Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII – SILVA

SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. Resenha de: ROMEIRO, Adriana. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, p. 237-240, jan./jun., 2007.

Originalmente escrita como tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro Territórios de mando – banditismo em Minas Gerais, século XVIII debruça-se sobre um campo raramente explorado pela historiografia mineira: a vasta região rural da capitania, dominada por potentados e poderosos locais, perdidos em meio às lonjuras de um sertão inóspito e distante. Poucos foram os estudiosos que se aventuraram por esse verdadeiro continente indevassado, a exemplo de Bernardo da Mata-Machado1e, mais recentemente Carla M. J. Anastasia, num trabalho pioneiro sobre as turbulentas zonas de fronteira, intitulado A geografia do crime.2 Ao contrário do enfoque predominante na historiografia sobre o Setecentos mineiro, voltada para o universo das vilas e arraiais, a urbanização restringia-se a uns poucos núcleos populacionais, para além dos quais abria-se, imenso e inquietante, o sertão.

Filiada às novas tendências historiográficas, a autora se propõe a examinar a configuração política peculiar que floresceu à roda dos grandes potentados sertanejos, responsáveis pela constituição de vigorosos pólos de poder privado, que, ao longo de todo o século XVIII, minou insidiosamente as sucessivas tentativas da Coroa portuguesa no sentido de estender os seus tentáculos por toda a capitania. Afinal, como se dava o exercício do poder e do mando entre esses homens, tidos freqüentemente por facinorosos e rebeldes? Que valores pautavam o imaginário político deles? Ao longo da pesquisa, Célia Nonata da Silva descobre uma cultura política singular, profundamente marcada pelas concepções barrocas do Portugal restaurado, reinventadas no contato com as tradições locais. Mestiça, essa cultura política estruturava-se em formas de mando complexas, que estavam longe do estereotipo fixado pelos contemporâneos, que viram nelas tão-somente a expressão de uma violência irracional, típica do cenário bárbaro em que supostamente viviam os sertanejos.

Encarnando um poder que fustigava a Coroa, contra a qual empreenderam uma tenaz e bem-sucedida resistência, os potentados dominavam vastas extensões de terra – os chamados territórios de mando -, nos quais eram reconhecidos como chefes políticos legítimos, e por essa razão, obedecidos e respeitados por um número expressivo de moradores. Um exemplo disso é a situação inusitada em que se viu o Conde de Assumar, por ocasião do motim de Barra do Rio das Velhas, obrigado a enviar bandos para informar a população local de que ela devia obediência e vassalagem ao rei de Portugal e não a Manuel Nunes Viana. Apesar disso, este último continuou a reinar soberano e absoluto na região, desafiando acintosamente os esforços desesperados do governador para estabelecer ali o poder público.

Ao carisma destes potentados, somavam-se práticas de dominação que se traduziam sob a forma de ritos de violência específicos, como o recurso à vingança, a valorização da honra, a exibição de signos de virilidade, como a valentia, a bravura e o desafio, dos quais resultou um exercício de poder marcadamente privado, refratário, em alguns casos, à negociação, em outros, abertos à transação. Em torno deles, gravitava uma complexa rede de solidariedades, de que faziam parte escravos, forros, homens livres e pobres – e por vezes, as próprias autoridades locais – organizados em bandos armados, dispostos a executar os desígnios dos chefes locais, engalfinhados na luta pela expansão de seus territórios de mando e nas contendas entre famílias.

