de paz. Segundo, trata-se na perspectiva de Beinart de um conflito simétrico, ao invés de um Estado que suprime uma população colonizada que reivindica sua autodeterminação, negando seus direitos por meio do emprego de diferentes técnicas de gerenciamento populacional e manobras discursivas orwellianas. A título de exemplo, o direito de retorno dos palestinos refugiados de 1948 – internacionalmente reconhecido desde a própria gênese do problema – é apresentado como mero estratagema da Autoridade Palestina secretamente adversa à solução de dois Estados. A iniciativa desta de procurar o reconhecimento de seu Estado na ONU é descrita como uma “revanche diplomática”, ao invés de uma atitude tomada contra um “processo de paz” tendencioso que só tem contribuído para o enraizamento e expansão da colonização, que sustenta a lógica de “fatos criam direitos” na mesa de negociação [242].

Portanto, o livro passa um ar de criticidade e seriedade, dando a impressão de ser uma análise refinada de Israel, o que é temerário visto que as contradições entre democracia e etnicidade – percebidas pelo autor, mas não desdobradas – têm consequências muito maiores do que aquelas que ele elenca. Ou seja, a aparência de engajamento crítico anuvia o fato de que o autor não compreende o problema em seu núcleo (as tensões geradas pela afirmação de um Estado étnico), e acaba por legitimá-lo.

Notas

237 Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, linha: Política e Movimentos Sociais.

238 PAPPE, Ilan. The ethnic cleansing of Palestine. Oxford: Oneworld Publications Limited, 2006.

239 MASALHA, Nur. Expulsión de los palestinos. El concepto de “transferencia” en el pensamiento político sionista, 1882-1948. Buenos Aires: Editorial Canaán, 2008.

240 GORNY, YOSEF. Zionism and the arabs, 1882-1948. A study of ideology. Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 26.

241 YIFTACHEL, Oren. Ethnocracy. Land and identity politics in Israel/Palestine. Philadelphia: University of Philadelphia Press, 2006.

242 ARURI, Nasser H. El mediador deshonesto. El rol de EE.UU. en Israel y Palestina. Buenos Aires: Editorial Canaán, 2006.

Fábio Bacila Sahd – Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, linha: Política e Movimentos Sociais.

BEINART, Peter. The crisis of zionism. New York: Henry Holt and Company; LLC, 2012. Resenha de: SAHD, Fábio Bacila. Crítica Histórica. Maceió, v.4, n.8, p.116-121, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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