Terra, trabalho e conflitos | Mundos do Trabalho | 2012
Em 1981, foi publicado o livro História da agricultura: combates e controvérsias, de autoria de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, que se tornou um divisor de águas nos estudos sobre a história agrária no Brasil. A obra era o resultado de um projeto de pesquisa sobre a história da agricultura brasileira desenvolvido por Linhares, a partir de 1976, no curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Na década do período mais difícil da Ditadura, Linhares havia instituído um programa de estudos acerca da realidade agrária do país. A publicação de História da agricultura, em 1981, coincidiria com o início do processo de abertura política, durante o governo do último presidente militar, João Figueiredo. O livro era, assim, o resultado de uma trajetória marcada pelo engajamento político e por um otimismo manifesto em relação às questões que envolviam o problema agrário do país. Linhares e da Silva buscavam mostrar as múltiplas possiblidades de investigar o campo brasileiro, ajudando o leitor com informações – hoje tão acessíveis – sobre as características e as possibilidades de pesquisa dos documentos diretamente relacionados à estrutura fundiária, e sobre as fontes para o estudo das estruturas sociais, as de natureza cartorial, as de natureza econômica e políticoinstitucional, e os documentos oficiais, como atas, correspondências e legislações. O livro era ,desse modo, uma janela que se abria para o universo rural, desconhecido da grande maioria dos jovens universitários que haviam sido criados na Ditadura. Inseridos num período historiográfico cuja marca era a utilização do método quantitativo, eles desejavam contribuir para a consolidação de metodologias e modelos capazes de estimular os estudos sobre o tema no Brasil. Passados muitos anos após a criação daquele campo científico, ainda estão presentes muitas das questões inauguradas pelos autores.
A retomada dessa área de conhecimento em fins dos anos de 1990 – ocorrendo num contexto social e político de intensificação da luta pela Reforma Agrária – foi também o resultado da aproximação dos historiadores do rural às principais ilações das obras da chamada Nova Esquerda Britânica, bem como pela redescoberta de fontes primárias, antes muito pouco utilizadas, como os processos de embargo, de despejo, de justificação e de medição de terra, por exemplo. A partir daí, um sem números de trabalhos procuraram trazer à luz uma dimensão ainda mais densa sobre o universo rural. A partir dos anos 2000, com a generalização das informações propiciadas pela informatização, tornou-se possível o estudo de fontes dificilmente acessíveis naqueles anos inaugurais dos estudos de Linhares e da Silva e as novas gerações puderam então dar concretude a muitas das possibilidades de pesquisas anunciadas em História da agricultura: combates e controvérsias.
Os trabalhos aqui reunidos expressam em certa medida o revigoramento desse campo de estudo e um novo chamamento à pesquisa e recuperação do sentido das palavras expressas por Iglésias, quando da apresentação daquele livro inaugural. Inseridos num novo tempo, em que a opção pela história narrativa adquiriu um lugar preponderante nos estudos históricos do país, a nova geração dos estudiosos do rural assumiu também o papel de refletir sobre o significado de ser historiador, num país ainda marcado por emblemáticas desigualdades sociais e onde a terra – bem não reproduzível pela natureza – é ainda um bem de alguns poucos, num universo de conflitos rurais que tem também uma história.
Os estudos recentes reunidos neste dossiê, por sua abrangência cronológica e geográfica, e pela abordagem frequentemente associada aos “de baixo” da escala social, consolidam o campo de estudos sobre o meio rural, derrubando antigas barreiras intelectuais, produto de uma produção urbana eurocêntrica e industrialista, que só percebia o mundo rural como local de carências, ignorância e miséria. Em muitos momentos a própria historiografia, por desqualificar os temas, as questões e a vida rural, reproduziu o discurso do estado e de entidades patronais que viam o trabalhador do campo como um indivíduo incapaz de lutar contra a própria miséria e como uma “vítima” indefesa do abandono, do analfabetismo e das verminoses. Certamente há muitas influências antropológicas nessas novas abordagens. No caso dos historiadores, Edward Thompson foi conduzido a uma “viagem” pelo interior do Brasil. O que a nova historiografia demonstra é a existência de universos culturais populares que se corporificam em conflitos pela manutenção de antigas práticas agrícolas de cultivo e de apossamento de terras.
A existência histórica de um campesinato brasileiro – composto não apenas por agregados e dependentes do latifúndio, mas por homens e mulheres pobres livres, indígenas, quilombolas e pequenos lavradores independentes – fica evidente, deslocando-se o antigo eixo de entendimento do Brasil colonial como sendo apenas o território privilegiado da plantation. Podemos entender nos estudos de vários processos a luta por autonomia camponesa e a constante estratégia de patronagem e sujeição dos pobres em meio à diversas medidas dos proprietários. Mais do que uma situação a-histórica de domínio absoluto do latifúndio, os novos estudos revelam uma história rural conflitiva e diversificada, na qual diferentes projetos de vida e de subsistência agrícola, comunitária e cultural travaram combates em diferentes rincões dos nossos sertões.
