Simone Lopes Dickel é doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), é mestre em História, também, pelo PPGH/UPF. Sua graduação foi em História – Licenciatura Plena, pela UPF no ano de 2009 e atualmente é professora de História da Rede Pública Estadual do Rio Grande do Sul, na Escola Estadual de Ensino Médio Zumbi dos Palmares e Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro, ambas localizadas no município de Pontão/RS, berço da desapropriação da Fazenda Annoni.
O livro “Terras da Annoni”, foi produzido a partir de sua dissertação de mestrado na linha de pesquisa Espaço, Economia e Sociedade do PPGH/UPF, tendo por título “A função social da propriedade da terra no processo de desapropriação da Fazenda Annoni (1972-1993)”, da qual defendeu no ano de 2016. A obra adentra no ceio da relevância histórica e jurídica, que significou e ainda significa a desapropriação de um grande latifúndio improdutivo no norte do estado do Rio Grande do Sul, que recebeu na data de 29 de outubro de 1985, dia de sua ocupação, mais de 1.500 famílias vindas de diferentes regiões do estado sul-rio-grandense. Entre os tantos motivos da ocupação,
[…] destaca-se o fato desta fazenda estar em litígio judicial há cerca de treze anos. Desde 1972, família proprietária e União brigavam na justiça pela propriedade da fazenda, e enquanto a situação não se resolvia, pois ambas as partes interpelavam recursos a cada decisão dos tribunais, a fazenda permaneceu praticamente ociosa. (DICKEL, 2017, p. 18)
Dessa forma, o expressivo número de informações e discussões que a autora traz em seu livro, faz um excelente diálogo entre a História e o Direito, trazendo com profundidade a questão fundiária e social da terra, numa construção histórica de luta. Para o desenvolvimento da obra, a autora teve por fontes primárias (e principais) processos judiciais (4ªRegião) que envolviam tal imóvel. Além dos processos, a autora adentrou na investigação de decretos-lei, leis, legislações, Estatuto da Terra e o acervo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e diversas bibliografias da História, Direito e Ciências Sociais, para embasar e contextualizar na história tal problema fundiário O processo de desapropriação da fazenda nos remete à década de 1970 quando a família Annoni e a União disputavam na justiça a propriedade de mais de 9.000 hectares, alegando o problema da função social da propriedade.
No primeiro capítulo do livro intitulado “A história da fazenda Annoni e o processo de desapropriação no cenário regional”, a autora versa a contextualização histórica da fazenda e o cenário político no qual estava inserido: Ditadura Militar. Dando ênfase à criação, em meio à ditatura, do Estatuto da Terra devido a insatisfação do meio rural quanto às políticas que o envolviam. Porém, o estatuto não trouxe mudanças. Ainda no primeiro capítulo, a autora, apresenta juridicamente o decreto de desapropriação da fazenda que ocorreu no ano de 1970 e sua ocupação na década de 1980, concretizando o processo de desapropriação. Logo:
Na Annoni, o assentamento definitivo vai começar em 1986 e só vai terminar em 1993, e os critérios de escolha das famílias que iriam receber os lotes gerou bastante conflitos entre os acampados. Na primeira fase do assentamento, 57 famílias dos chamados “afogados do Passo Real” foram contempladas com lotes de terra na Annoni. Outras 177 famílias organizadas em torno do MST foram assentadas em outras regiões do estado. Na segunda fase, 35 famílias organizadas em torno do MST foram assentadas na Annoni, no chamado Assentamento Holandês. A terceira fase contemplou aqueles que residiam anteriormente no interior da Annoni, na condição de ex-empregados, filhos de “parceleiros” parceiros e arrendatários. (DICKEL, 2017, 90-91)
O segundo capítulo, envolve o aparato jurídico da desapropriação: “O processo judicial de desapropriação da fazenda Annoni”. Nele a autora trabalha, muito bem, o processo jurídico que pairou sobre o imóvel desde o decreto de desapropriação até as discussões que versavam quanto ao pagamento das indenizações; ou seja, “o que seria indenizado, o que não seria indenizado, e quais os valores da indenização” (DICKEL, 2017, p. 139. Além disso, discute o imóvel ser ou não uma empresa rural, já que a família entrava no judiciário com uma ação alegando que o imóvel apresentava características de uma empresa rural; assim, o Estatuto da Terra os protegeria da desapropriação, já que imóveis caracterizados como empresa rural estariam protegidos de uma possível desapropriação de terra. Deste modo,
Concluído o pertencimento da Fazenda Annoni à categoria Empresa Rural, a decisão foi muito atacada pelo Incra e União, através da interposição de recursos, onde eles discordavam das decisões dos tribunais, afirmando ter sido o ato desapropriatório um ato fundado na legalidade, e insistindo sempre no grave problema social à espera de resolução (DICKEL, 2017, p. 130).
