The African-American Family in Slavery and Emancipation | Wilma Dunaway

Em 1965, Daniel Patrick Moynihan, sociólogo e assistente da Secretaria do Trabalho durante a presidência de Lindon Johnson, publicou um relatório cujo tema central era a família negra norteamericana. Embora tivesse como título oficial “A família negra: um caso de ação nacional”, o relatório tornou-se efetivamente conhecido como “Relatório Moynihan”.

Buscando as origens mais profundas da pobreza dos negros nos Estados Unidos, Moynihan relacionou a situação de desigualdade política e econômica, vivenciada por esse grupo social, a uma ausência relativa da família nuclear. Dessa forma, na década de 1960, segundo as orientações do Relatório, os casos crescentes de divórcios, de mães solteiras, de abandono familiar, de lares chefiados apenas por mulheres e os altos níveis de pobreza entre a comunidade negra não seriam sanados sem a intervenção governamental.

Recomendava-se que cotas de emprego, treinamento vocacional e programas educacionais voltados para essa comunidade fossem criados visando garantir a estabilidade familiar e difundir valores que conscientizassem os homens negros de suas obrigações como pais e maridos.

Duramente atacado pelos negros norteamericanos e pelos defensores dos Direitos Civis e acusado de criar um estereótipo da família negra, dos homens negros e de retratar a comunidade negra como endemicamente criminosa e patológica, o Relatório Moynihan acabou por contribuir para que as discussões acerca das origens históricas da família negra afroamericana ganhassem um espaço significativo entre os historiadores da escravidão nos Estados Unidos.

Autores como Herbert G. Gutman, Fogel e Engerman, Eugene Genovese e John Blassingame, insatisfeitos com o paradigma de anomia que se atribuía à família escrava afroamericana, passaram a argumentar, a partir do final dos anos de 1960, que a organização familiar negra, na verdade, teria emergido da escravidão com um alto grau de estabilidade. Além disso, essa organização familiar seria a verdadeira responsável pela capacidade de sobrevivência dos escravos.

Ira Berlin e Rowland reforçam a visão revisionista sobre a estabilidade familiar ao descreverem a dinâmica das relações familiares escravas. Segundo esses autores, os escravos escolhiam livremente seus cônjuges e estabeleciam uniões longas e duradouras, a maioria das crianças escravas nasciam em famílias com ambos os pais responsáveis igualmente pela educação dos filhos e os progenitores marcavam fortemente sua presença na vida destes. A autonomia da família escrava era evidenciada ainda pela pequena utilização do sobrenome senhorial por parte dos grupos familiares de escravos.

A importância da família escrava e a preocupação com a sua estabilidade, por sua vez, não se limitaria apenas ao universo escravo. Para os senhores, era economicamente racional garantir a sobrevivência de seus escravos – alimentação, vestimenta e moradia adequadas. O trabalho e a distribuição das rações organizavam-se em torno do grupo familiar, o qual funcionava ainda como elemento de fixação e desencorajamento de fugas.

Além da racionalidade econômica e da fixação da mão de obra cativa, a união e a consequente estabilidade familiar do escravo constituía, para muitos senhores, uma “questão de honra” e, de acordo com Genovese, “um número impressionante de senhores reuniu esforços para manter a família [escrava] unida”, sendo ainda a família escrava preservada das agressões sexuais por parte dos brancos.

A partir dessa breve discussão, inserimos a abordagem acerca da família escrava realizada por Wilma Dunaway em seu livro The AfricanAmerican Family in Slavery and Emancipation. Se os autores acima citados revisaram o paradigma da anomia da família escrava predominante até a década de 1960, Dunaway insere-se em um grupo de historiadores que “revisaram a revisão”.

Na década de 1980, segundo a autora, os trabalhos de Crawford e Patterson, Tadman e Stevenson inauguraram novas abordagens no que se refere à dinâmica familiar escrava, matizando a noção de estabilidade e de autonomia desses grupos familiares, assim como da relação estabelecida entre as pequenas propriedades e uma melhor qualidade de vida para o escravo.

Contrariando essa visão benevolente da escravidão nas pequenas posses, os trabalhos da década de 1980, apontam que as condições de vida dos escravos, nesse caso, seriam mais brutais em função das dificuldades econômicas do senhor em oferecer condições adequadas de sobrevivência para seus cativos.

