Nas últimas décadas os estudos relativos à temática da história rural no Brasil e na América Latina demonstram uma trama de relações diversificadas, complexas e conflitivas acerca das experiências de ocupação de terra; das disputas pelo acesso, uso e posse da terra; das práticas e direitos de propriedade; do conjunto de resistências individuais – cotidianas e silenciadas – e coletivas; das diferentes formas de se relacionar com a terra, o território e o meio ambiente e das distintas concepções de direito1 . Neste universo conflitivo, multifacetado e desigual, nosso objetivo era receber artigos para compor este dossiê com pesquisas que abordassem a vitalidade do mundo rural no tempo presente e suas raízes históricas.
Buscamos, originalmente, privilegiar as narrativas dos próprios sujeitos, problematizando suas práticas a partir de novas fontes e metodologias, sobretudo as entrevistas orais. Além de estudos que contemplassem revisões acerca de historiografias tradicionalmente construídas sobre os sujeitos do campo, na tentativa de romper com a suposta homogeneização do campo e suas relações com o âmbito urbano. Neste ínterim, diferentes sujeitos sociais, a saber: indígenas, quilombolas, sem-terra, extrativistas, pequenos agricultores e grandes proprietários rurais disputam pela posse da terra e, no caso dos primeiros, por um local de trabalho, vida e moradia. Assim, o questionamento ao Direito, e, ainda, a compreensão dele como um meio para se alcançar a justiça e o exercício da cidadania, aliado à organização em movimentos sociais, apontam a reconfiguração desses sujeitos. Sinaliza, igualmente, a busca de novas representações sociais, a elaboração de políticas públicas e de leis específicas e os rearranjos e conflitos em torno delas.
A partir deste escopo, este dossiê busca contribuir com o debate no âmbito da história rural, em diálogo com a Antropologia, Geografia, Sociologia e o Direito a partir de uma perspectiva histórica, acerca das disputas pelo uso e posse da terra, da manutenção dos modos de vida, dos processos de resistência e pelo direito à(s) memória(s) dos diferentes grupos sociais do Brasil e da América Latina. Nesse sentido, as contribuições que recebemos e selecionamos superaram as nossas expectativas originais, somando sete artigos de autores provenientes de instituições da Argentina, Brasil, Chile e Polônia. São abordadas temáticas heterogêneas, trazendo problemáticas e aspectos transversais, que contemplam a diversidade dos sujeitos do campo na contemporaneidade – como camponeses ou produtores rurais, indígenas, famílias e imigrantes –; a questão da terra e dos territórios materiais e imateriais; o papel de setores e de poderes intermediários; a importância da memória na construção da história ambiental regional, da educação, do direito e da cultura e, ainda, o papel do Estado na elaboração e / ou na ausência de políticas públicas.
Em Echar raíces en tierra fértil. Producciones, domesticidad y memorias de familias rurales en la colonización tardía argentina (medianos de siglo XX), de Celeste De Marco (CONICET, Argentina), aborda-se o tema da colonização rural durante o governo peronista na Argentina (1946-1955) a partir da análise de casos presentes na região metropolitana sul de Buenos Aires: colônia “17 de octubre / La Capilla”, no município de Florencio Varela e na colônia “Justo José de Urquiza”, no município de La Plata (esta, capital da província de Buenos Aires). O objetivo central da pesquisa é reconstruir o papel dos sujetos sociais durante o processo de colonização agrícola, das famílias colonas principalmente italianas e japonesas, por meio da discussão das práticas produtivas e da vida doméstica familiar, com a adoção de uma perspectiva analítica centrada nas experiências de gênero. Para isso, utilizam-se fontes oficiais, jornal e principalmente entrevistas semi-estruturadas que congregam informações sobre as memórias familiares que, nas palavras de De Marco, “contribuyen a rescatar la importancia socio-productiva de figuras soterradas en el orden de las representaciones”, durante os períodos de fundação e de consolidação das colônias periurbanas desde os princípios da década de 1980.
No artigo Doblemente desaparecidos: servicio militar, pobreza y represión en la frontera patagónica durante la última dictadura argentina, baseado na pesquisa doutoral de Ayelen Mereb (UBA, Argentina), se revisita o caso de Héctor Inalef, primogênito e suporte econômico de uma família mapuche dedicada às atividades rurais na comunidade de El Bolsón, localizada na Patagônia argentina, desde a sua prisão durante o governo ditatorial no ano de 1976, até sua “aparición con vida” na cidade de Viedma, capital de Río Negro, trinta e oito anos depois, em 2014. A partir de uma perspectiva centrada na micro-história e na historia oral, se utilizam documentos, entrevistas e testemunhos particulares e familiares enquadrados nos estudos de memórias sobre passados traumáticos na Argentina e América Latina, manifestados na violência estatal de natureza política e de classe em “clave local, rural y mapuche”, diante das reivindicações familiares, étnicas e das tentativas de reparação oficial até os dias atuais.
O artigo de Alcione Nawroski (Universidade de Varsóvia), A educação na sociedade rural e o curso agrícola para rapazes brasileiros na Polônia (1918-1938), aborda a experiência de intercâmbio de três jovens na Polônia, considerando o número expressivo de agricultores entre a população polonesa no Brasil no início do século XX. O pano de fundo dessa discussão é a existência de um relativo atraso no campo, estendendo-se para o campo educacional, o qual impedia que esse grupo social alcançasse novas e melhores condições de vida e trabalho em território brasileiro. A análise de Nawroski ocupa-se basicamente de jornais poloneses, destacando que o governo brasileiro não possuía o mesmo compromisso com a educação, se comparado ao polonês.