Essa discussão, quanto a classificação do imóvel, pairou no judiciário entre os anos de 1972 e 1980, e só tomou conclusões específicas a partir da ocupação das mais de 1.000 famílias sem-terra, em outubro de 1985. No terceiro e último capítulo do livro, “Função social da propriedade da terra e reforma agrária na fazenda Annoni” apresenta, a partir de Caio Prado Jr, a questão agrária no país e a construção constitucional do conceito de função social da propriedade da terra, definindo-o:
A terra tem, sim, o papel de produzir alimentos, e dela depende o futuro dos alimentos, o que, de certa forma, interfere na vida de todo o mundo. Portanto, ela não pode ser apropriada de qualquer forma, a qualquer custo, como queira seu proprietário (DICKEL, 2017, p. 173).
O capítulo, ainda, abarca a posse e propriedade da terra na fazenda Annoni e a discussão do conceito de reforma agrária feita na fazenda; pois, “para os sem-terra, a terra tem um grande valor simbólico, excedendo o valor econômico que ela representa” (DICKEL, 2017, p. 194). O grande latifúndio encontrado por estes, era próprio para a “prática da agricultura mecanizada em função de sua localização geográfica e do modelo de desenvolvimento econômico vigente na época da desapropriação” (DICKEL, 2017, p. 198), porém o que ali foi encontrado era completamente diferente, pois a terra do imóvel necessitava de “correções que demandavam recursos dos quais os acampados não dispunham” (DICKEL, 2017, p. 198).
Assim, “Terras da Annoni” é uma referência fundamental aos estudos voltados para a questão da propriedade da terra, movimentos sociais e política agrária, devido à ampla discussão trazida pela autora. De um latifúndio improdutivo do estado do Rio Grande do Sul, desapropriado em plena Ditatura Militar, recebeu mais de 1.500 famílias, o que mais tarde foi fundamental para o desenvolvimento e criação de um município do estado, denominado Pontão/RS. A desapropriação de tal imóvel gerou, a partir dele, muitas outras ações, que ainda permeiam o judiciário sul-rio-grandense. Sem dúvidas, para os que estudam o judiciário e a propriedade da terra fica nítido que no estado este é o processo que há mais tempo encontra-se em tramitação. Não se pode adentrar as questões fundiárias sem antes ler sobre este litígio. A autora nos presenteia com essa obra e com a forma metodológica do texto, mostrando e questionando o tema: “a Annoni é um mosaico de experiências derivadas da reforma agrária, que mostram desde a sua legitimidade até as suas falhas quase insanáveis” (DICKEL, 2017, p. 207). Finalizando, a desapropriação da fazenda Annoni foi uma das poucas feitas com base no Estatuto da Terra criado durante a Ditadura Militar e que recebeu inúmeras críticas quanto sua eficiência perante a realidade do campo.
Caroline da Silva – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Linha de pesquisa: Espaço, Economia e sociedade. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural (NEHMuR).
DICKEL, Simone Lopes. Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social. Curitiba: Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, Caroline da. O símbolo histórico de um movimento pela terra: A desapropriação da Fazenda Annoni no Rio Grande do Sul. Crítica Histórica. Maceió, v.9, n.18, p.258-261, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
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