A maior proximidade entre o senhor e seu plantel não necessariamente resultava em maior benevolência por parte daquele. De resultado incerto, a maior proximidade senhor/escravo poderia também acirrar as tensões inerentes à instituição escravista.

Analisando as narrativas de ex-escravos coletadas por meio do Works Progress Administration, os autores acima citados descrevem uma dinâmica peculiar das relações escravistas para as pequenas posses: um maior número de mulheres escravas chefes de família, punições mais severas, má nutrição mais acentuada e fertilidade mais alta. As famílias escravas, nessa perspectiva, não eram nucleares e sim compostas maciçamente por mulheres e crianças.

A ruptura com a tese de que a maioria dos escravos norteamericanos teria vivido sob uma organização familiar estável e nuclear é o norte do trabalho desenvolvido por Wilma Dunaway no livro que é objeto dessa resenha.

A autora se propõe a analisar as condições de sobrevivência da família escrava, no período compreendido entre 1820-1870, em uma região caracterizada por uma baixa densidade de população negra, pequenas posses (uma média de 15 escravos), por uma maioria de não proprietários de escravos, pela existência de muitos trabalhadores pobres, sem terras e por uma economia voltada basicamente para a produção de commodities.

Situada nos Montes Apalaches, a região delimitada compreende 215 condados do Alto Sul e 38 condados do Baixo Sul, situados nos estados de Ohio, West Virginia, Virginia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Georgia, Alabama, Tenesse e Kentucky.

A opção por esse recorte espacial justifica-se, segundo a autora, por dois parâmetros distintos: a baixa densidade populacional de escravos e, especificamente, para o caso da Virginia, as características geográficas que incluem esse estado nos limites dos Apalaches, apesar de sua alta incidência de população escrava.

A inclusão das diversas subdivisões de Mountain South explicar-se-ia por possibilitar a realização de um estudo comparativo entre áreas caracterizadas por solos diferentes, plantéis numericamente distintos entre si e uma economia diversificada. A “construção” da região, a partir dos parâmetros estabelecidos por Dunaway, efetivamente é uma operação “artificial”, pela qual mais que os limites físicos, o que se impõe na sua configuração são as relações sociais e suas articulações tanto com os elementos que lhe são internos quanto com aqueles externos e em suas identidades e oposições1.

A autora opta ainda por uma definição singular do conceito de plantation, referindo-se aqui aos empreendimentos escravistas em oposição aos não escravistas. A definição do conceito nesses termos tem por objetivo eliminar o estereótipo de que os pequenos proprietários eram semelhantes em termos sociais, políticos e econômicos aos proprietários de terras não escravistas da região. Em relação aos tamanhos das posses, as grandes plantations corresponderiam a plantéis de 50 ou mais escravos; as médias, plantéis de 20 a 49 escravos; e as pequenas, 19 escravos ou menos.

Além de um perspectiva comparada entre o Alto Sul e o Baixo Sul, a análise de Dunaway da dinâmica das relações escravistas em Mountain South privilegia o cruzamento de dados quantitativos com os arquivísticos e documentos primários e secundários, enriquecendo-a qualitativamente.

Para tanto, a autora recorre a uma grande diversidade de fontes: um banco de dados de aproximadamente 26.000 grupos familiares do século XIX, as listas municipais, os censos manuscritos, os registros de fazendas, plantations, estabelecimentos comerciais e industriais e de proprietários de pequenas e médias posses de escravos.

Incluem-se ainda, no rol das fontes utilizadas, as narrativas de exescravos. Os depoimentos colhidos na década de 1930 pela Works Progress Administration, pela Fisk University e pela Liga Urbana de Atlanta, possibilitam o confronto entre as reclamações dos ex-escravos e os registros públicos bem como valorizam o “conhecimento natural” dos ex-escravos nas transcrições analisadas, já que essa comunidade foi construída através dos mitos orais.

Embora trabalhando com uma amostragem restrita e limitada ao contexto histórico de South Mountain, o mérito desse estudo reside em enfatizar a diversidade de situações a que as relações escravistas estavam submetidas e, consequentemente, os arranjos familiares dos escravos.