“Colonização e Conquista: um projeto para os sertões fluminenses (1790-1800)”, o primeiro artigo deste dossiê e de autoria de Marina Machado, analisa os conflitos pela posse da terra, bem como as características e especificidades de um aldeamento fundado na passagem do século XVIII para o XIX, na Capitania do Rio de Janeiro. Ao operar com o conceito de fronteira, a autora deslinda distintos projetos de ocupação, diversos interesses em jogo, muitas vezes sublimados por análises mais apressadas, e destaca os esforços das autoridades coloniais em subjugar os índios enquanto trabalhadores de suas fazendas; mas no estudo ficam claras as diferenças entre estratégias do estado, dos indígenas e dos grandes fazendeiros.
Em “Disputas agrárias no fim dos Setecentos: a área Central da Mata mineira (1767- 1800)”, Fernando Lamas, por sua vez, analisa com acuidade os conflitos fundiários na mencionada região mineira dos Setecentos, privilegiando em seu trabalho os esforços da Coroa em mediar as querelas, interessada que estava em garantir o aumento dos seus tributos e pouco preocupada em salvaguardar o direito a terra dos índios. A ocupação territorial é importante, tanto para a regularização de caminhos e rotas mercantis como para a efetivação da presença de órgão de estado no interior de Minas.
Maria Celma Borges, em “Escravos, roceiros e povos originários em Sant’Ana de Paranaíba”, destaca a complexa relação entre escravos e roceiros na região de Paranaíba entre os fins do século XVIII e início do XIX. Ao recuperar o processo de ocupação de pequenas roças, Borges nos permite destacar como a liberdade se confundia com a necessidade de deter uma pequena parcela de terra, adiando a inserção de roceiros como agregados e trabalhadores de outrem, além de indicar a existência histórica de um campesinato de fronteira, formado pela luta dos pobres, mas com fortes consequências para a expansão territorial do país.
Vânia Maria Losada Moreira, no artigo “Deslegitimação das diferenças étnicas, ‘cidanização’ e desamortização das terras de índios: notas sobre liberalismo, indigenismo e leis agrárias no México e no Brasil na década de 1850”, constrói um interessante e analítico estudo comparativo entre o Brasil e o México, tendo em vista a aplicação de leis agrárias com forte conotação liberal, implementadas pelos respectivos Estados Nacionais em formação. As terras indígenas que eram tituladas coletivamente como missões, sesmarias, aldeamentos e doações passam a sofrer fragmentação e privatização, com a implementação associada de noções de nacionalização dos indígenas e de não reconhecimento de suas culturas e de seus territórios tradicionais. A nacionalização não caminhava no sentido do reconhecimento dos direitos de cidadania, mas servia para diluir os indígenas entre a massa dos pobres nacionais, sem direitos e cada vez mais sem terras.
Bem mais ao Sul do país, contamos com o texto de Marcio Both da Silva. No artigo “Latifúndio, colonização e agricultura: os projetos de desenvolvimento agrícola no Rio Grande do Sul da segunda metade do século XIX”, o autor analisa a história da ocupação de terra e do povoamento da região Norte do Rio Grande do Sul. Para Both da Silva, a ênfase na superioridade ímpar do imigrante alemão em face ao trabalhador nacional ocultou um processo marcado por um intenso conflito que opôs diversos agentes sociais, para além da dicotomia imigrante e trabalhador nacional. A turbulência dos colonos imigrantes, associada à desobediência dos agricultores nacionais, criou sérias dificuldades aos projetos estatais e particulares de colonização, demonstrando uma forte iniciativa dos “de baixo”.
Num texto inaugural para uma temática ainda muito pouco explorada, Beatriz Olinto nos apresenta “Sem ilustração”: a incapacidade das populações rurais na profilaxia rural do Paraná (1916-1921)”. Nesse artigo, Olinto analisa a Comissão de Profilaxia Rural para destacar a maneira pela qual foi operada a chamada geografia médica na construção de trabalhador rural como exemplo emblemático do atraso, a ser tutelado pelos senhores de terra e pelos órgãos de estado.
Enfim, no artigo “Justiça de Classe”: Tribunais, trabalhadores rurais e memória, Fernando Teixeira da Silva faz uma interessante avaliação da ação da Justiça do Trabalho no meio rural nos primeiros anos da década de 1960, no interior de São Paulo, tendo como fio condutor as memórias de Tenorinho, um militante comunista que atuava em usinas de açúcar e entre trabalhadores rurais. Importantes questões sobre a memória e a história, além da recuperação de experiência dos “de baixo” , que trataram de levar a sério determinadas leis e procedimentos que nem os tribunais respeitaram.
Dessa forma, os textos aqui reunidos são exemplos felizes de algumas das janelas abertas pelos estudiosos do universo rural. As perspectivas teóricas não são necessariamente coincidentes e as fontes são bastante diversas. A metodologia, por sua vez, também não é a mesma. Nada mais sintomático. Tendo como objetos vários quinhões do país: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, os trabalhos são, em suma, apenas exemplos das inúmeras possibilidades de se estudar um tema tão óbvio, mas ainda tão pouco explorado – assim como é tão óbvia a enorme concentração fundiária do país.
Organizadores
Marcia Maria Menendes Motta – Professora do Departamento de História da UFF.
Paulo Pinheiro Machado – Professor do Departamento de História da UFSC.
Referências desta apresentação
MOTTA, Marcia Maria Menendes; MACHADO, Paulo Pinheiro. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 4, n. 8, p. 6-9, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]