O suicídio de Adolf Hitler, em 1945, assinalou o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa e do regime nacional-socialista. Experiências históricas que marcaram a memória e a história de diversas maneiras. De lá para cá, inúmeros estudiosos estão a narrar e a interpretar o nazismo. A cada livro novo, a cada geração de pesquisadores, os saberes históricos sobre o nacional-socialismo são revisados e ampliados.
No pós-guerra surgiram as primeiras interpretações sobre o nazismo; à época, autores como Benedetto Croce e Friedrich Meinecke, concluíram que o nacional-socialismo foi uma “doença moral”, um “desvio na história” ou a obra de um “gênio demoníaco” (Cytrynowicz, 1995).
No Brasil, Denise Rollemberg (2017) examinou as dimensões revolucionárias do nazismo por meio de uma avaliação de parte do que já foi publicado sobre o assunto. Para a autora, o regime nazista promoveu uma revolução de direita, pois, seja “o fascismo seja o nazismo, cada um à sua maneira moveu mundos e fundos para edificar o novo mundo e o novo homem para as respectivas nações. Nos dois casos, utopias revolucionárias” (Rollemberg, 2017, p. 363, itálicos no original).
Diante dessa extensa produção bibliográfica, o que o livro Terceiro Reich na história e na memória, de Richard John Evans, tem a oferecer? Após a publicação de sua trilogia sobre o Terceiro Reich, formada pelos títulos A chegada do Terceiro Reich (Evans, 2010), O Terceiro Reich no poder (Evans, 2012) e O Terceiro Reich em guerra (Evans, 2013), o que ele ainda tem a dizer?
Richard Evans é um historiador especializado em história da Alemanha. Seu envolvimento com a historiografia alemã ocorreu na década de 1970, no decurso do seu Doutorado e da renovação historiográfica na Alemanha Ocidental, a qual contou com a participação dele e de outros jovens estudiosos britânicos (Evans, 1987).
Em meados da década de 1980, Evans se destacou na “querela dos historiadores” (Historikerstreit) como crítico do revisionismo proposto por Ernst Nolte e Andreas Hillgruber, destacando a singularidade do Holocausto diante dos demais genocídios perpetrados no decorrer do século XX. Mais tarde, na década de 1990, foi perito na defesa de Deborah Lipstadt contra o processo movido por David Irving. Buscou-se provar que as interpretações de Irving sobre o genocídio judeu eram fraudes motivadas por antissemitismo e associação a grupos neonazistas. Evans periciou a historiografia produzida por Irving, na qual foram identificadas fraudes documentais e erros propositais de tradução (Lipstadt, 2017).
O autor também é estudioso da Teoria da História. Segundo Acham (2011), Evans faz parte de um conjunto de historiadores críticos das influências da pós-modernidade e da “virada linguística” na História. Para Evans, o método histórico está fundamentado em regras de verificação, auferidas, inicialmente, pelo historicismo alemão do século XIX, com Leopold von Ranke.
Em Terceiro Reich na história e na memória Evans examina a historiografia recente acerca da Alemanha nazista, publicada na América e na Europa. Contudo, para o público brasileiro, algumas das obras analisadas já são conhecidas, a exemplo de Ian Kershaw (2015). Segundo Evans, a historiografia produzida nos últimos anos mudou consideravelmente a compreensão da experiência histórica do nazismo. “O Terceiro Reich é, agora, também e cada vez mais, entendido em um contexto internacional, até mesmo global, como parte da era do imperialismo, seu ímpeto por dominação alicerçado numa tradição mais ampla da busca germânica pela construção de um império”, explica o autor (p. 7). Essa interpretação está vinculada às transformações nos estudos históricos, que, “de forma crescente, situ[aram] o Estado-nação em um contexto transnacional mais amplo” (p. 7).
Nessas novas análises, o nazismo “aparece em obras recentes como uma ideologia que bebeu nas fontes mais variadas, de países tão díspares […] em vez de ser a culminação de tradições intelectuais exclusivamente alemãs como se costumava julgar” (p. 8). Mesmo a respeito do Holocausto, Evans constatou que: “Cada vez mais os historiadores passaram a ver o extermínio judeu empreendido pelos nazistas não como um evento histórico ímpar […] mas como um genocídio com paralelos e similaridades em outros países e outros momentos históricos” (p. 8).
No livro, essas e outras novas interpretações sofrem um processo de crítica por meio de ensaios e resenhas, cujos conteúdos são ricos em erudição e capacidade de análise, próprios de um pesquisador que detém amplo domínio das fontes primárias e da bibliografia produzida sobre a Alemanha. É, portanto, na identificação dos limites e dos potenciais dessa “nova história” do nacional-socialismo que o livro está situado.
