Um movimento ainda pouco destacado vai deslocando a exclusividade da produção intelectual da capital sergipana para algumas das nossas pequenas cidades do interior, com iniciativas surpreendentes. Não é fenômeno isolado, nem acontece por acaso, mas resulta do acesso à informação e, mais especificamente, do acesso à universidade por residentes nos diversos municípios, geralmente professores, que se dedicam à produção cultural e ao estudo da história, da geografia, dos falares, das tradições e a ações que reforçam o sentido de pertencimento. A enorme importância disso vai na contramão dos argumentos usados pelos que pretendem restringir o acesso à universidade, alardeando a pretensa racionalidade de uma universidade que seja para poucos, no Brasil.
Ocorre-me o exemplo de Riachão do Dantas, município que até a primeira metade do século XIX pertenceu a Lagarto, dele separou-se há 152 anos, mas permaneceu na sua órbita de influência, a meio caminho de Tobias Barreto e Boquim. Essa situação não parece contribuir para o seu crescimento, pois o município ostenta índices muito difíceis: com cerca de 20.000 habitantes dos quais menos de 5.000 estão na área urbana, 56% vivem com meio salário-mínimo e a população ocupada não chega a 6%, em dados do IBGE (2019). Conhecer sua história é um passo para entender os atuais desafios dos seus habitantes e preservar sua memória é essencial para isso.
Essa tarefa tem sido executada, com método, por José Renilton Nascimento Santos, historiador e professor que atuou nas redes públicas de ensino e atualmente dirige a Biblioteca Municipal Osman Hora Fontes. Santos é licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe, tendo-se iniciado na pesquisa com o seu Trabalho de Conclusão de Curso dedicado a estudar o fenômeno das santidades no povoado Carnaíba, em Riachão, objeto de raros artigos, que o abordavam como expressão do fanatismo, como se costumava interpretar manifestações populares dessa natureza.
Fixado em Riachão, o professor e historiador tem tido, ao longo dos anos, uma atuação constante na preservação da memória, desenvolvendo a vocação de pesquisador que o faz transcrever livros em mau estado de conservação do arquivo paroquial e empreender estudos sobre os mais diversos assuntos da vida riachãoense, tirando do anonimato o município, que se faz reconhecer pela sua história. Antes que conseguisse editar seus trabalhos, ele os distribuía como monografias que digitava, em cadernos espiralados, até que deu início à produção bibliográfica, por sua própria conta. Em 2014 publicou “Riachão do Dantas: nossa terra, nossa gente”, “Sob a proteção de Nossa Senhora do Amparo: os 160 anos da Paróquia Nossa Senhora do Amparo do Riachão” e “Achegas à escravidão na Vila do Riachão Oitocentista”. Em 2018, saíram dois livros: “Riachão do Dantas: população e economia (1940-2015) e “Aspectos do Folclore de Riachão do Dantas”. São de 2019 “Devoções e festas católicas: patrimônio cultural imaterial de Riachão do Dantas” e “Novos aspectos do folclore no município de Riachão do Dantas”. Já em 2020 publicou a “História da educação em Riachão do Dantas”, com dados que vão da experiência oitocentista aos dias atuais.
Todos estes oito livros estão disponíveis no portal da Prefeitura Municipal de Riachão do Dantas, através da bem cuidada galeria virtual criada pela Secretaria Municipal de Cultura, no projeto “Nossa história, nossas memórias”, dirigido por Lucas Silva, um jovem professor riachãoense dedicado aos estudos de linguística, que coordenou uma equipe local, com recursos provenientes da Lei Aldir Blanc, para concretizar o projeto.
Agora, Santos nos brinda com um novo livro, “Textos para a História do Riachão oitocentista”. Mergulhado nos livros de Batismo, Casamentos e Óbitos, do arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Amparo do Riachão do Dantas, ele os estuda desde os primeiros assentos, em 1856, até 1890. Faz observações sobre o estado de conservação dos documentos e a natureza dos dados encontrados, os quais transmite em escrita fácil, entremeada de explicações que mostram ao leitor a necessidade da preservação das fontes históricas. Não se trata de um livro feito apenas para iniciados nas questões da memória e da história ou para pesquisadores. O leitor comum e particularmente o professor vai encontrar nele inúmeras informações sobre práticas e costumes na sociedade sergipana do oitocentos em seu nexo com as normas da igreja católica e do Império brasileiro, quando o sistema do Padroado transferia para a igreja certas obrigações civis, como o registro dos nascimentos (batismos), casamentos e óbitos.
