Texto/ imagem e retórica visual na arte funerária egípcia | Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira | Imagem: Café História

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira é um egiptólogo brasileiro radicado em Portugal. Atua na graduação e pós-graduação em História da Universidade Nova de Lisboa e é o autor da primeira gramática de egípcio médio oficialmente publicada em língua portuguesa (PEREIRA, 2016).1 Com a publicação de sua gramática e, agora, do livro ora resenhado, Pereira vem contribuindo largamente para o desenvolvimento dos estudos sobre o Egito antigo no Brasil.

A obra Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia consiste em um erudito manual introdutório ao estudo da arte egípcia. O livro foi concebido de forma que possa ser utilizado em cursos de graduação e pós-graduação e, sobretudo, suprir a lacuna causada pela raridade de cursos de língua egípcia no Brasil hoje em dia. Porém, não se trata de um manual em um manual de língua egípcia propriamente dito; o estudo da língua é somente introduzido em relação àquele das representações artísticas – de suas convenções e elementos ocultos que podem ser lidos como textos, na medida em que os hieróglifos são essencialmente representações visuais que constituem as formas de construção e comunicação do simbolismo da arte egípcia. Portanto, tal como apresentado na introdução, o conhecimento da língua é considerado crucial para que se possa decodificar a arte como fonte de informações sobre a sociedade e a cultura egípcias.

A obra aborda a arte egípcia em seus aspectos discursivo e simbólico. O primeiro diz respeito à comunicação da arte através de sua ligação com a língua, o que o autor chama de retórica visual. Trata-se da identificação dos signos visuais que compõem, ao mesmo tempo, palavras e imagens, que, por sua vez, comunicam simbolismo através de figuras de linguagem (p. 19-20). O segundo aspecto – simbólico – diz respeito à cultura: a carga simbólica comunicada pela arte, através de seus elementos discursivos constituintes, e que nos permite entender, por exemplo, aspectos religiosos das representações. Ao relacionar os dois aspectos da arte por meio da retórica visual, o autor nos apresenta um manual um manual para a decodificação moderna da arte egípcia, de maneira bastante semelhante aos livros introdutórios à arte egípcia de Richard Wilkinson, que, por algum motivo, tornaram-se populares entre pesquisadores brasileiros (WILKINSON, 19941999). Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia oferece subsídios para a decodificação da arte egípcia e também propicia elementos para que entendamos o que era necessário para que os antigos egípcios consumissem representações artísticas, o que está intimamente ligado à constituição de elites letradas visualmente que se distinguiam socialmente a partir de seu capital cultural.

O livro está dividido em três partes. A primeira é intitulada “Fundamentos da Escrita Hieroglífica” e se divide em quatro capítulos: 1) As escritas egípcias e os seus suportes; 2) Os princípios da escrita hieroglífica; 3) Convenções: transliteração, pronúncia e classificação; e 4) Os hieróglifos compostos. Os capítulos da Parte I têm como objetivo oferecer ao leitor a base textual necessária à leitura da arte egípcia e, portanto, sua decodificação para que sirva como fonte para o estudo da sociedade e da cultura em vários períodos históricos (posteriormente na obra, o autor explorará exemplos iconográficos de períodos distintos da história egípcia como base para suas discussões). Aqueles que desejarem se aprofundar nos temas tratados na primeira parte do livro devem consultar a gramática de Pereira (2016).

A segunda parte, intitulada “Entre Texto e Representação Visual”, está igualmente dividida em quatro capítulos: 5) O princípio mágico dos hieróglifos; 6) O cânone da escrita hieroglífica; 7) Os hieróglifos como representações visuais; e 8) Interações textuais-visuais. Estes capítulos estabelecem as relações entre texto e visualidade nas composições artísticas egípcias. Esta parte inclui uma discussão dos princípios básicos da língua egípcia, isto é, das regras que guiavam a composição de textos em cenas (pinturas parietais, estelas etc.): dimensão, orientação, proporção e interação com elementos puramente visuais (por exemplo, representações de indivíduos ou objetos). Trata-se, portanto, do segundo passo, após a compreensão dos aspectos básicos da língua que sublinham o caráter discursivo das representações visuais, no processo de alfabetização do olhar para a decodificação da arte enquanto janela para o simbolismo da cultura.

A terceira parte, “Literacia Visual”, divide-se nos seguintes capítulos: 9) Retórica visual e iconografia funerária egípcia; 10) Trocadilhos fonéticos; 11) Hermenêutica das analogias visuais; e 12) Egiptologia e antropologia visual. Essa seção da obra parte do pressuposto de que o leitor já tenha sido alfabetizado para a leitura e decodificação dos elementos básicos da arte egípcia, dados na intrínseca relação entre elementos textuais e visuais, onde texto está submetido às mesmas regras visuais que guiam a composição de cenas e determinadas ações desempenhadas por indivíduos podem ser lidas como palavras ou frases (por exemplo, certo posicionamento dos braços à frente do corpo, o que pode ser potencialmente lido como ‘oferecer’ ou ‘abraçar’/’proteger’) (p. 131).