A análise detalhada dos dados obtidos por meio da documentação levantada e utilizada permite afirmar que o paradigma de que a maioria dos escravos dos Estados Unidos viveu em famílias estáveis e nucleares merece, no mínimo, ser matizado pelas relações entre os senhores e seus cativos nas diferentes regiões e contextos econômicos e sociais em que se inseriam.

A predominância de pequenas posses, a lucratividade do tráfico regional – envolvendo não apenas os homens adultos mas os jovens menores de 15 anos –, o aluguel de escravos para regiões distantes, as migrações senhoriais e as partilhas por herança constituíram um panorama local que propiciou um padrão de separação familiar fortemente marcado para a região em questão.

A separação familiar provocada pelos senhores e pela ausência do pai ocorreu com muito mais frequência do que o afirmado pelo paradigma da família negra estável e nuclear. Em oposição, a família que emerge do panorama traçado, segundo a autora, é liderada por mulheres em número quatro vezes maior do que o afirmado por autores como Gutman.

Vale ressaltar a importância que Dunaway atribui ao papel dessas mulheres escravas, chefes de família, que se tornavam, em última instância, verdadeiras “provedoras do lar”, responsáveis pela organização de uma economia doméstica que garantia a sobrevivência do grupo familiar e supria as deficiências de alimentação e vestuário.

Diferentemente do caso do Brasil, onde, genericamente, podemos relacionar a economia própria do escravo com a busca pela conquista da alforria, no caso de South Mountain os recursos obtidos pelos escravos, individualmente ou inseridos no grupo familiar, visavam a sua própria manutenção e raramente se transformavam efetivamente em lucro a ser apropriado por estes.

A interferência senhorial nas relações familiares dos escravos não se limitava às separações por venda, por aluguel, por migração ou pelas partilhas entre herdeiros. Estendia-se à formação dos casais, à antecipação da idade reprodutiva da mulher escrava, à amamentação, aos cuidados infantis e às práticas de educação das crianças e à produção própria do escravo.

Interferindo rotineiramente na formação dos casais, na gravidez, no aleitamento e na educação das crianças, os senhores de Mountain South, contribuíram para a fragilização dos laços familiares e provocaram um alto índice de mortalidade materna e infantil. Índice agravado por uma alimentação inadequada e racionada, pela condições sanitárias e de moradia deficientes e que resultaram em frequentes alterações no grupo familiar escravo, levando, consequentemente, à incorporação de não parentes na recomposição desse mesmo grupo.

Avançando pelo período da Guerra Civil e, posteriormente, da Reconstrução, os grupos familiares de ex-escravos não tiveram sorte melhor do que sob o domínio senhorial. Os alistamentos e recrutamentos forçados, as famílias separadas e engajadas em exércitos diferentes, a discriminação racial, o tratamento diferenciado entre soldados negros e os brancos, as fugas para os Contraband Camps da União, a precariedade dos recursos entre os fugitivos, o abandono e o retorno para os antigos senhores, constituíram fatores que acentuaram o grau de instabilidade a que era submetida a família escrava.

Somado a isso, o alto índice de migrações de senhores e de vendas de escravos no Alto Sul aumentou ainda mais as chances de os cativos serem permanentemente separados de suas famílias. Segundo Dunaway, essas separações teriam ocorrido cinco vezes mais que no período imediatamente anterior à Guerra Civil.

O lento processo de emancipação no Alto Sul, particularmente em condados em que existia um grande número de senhores pró-União ou uma baixa densidade populacional de negros, resultou na permanência de muitos ex-escravos com seus antigos senhores por até dois anos ou mais, residindo nas mesmas moradias que ocupavam durante a escravidão.

Cerca de metade dos escravos libertados pelos soldados da União permaneceram sob domínio senhorial e apenas 15% dos ex-escravos migraram para condados diferentes daqueles em que tinham sido escravizados. A autora aponta para um processo de migração localizada com base nos censos locais que revelaram um baixo declínio populacional para toda a região.