Atual, necessário e quase em tom de denúncia, o trabalho Trajetórias diásporicas indígenas no Tempo Presente: terras e territórios Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso (do Sul), de Giovani José da Silva (Unifap), discute o processo de invisibilização das referidas etnias. Trabalho de natureza interdisciplinar, sobretudo pelas lentes da Antropologia e do Direito, articula as trajetórias diaspóricas e os processos de territorialização ocorridos na história dos Atikum, Kamba e Kinikinau que, em pleno século XXI, ainda lutam por uma visibilidade que garanta respeito aos direitos que lhes têm sido negados sistematicamente. O artigo destaca, ainda, as diferentes percepções e concepções acerca da terra e do território.
O artigo Gamonalismo y redes de poder local en el Nordeste Antioqueño (Colombia) 1930-1953, de Diana Henao Holguin (Universidad do Chile), por sua vez, apresenta parte da pesquisa doutoral da autora, centrada no processo de denúncia e apropriação de terras baldias e nos conflitos derivados dessas ações na região de Antioquía, Colômbia, durante o período de 1930-1953. O recorte temporal coincide com a modernização liberal do Estado, a qual culminou com a centralização e o fortalecimento do Estado colombiano. Neste marco, H. Holguin estuda o caciquismo antioquiano e suas particularidades nos distritos de Cisneros e Yolombó, contrastando-0s, assim, com outros no âmbito andino, como Equador e Peru, munida de diversos documentos de natureza local-regional. A hipótese da autora – em uma zona de fronteira como a que estuda, de colonização tardia, se comparada com as áreas centrais colombianas – é que o referido sistema político “va a encarnar distintas facetas”, incluindo tanto a coação e exploração camponesa, possibilitando o avanço dos proprietários, como estratégias de intermediação com autoridades e distintas esferas de poder territorial, uso de meios legais em seu próprio benefício, construindo, assim, redes pessoais e clientelistas para canalizar votos para os partidos tradicionais.
Já o trabalho de Temis Gomes Parente (UFT) e Cícero Pereira da Silva Júnior (UFPA), intitulado De estrada líquida à jazida energética: os sentidos do rio Tocantins na memória oral dos ribeirinhos, por meio da metodologia em História Oral, reflete sobre as relações estabelecidas e experienciadas entre os ribeirinhos e o rio Tocantins, nas duas dimensões, materiais e imateriais. O elemento inovador do artigo é o estreito diálogo com a Antropologia, apropriando-se da noção de dádiva de Marcel Mauss, com o intuito de ressignificar a(s) narrativa(s) dos ribeirinhos acerca do rio e do seu entorno.
No auge das experiências participativas sobre conflitos socioambientais nos últimos anos na América Latina, Consultas comunitarias en Argentina: respuestas participativas frente a mega-proyectos, de Lucrecia Soledad Wagner (Universidad Nacional de Cuyo, Argentina), estuda as consultas comunitárias sobre projetos de mineração a céu aberto nas comunidades de Esquel e Loncopué, nas províncias patagônicas argentinas de Chubut e Neuquén respectivamente, “considerando que el término comunidad resulta el más pertinente para definir los procesos sociales que se generaron en torno a la conflictividad ambiental, en especial en Argentina”, com reconhecida horizontalidade. Mediante a análise de documentos escritos, imagens e realização de trabalho de campo, a autora examina as motivações que impulsionaram o desenvolvimento dessas consultas, o seu impacto social e a criação de uma institucionalidade ambiental, sustentando, conforme suas palavras, que foram “las comunidades locales las que recurrieron a la normativa existente para respaldar su derecho a ser parte del proceso de toma de decisiones que afectarían su lugar de vida” em substituição ao cumprimento da legislação vigente sobre conflitos ambientais por parte das autoridades executivas e legislativas do Estado, oportunizando a gestão de um espaço de participação direta.
Para finalizar, gostaríamos de agradecer as / aos autoras / es – únicos e últimos responsáveis pelas opiniões, posicionamentos ideológicos e / ou conclusões de seus artigos – por suas valiosas contribuições para o dossiê e, ao comitê editorial da revista, por sua eficiência e acompanhamento durante todo o processo de construção. Desejamos que este dossiê possa contribuir para o aprofundamento dos temas e problemas aqui tratados, assim como para o avanço do trabalho conjunto e a aproximação entre as historiografias e as disciplinas humanas e sociais de nossos países.
Boa leitura!
Notas
1. Para América Latina e outras latitudes pode ser consultado, entre outros, Serrão, J. V., Direito, B., Rodrigues, E. & Münch Miranda, S. (eds) (2014) Property Rights, Land and Territory in the European Overseas Empires. Lisboa: CEHC-IUL. Congost, R., Gelman, J. & Santos, R. (eds.) (2017) Property Rights in Land. Issues in social, economic and global history. London & New York: Routledge. Motta, M. & Piccolo, M. (Org., 2017), O Domínio de outrem. Posse e propriedade na Era Moderna (Portugal e Brasil), Vol. 1, São Luís: EDUEMA, Guimarães: Nósporcatudobem. Motta, M. & Piccolo M. (Org., 2017), O Domínio de outrem. Propriedades e direitos no Brasil (Séculos XIX e XX), Vol. 2, São Luís: EDUEMA, Guimarães: Nósporcatudobem. Barcos, MF., Lanteri, S. & Marino, D. (2017) Tierra, agua y monte. Estudios sobre derechos de propiedad en América, Europa y África (siglos XIX y XX). Buenos Aires: Teseo
Rose Elke Debiasi – Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: elkedebiazi@gmail.com
Sol Lanteri – CONICET-UBA, Instituto Ravignani, Buenos Aires, Argentina. E-mail: sol_lanteri@conicet.gov.ar
DEBIASI, Rose Elke; LANTERI, Sol. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.28, 2019. Acessar publicação original [DR]
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