O principal mérito do livro reside no estudo sistemático da lógica e racionalidade do poder privado, buscando apreendê-lo como uma outra forma de exercício de poder, e não como mera negação da ordem pública. Dele emergem potentados a um só tempo fascinantes e perturbadores, como o contrabandista Mão de Luva, líder de uma quadrilha que aterrorizou por anos a Mantiqueira, ou o já mencionado Manuel Nunes Viana, que se valia de crenças mágicas africanas – como o ritual do corpo fechado – para controlar as populações da Barra do Rio das Velhas. Situados numa zona cinzenta, nos tênues limites entre a ordem e a desordem, os poderosos do sertão resistem à tipologia simplificadora proposta por Eric Hobsbawm em seu clássico Bandidos, cujo objeto são os indivíduos considerados criminosos pelo Estado. O caso dos potentados mineiros é muito mais complexo: se desafiavam as leis de Sua Majestade, perpetrando toda sorte de crimes e violências, ainda assim era os seus mais valiosos aliados, os únicos capazes de impor alguma ordem em meio às lonjuras da América. A este respeito, é bem reveladora a trajetória de Manuel Nunes Viana – que nada tinha de extraordinária ou excepcional, se comparada à de outros potentados. Tido pelos contemporâneos por um dos mais homens mais experientes nas matérias relativas ao sertão, investido de uma autoridade reconhecida pelos sertanejos, o chefe emboaba era, na opinião de um ouvidor do Rio das Velhas, o único indivíduo capaz de levar alguma ordem àquele “receptáculo para criminosos de toda a América”. Endossando esta idéia, o marquês de Angeja tecia-lhe elogios em carta ao rei, observando que “é certo que o dito Manuel Nunes Viana não só é o homem mais capaz que tem aqueles distritos, tanto para fazer o cabal informe que se lhe manda, e executar as ordens de V. Majestade fazendo-as observar e respeitar como devem ser; mas é o único que atualmente dá cumprimento ao que se lhe mandam, e faz ter em sossego e respeito o distrito, que se lhe tem assinado como sua capitania mor, sossegando-a e limpando-a dos ladrões todas as vezes que aparecem alguns por aqueles distritos…”.3 Existia mesmo, no início da década de 1710, um consenso generalizado entre os funcionários régios sobre o seu papel estratégico nos sertões distantes e, mesmo os inimigos, a exemplo do conde de Assumar, reconheciam que, não obstante seus excessos e tiranias, ele era uma figura respeitada e obedecida nos territórios distantes do controle da Coroa. Sensíveis à importância do conhecimento acumulado por estes potentados, verdadeiros depositários de um saber essencialmente sertanejo, que abrangia desde as condições ecológicas até a índole dos moradores, os sucessivos governadores-gerais sempre os tiveram em altíssima conta, encarregando-os de uma série de diligências relevantes nos confins da capitania.

O caráter ambíguo das relações entre os poderes público e privado é refutado veementemente pela autora, que vê nos potentados e poderosos do sertão o foco de um poder privado, a serviço de interesses particulares – e por essa razão, incompatível com as exigências das autoridades. Aliás, mesmo essas, como a própria autora admite, submeteram-se ao processo de privatização do poder, transformando-se também em pólos de poder concorrente, capazes de prejudicar – e mesmo subverter – a soberania portuguesa em terras mineiras.

Atenta às formas de expressão e consolidação da ordem privada, a autora opta por não esmiuçar o outro pólo do exercício político dos chefes sertanejos: a comunidade que a eles devotava respeito e admiração. Para além do nível mais imediato de capangas, caboclos e escravos, configurando os bandos armados, havia largos setores da população que os reconheciam como uma liderança política legítima e absoluta. Tudo indica que, nas paragens distantes em que a Coroa não havia instalado o seu aparato administrativo, a ordem privada desempenhava um papel decisivo no cotidiano miserável dessas populações, uma vez que proporcionava desde o exercício da justiça e a solução dos conflitos vicinais até a cura de doenças e o auxílio a doentes e inválidos.

Campo vasto, mas árduo, o tema do poder privado nos sertões mineiros esbarra em inúmeras dificuldades, sendo a principal delas o fato de que as fontes disponíveis reproduzem o olhar das autoridades e por essa razão tendem a mascarar a natureza complexa da ordem privada, reduzindo-a à mera violência e barbárie. Se os potentados não tiveram direito à palavra, o mesmo também aconteceu com os seguidores deles: sociedade de analfabetos, não legaram aos estudiosos relatos mais densos sobre as suas motivações políticas. É através do olhar enviesado dos seus detratores que o historiador tem de adentrar no imaginário político desses homens, buscando nas entrelinhas as pistas e indícios das idéias e práticas que floresceram no sertão.

Por fim, é preciso elogiar a bela edição da Crisálida – cuja única restrição é a falta de uma revisão cuidadosa -, com um destaque especial para a sugestiva capa, inspirada numa xilogravura de Arlindo Daibert. A promissora editora firma-se assim como mais um veículo de publicação que se abre às numerosas e competentes dissertações de mestrado e teses de doutorado que, a exemplo do trabalho de Célia Nonata da Silva, tem revigorado a historiografia mineira.

Notas

1 MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.

2 ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime: violência nas minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

3 Ambos os documentos foram citados por RUSSELL-WOOD. Manuel Nunes Viana: paragon or parasite of Empire? The Americas, April 1988, v.37, p.488-489, n.4.

Adriana Romeiro – Professora do Programa de Pós-graduação da UFMG. E-mail:  adriana.romeiro@uol.com.br

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