A permanência na região se justificou pela pressão sobre os ex-escravos pela rápida obtenção de trabalho. A liberdade identificou-se com a capacidade de auto-sustento e não com o princípio de autonomia e mobilidade. Nesse sentido de fixação e controle da mão de obra emancipada, foram criadas as leis de criminalização da vadiagem2 que dificultaram ainda mais a busca por posições competitivas em um contexto marcado pela existência de um grande número de trabalhadores brancos pobres.

Quanto às famílias negras, ao final da Guerra Civil e do processo de Reconstrução, os dados indicaram que 44% permaneceram estáveis e nunca separadas, menos de 60% viveram em uma família completa e os que efetivamente estavam separados e se reuniram viviam geograficamente próximos. Entre os removidos, 3/4 perderam contato definitivamente com os seus familiares.

As conclusões obtidas por Dunaway ao final de seu estudo levaram-na a apontar alguns pressupostos para os estudos da família escrava nos Estados Unidos. Esse seria, acreditamos, outro mérito de seu trabalho.

Considerar a diversidade dos tamanhos dos plantéis, do trabalho escravo em áreas não agrícolas, para as formas diversas de migração da mão de obra cativa e não apenas o tráfico interno, os impactos dos casamentos entre plantéis distintos, da separação das crianças do grupo familiar e repensar o mito de que a família nuclear é o parâmetro para mensurar a estabilidade familiar, são alguns dos pontos levantados pela autora, os quais certamente possibilitariam uma visão mais matizada da dinâmica familiar escrava.

Não podemos nos furtar de fazer ressalvas ao trabalho de Dunaway. Ao descrever as péssimas condições de sobrevivência da família escrava e as interferências senhoriais em relação à gravidez das escravas e nas condições de amamentação a elas impostas, a suposta racionalidade da interferência desses proprietários na dinâmica familiar escrava, com o intuito de garantir a produção de uma nova geração de trabalhadores, perde sentido e revela apenas o lado nefasto de uma relação onde, não podemos nos esquecer, a violência era um componente inerente.

Por outro lado, a autora acaba por reforçar uma visão historiográfica que relega à autoridade senhorial a exclusividade em ditar as regras norteadoras das relações escravistas e, em última instância, da dinâmica familiar escrava.

Se a anomia histórica da família negra é veemente negada, fica a dúvida: os arranjos que deram uma face distinta à família escrava afroamericana (em relação à família nuclear padronizada pelos brancos) foi fruto puro e simples da vontade senhorial ou foi a resposta possível elaborada por esses cativos diante das condições específicas em que viviam? Seriam esses escravos agentes de sua própria história ou meros coadjuvantes de suas histórias de vida?

Opor os paradigmas sem buscar o “fiel da balança” certamente empobrece o debate e joga por terra o que consideramos uma das propostas mais significativas desse trabalho: estudos que primem por uma análise matizada sobre as relações escravistas e seus impactos sobre a dinâmica familiar escrava.

Notas

1 Ver Mattos, Ilmar R. de. O tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 36.

2 A influência política dos senhores locais refletiu-se nas medidas locais e estaduais que regulamentavam o trabalho e mantinham o ex-escravo dependente mantendo-o como lavrador e não como proprietário. O arrendamento da terra revelava uma hierarquia racial na medida em que era reservada aos brancos. A influência política senhorial afetou também o acesso à educação por parte dos negros após a Guerra Civil. A opção pela manutenção de baixos impostos relegou aos ex-escravos a responsabilidade pela construção e manutenção de escolas direcionadas para os negros, impediu o acesso desse grupo social às escolas brancas existentes e deu continuidade a um processo de exclusão dos negros das políticas públicas. Note-se ainda que a autora aponta as escolas negras como o principal alvo de ataques e destruição por parte da Ku Klux Klan e da comunidade branca de uma forma geral. Esses fatores contribuíram para que em 1930 metade dos negros dos Apalaches continuassem analfabetos. Cf. Dunaway, Wilma A. The African-American Family, Cap. 8.


Resenhista

Marileide Lázara Cassoli – Doutoranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: ml.meyer@uol.com.br


Referências desta Resenha

DUNAWAY, Wilma A. The African-American Family in Slavery and Emancipation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. Resenha de: CASSOLI, Marileide Lázara.  Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 11, n.1, p. 267-274, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

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