A obra é formada por um conjunto de textos organizado em sete partes, ao longo de 442 páginas, que abordam as continuidades e as rupturas entre o Império Alemão (Kaiserreich, 1871-1918), a República de Weimar (1919-1933) e o regime nazista (1933-1945); as relações de coerção e consentimento entre o governo nacional-socialista e a sociedade civil alemã; o lugar que o rearmamento ocupou no planejamento econômico estatal alemão; a colaboração da burguesia liberal alemã com o nazismo; a política exterior da Alemanha voltada para o desencadeamento de uma nova guerra europeia, a qual, desde o início, não tinha condições de vencer; as ligações entre o genocídio promovido no Leste europeu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a cosmovisão nazista; os desdobramentos históricos, como as migrações forçadas, os reordenamentos urbanos, os saques e as pilhagens do Terceiro Reich.
Ao examinar esses assuntos, Evans se posiciona criticamente diante de uma nova historiografia acerca do regime nacional-socialista. Ao apontar seus potenciais e suas limitações, o autor examina detalhadamente fatos, fontes e conceitos históricos, cujo domínio é o resultado de décadas de ensino e pesquisa. Evans é duro em suas resenhas, porém generoso com o leitor, graças a um texto de conteúdo denso, porém de escrita clara e elegante, que prende a atenção do início ao fim.
Terceiro Reich na história e na memória é mais que uma coletânea de ensaios e resenhas, pois a obra também afirma a compreensão de Richard Evans sobre o regime nazista: uma ditadura com características muito específicas, baseadas em uma utopia racial que seria concretizada por meio da guerra e do genocídio. Para o nazismo, o motor da história era a “luta de raças”, contínua e vital para o projeto de hegemonia mundial da Alemanha de Hitler. Esse entendimento acerca do nacional-socialismo perpassa todo o livro e, na óptica do autor desta resenha, explica, em parte, as críticas e o desconforto de Evans em relação aos trabalhos recentes que situam as origens das políticas genocidas do nazismo no colonialismo alemão na África, durante o Império, ou que nivelam o Holocausto aos demais genocídios perpetrados ao longo do século passado, tão dramáticos quanto aquele, contudo historicamente distintos.
É o que fica claro no capítulo “A ‘solução final’ foi singular?”. Ao compará-lo com outras experiências genocidas, o autor reforçou a singularidade do Holocausto, cujas motivações estavam intrinsecamente ligadas à ideologia racial que fundamentou o nazismo. Para essa ideologia, os judeus representavam uma ameaça à própria existência dos alemães, eram os “inimigos do mundo” (Weltfeind).
As únicas notas destoantes no livro são pequenos erros de tradução, a exemplo da palavra Freikorps, traduzida como “Corporação Livre”. Freikorps é o nome dado às milícias formadas por veteranos das forças armadas alemãs da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que lutaram contra os grupos políticos de esquerda durante a Revolução Alemã (1918-1923). Não há tradução exata para o português, sendo a mais próxima do sentido original em alemão “Corpo de Voluntários”, adotada na pequena síntese sobre o nazismo escrita por Alcir Lenharo (1998). Fora isso, Terceiro Reich na história e na memória é certamente uma importante referência para os interessados na história e na historiografia do nacional-socialismo e sua dolorosa experiência histórica.
Referências
ACHAM, Karl. A compreensão histórica entre ceticismo e arbitrariedade: algumas considerações sobre as variantes recentes do relativismo histórico e cultural. História da historiografia, Ouro Preto, n. 7, p. 201-224, nov./dez. 2011. [ Links ]
CYTRYNOWICZ, Roney. Loucura coletiva ou desvio na história? As dificuldades de interpretar o nazismo. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã : FFLCH/USP, 1995. (Série Eventos). [ Links ]
EVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. São Paulo: Planeta, 2010. [ Links ]
EVANS, Richard J. The New Nationalism and the Old History: Perspectives on the West German Historikerstreit. Journal of Modern History, Chicago, n. 59, p. 761-797, Dec. 1987. [ Links ]
EVANS, Richard J. O Terceiro Reich em guerra. São Paulo: Planeta , 2013. [ Links ]
EVANS, Richard J. O Terceiro Reich no poder. São Paulo: Planeta , 2012. [ Links ]
KERSHAW, Ian. O fim do Terceiro Reich: a destruição da Alemanha de Hitler, 1944-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. [ Links ]
LENHARO, Alcir. Nazismo: o triunfo da vontade. 6. ed. São Paulo: Ática, 1998. (Série Princípios, 94). [ Links ]
LIPSTADT, Deborah E. Negação: uma história real. São Paulo: Universo dos Livros, 2017. [ Links ]
ROLLEMBERG, Denise. Revoluções de direita na Europa do Entre-guerras: o Fascismo e o Nazismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 355-378, maio/ago. 2017. [ Links ]
Wilson de Oliveira Neto – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Universidade da Região de Joinville (Univille), Curso de História, Joinville, SC, Brasil. wilhist@gmail.com.
EVANS, Richard J. Terceiro Reich na história e na memória: novas perspectivas sobre o nazismo, seu poder político, sua intrincada economia e seus efeitos na Alemanha do pós-guerra. MARQUES, Renato ([Trad]). São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. 496 p. Resenha de: OLIVEIRA NETO, Wilson de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.39, no.80, jan.abr. 2019
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