Entretanto, não deixa de ser um livro que se relaciona com o saber da Academia. O conhecimento é apresentado em diálogo com a bibliografia pertinente sobre a importância dos documentos, sobre os regulamentos da Igreja Católica e sua aplicação em Portugal e no Brasil Colônia, de tal modo que não escapa ao leitor a relevância do trabalho realizado pelo Autor, que lança mão de vários exemplos colhidos da documentação para demonstrar o uso regular dos dados e as características particulares da sociedade riachãoense. Os exemplos escolhidos, em sua variação, dão a conhecer uma imensa gama de informações, destacando a realidade escravocrata. Se nos livros de Batismo aparecem como dados obrigatórios como: data, local, prenome do batizando, sua idade, nomes dos pais (ou da mãe, no caso dos chamados filhos naturais), nomes dos padrinhos e a assinatura do pároco, nos batismos de escravizados aparece o nome do proprietário do batizando, dos pais e dos padrinhos e madrinhas, além de ser registrada a condição jurídica de libertos, nos casos em que isso ocorre. Já os livros de Casamentos registram data e local do casamento, nomes e sobrenomes dos cônjuges, dos seus pais e das testemunhas, além da situação de filho legítimo ou “natural” de cada um dos cônjuges, sempre seguida da assinatura do pároco. O Autor chama a atenção para o fato de que os nomes e sobrenomes dos pais não constam dos assentos de casamentos de viúvos ou de escravizados, mas há outras informações como o nome do cônjuge falecido, a menção aos impedimentos por consanguinidade ou à dispensa concedida pela autoridade religiosa e os nomes dos proprietários de escravos. Finalmente são explorados os livros de óbitos, que trazem a data do falecimento, a causa mortis, o nome do falecido e dos seus pais (para crianças) ou cônjuge, a indicação de administração dos sacramentos, o local do sepultamento e a assinatura do pároco, mas às vezes o registro é enriquecido com informações sobre cor, modo de encomendação e sempre, no caso dos escravizados, do nome do proprietário.
Apresentados os livros, o Autor dedica um capítulo às “Práticas de nominação na vila do Riachão oitocentista (1856-1890)”, revelando como os riachãoenses escolhiam nomes e sobrenomes. Serviu-se para isso dos livros apresentados no primeiro capítulo, trabalhando inclusive com números, tabelas e porcentagens. Deste capítulo constam observações sobre o que os nomes escolhidos podem revelar acerca das origens das famílias, dos laços entre grupos familiares, sociais ou étnicos, da existência de imigrantes na comunidade ou de transformações políticas, religiosas e de usos e costumes. A partir daí foi possível ao estudioso estabelecer os prenomes masculinos e femininos mais utilizados em Riachão do Dantas no período, constatar o predomínio absoluto da tradição cristã nas práticas de nominação, inclusive na adoção dos sobrenomes e concluir pela construção de anexos com o estoque de 568 nomes masculinos e 504 nomes femininos e com listas que demonstram o volume da ocorrência de nomes e de sobrenomes na população riachãoense a partir dos livros do arquivo paroquial.
O terceiro capítulo estuda mais de perto os assentos dos seis Livros de Registros de Batismo, que totalizam 11.254 registros. Nele, Santos realça a riqueza de informações que podem ser exploradas para o conhecimento do movimento da população, dos lugares de ocorrência dos batismos na área da freguesia, da idade, nome, filiação, padrinhos, cor e condição jurídica do batizando – considerando a classificação como livres, escravos ou forros – os nomes dos proprietários de escravos, a ocorrência de batizados de indígenas e até os casamentos e uniões consideradas ilegais, padrões de legalidade e de ilegitimidade na constituição das famílias, entre outros. São dados que o olhar acurado do historiador colheu para mostram a face da sociedade tal como foi registrada pelos párocos.
O último capítulo traz outro tema e analisa Códigos de Posturas do município que foram aprovados no período imperial. Inicia com dados da formação do município de Riachão do Dantas, enfoca o papel das Câmaras Municipais e a natureza dos Códigos de Posturas antes de tratar especificamente das propostas dos códigos de posturas para a vila do Riachão. São documentos que normatizam a vida dos habitantes em aspectos como a higiene pública, a salubridade e a saúde, o abastecimento de água, a segurança pública, os costumes, a economia urbana, as atividades econômicas rurais e urbanas, enfim, as regras de convívio e até o aspecto da vila, ordenadas pelas normas descritas nos Códigos de Posturas. Renilton Santos lembra que esses documentos sinalizam modelos civilizatórios e constituem um testemunho de como foi idealmente pensada a vida dos riachãoenses no período.
Os dados destacados são de tal modo interessantes que a leitura provoca, por vezes, o desejo de que o Autor desenvolvesse mais a explicação e a narrativa, mesmo respeitada aquela que pode ter sido sua intenção – o caráter também “didático” do livro, o objetivo do professor que quer destacar os documentos e as suas potencialidades, que implicitamente sugere o uso do livro por outros professores e pode estimular atividades de pesquisa ou comportamentos de preservação da memória entre os membros da comunidade.
Mas este não é um livro cujo interesse se restrinja aos riachãoenses. O Riachão oitocentista é parte de um contexto que leva ao Sergipe e ao Brasil oitocentista, ao cenário da sociedade escravista no Império brasileiro, que expressavam, na pequena vila, as normas e ordens emanadas dos centros do poder.
Resenhista
Terezinha Alves de Oliva – Historiadora, professora aposentada da UFS. E-mail: toliva06@gmail.com
Referências desta Resenha
SANTOS, José Renilton Nascimento. Textos para a história do Riachão oitocentista. Vol. 1. Pará de Minas – MG: VirtualBooks Editora, 2021. Resenha de: OLIVA, Terezinha Alves de. Nas fontes históricas do Riachão oitocentista. Ponta de Lança- Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v. 16, n. 31, p. 207-211, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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