Nessa parte, o autor aprofunda o estudo das composições artísticas e de seus referenciais culturais. Ao mesmo tempo em que as representações artísticas egípcias seguiam um conjunto de regras formais relativamente rígido, essas representações também poderiam comunicar “significados convencionais (ou “óbvios”) e simbólicos” (p. 100). De um lado, o primeiro tipo de significado diz respeito ao que um habitante médio de uma cidade egípcia provavelmente poderia entender ao ver uma cena: “analogias visuais mais óbvias ou os jogos de palavras provocados pelo gestual de figuras e/ou pelo posicionamento de objetos” (p. 103). Por outro lado, o significado simbólico somente poderia ser entendido por indivíduos ou grupos detentores de certo capital cultural, o que os permitiria extrair, por exemplo, narrativas míticas e/ou mágicas ocultadas por meio “trocadilhos”, como por exemplo em cenas de oferendas (p. 112-114) ou cenas de caça e guerra (p. 136-139).

O foco nos aspectos discursivos e simbólicos da arte caracteriza a obra como um tradicional trabalho de egiptologia de ênfase na erudição filológica, o que pode ser considerado, por alguns, como seu ponto fraco. Porém, em se tratando de um manual de arte egípcia para principiantes, este talvez seja o seu ponto mais forte, na medida em que oferece aos iniciantes uma base sólida a partir da qual entender as fontes primárias, que posteriormente podem ser empregadas em análises mais complexas do âmbito social, à luz de teoria. Trata-se, portanto, de uma obra sobre arte egípcia altamente relevante para a formação de estudantes de egiptologia no Brasil e que também oferece subsídios para o estudo inicial da língua egípcia, incluindo uma lista de signos como apêndice ao final.

No que diz respeito aos aspetos formais da publicação, é preciso destacar que a baixa qualidade e o tamanho reduzido das imagens não fazem jus ao alto nível do texto. Por exemplo, é impossível ler os hieróglifos na figura 47 – um problema grave numa obra que trata justamente da relação texto-imagem. Além disso, as referências listadas ao final do volume incluem obras não citadas no corpo do texto, o que pode tornar difícil distinguir aspectos discutidos pelo autor também presentes em outras publicações.

Uma obra não pode ser julgada por aquilo que ela não faz, mas somente por aquilo que ela concretiza. Porém, um aspecto que talvez a torne demasiadamente restrita, no contexto da área de história antiga, onde geralmente a egiptologia se encaixa no Brasil, é a falta de engajamento teórico com a história visual e os estudos de cultura material, sobretudo aqueles desenvolvidos no Brasil (por exemplo, MENESES, 2003MENESES, 2012REDE, 2012). O diálogo entre a egiptologia e outros campos das ciências sociais é ainda muito pouco desenvolvido e pode gerar frutos interessantes (BAINES, 2011).

A originalidade de Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia reside no fato de este apresentar ao público brasileiro um conteúdo tradicionalmente europeu, até então restrito por barreiras linguísticas e econômicas. Trata-se, portanto, de uma contribuição de alto nível para o desenvolvimento dos estudos sobre o Egito antigo no Brasil e em demais países de língua portuguesa. Espero que a obra se torne leitura obrigatória em cursos básicos de formação em história antiga no Brasil e torço para que a leitura deste manual seja um ponto de partida para abordagens à brasileira da arte e da história egípcias, isto é: à luz de pontos de vista alternativos, não-eurocêntricos, baseados em formas de produzir conhecimento tipicamente locais.

Nota

1O professor Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) é autor de duas gramáticas em língua portuguesa, uma de egípcio médio e outra de neoegípcio. Estas gramáticas serviam como base para cursos de língua egípcia oferecidos na pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Infelizmente as gramáticas de Cardoso nunca foram formalmente publicadas, porém circulam em meio eletrônico entre estudantes e pesquisadores no Brasil.

Referências

BAINES, John. Egyptology and the Social Sciences: Thirty Years On. In: VERBOVSEK, Alexandra; BACKES, Burkhard; JONES, Catherine (orgs.). Methodik und Didaktik in der Ägyptologie. Herausforderungen eines kulturwissenschaftlichen Paradigmenwechsels in den Altertumswissenschaften München: Wilhelm Fink Verlag, 2011. p. 573-597.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. História e imagem: iconografia/iconologia e além. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da História São Paulo: Elsevier, 2012. p. 243-262.

PEREIRA, Ronaldo Guilherme Gurgel . Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia Rio de Janeiro: Autografia, 2019.

PEREIRA, Ronaldo Guilherme Gurgel . Gramática fundamental do egípcio hieroglífico 2. ed. Lisboa: Chiado, 2016.

REDE, Marcelo. História e cultura material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da História São Paulo: Elsevier , 2012. p. 133-150.

WILKINSON, Richard. Reading Egyptian Art: a Hieroglyphic Guide to Ancient Egyptian Painting and Sculpture. London: Thames & Hudson, 1994.

WILKINSON, Richard. Symbol and Magic in Egyptian Art London: Thames & Hudson, 1999.


Resenhista

Rennan Lemos – Pesquisador em Ludwig-Maximilians-Universität München. Fakultät für Kulturwissenschaften. Department für Kulturwissenschaften und Altertumskunde, München, Alemanha. E-mail: r.lemos@lmu.de  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1803-7173


Referências desta Resenha

PEREIRA, Ronaldo Guilherme Gurgel. Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia. Rio de Janeiro: Autografia, 2019. Resenha de: LEMOS, Rennan. Arte egípcia para brasileiros. Topoi. Rio de Janeiro, v. 23, n. 49, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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