O filósofo, historiador, pesquisador e professor Estevão Chaves de Rezende Martins é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras N. S. Medianeira (1971) e doutorou-se em História e Filosofia em 1976 na Universitaet Muenchen Ludwig-Maximilian – Alemanha. Foi professor da Universidade de Brasília entre 1977 e 2017, tendo se tornado professor titular em 2008, realizou pós-doutorados nas áreas de Teoria e Filosofia da História, e em História das Ideias em Universidades da Alemanha, Áustria e França.
Atualmente é pesquisador colaborador sênior na UnB. Reconhecido intelectual brasileiro em todas as suas áreas de atuação: teoria e metodologia da história, história política e institucional do Brasil, história contemporânea (Europa, União europeia e relações internacionais) e história política (Brasil, Europa Ocidental e relações internacionais). Exemplo desse reconhecimento materializa-se no livro-homenagem “ENTRE FILOSOFIA, HISTÓRIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS – Escritos em homenagem a Estevão de Rezende Martins” (2017) organizado por ex-alunos e com contribuições de intelectuais brasileiros e internacionais com quem o professor Estevão mantém laços afetivos e interlocução intelectual. Em tempos conturbados na política brasileira merece destaque também sua atuação como principal assessor na constituinte de 1987-1988 37.
O livro “Teoria e Filosofia da História – Contribuições para o Ensino de História está dividido em duas partes: a primeira intitulada “Fundamentos” refere-se a discussões dos campos da teoria e da filosofia da história e contém debates sobre verdade, moral, pesquisa, consciência e cultura histórica, historicismo além de um ensaio de tipologia comparativa com base em suas discussões. Há também uma segunda parte intitulada “Práticas” dedicada a possibilidades de análises com base nas discussões teóricas anteriores com um esforço de aproximação das discussões a respeito da aprendizagem histórica, discussões sobre a formação humana e uma abordagem sobre a proposta de Jörn Rüsen 38 sobre as matrizes do pensamento histórico.
A apresentação do livro foi realizada pela professora Maria Auxiliadora Schmidt (Dolinha) que fala do autor como historiador, professor, pesquisador e intelectual de seu tempo, que transita entre a História e a Filosofia, e que de forma um tanto inovadora em sua trajetória, inaugura com esse livro um diálogo rigoroso com o ensino de História. Schmidt também destaca que o autor percebe a História, assim como a poesia, como meios para o autoconhecimento e formas de edificar a humanidade que há em cada um de nós. A história ensinada (objeto central da preocupação de Schmidt), portanto, possui um papel prevalente na contemporaneidade.
A preocupação com a formação humana, levando em consideração aspectos da humanidade como um todo e também das subjetividades inter-relacionadas que formam e são formadas por esses sentidos das experiências humanas no tempo, caracterizam uma das marcas fundamentais do pensamento do autor. Essa preocupação formativa, frequentemente expressada pelo conceito Bildung (em alemão) representa o diálogo entre a Teoria e Filosofia da História com as discussões da Educação Histórica. Dialogo em que as obras do autor Jörn Rüsen tem sido fundamentais, sendo Estevão um dos principais tradutores e comentadores (se não o principal) da obra do autor. A obra aqui discutida representa, portanto, um dos resultados do diálogo entre a produção do professor Estevão (Teoria e Filosofia da História) e os debates realizados no Laboratório de Pesquisas em Educação Histórica da Universidade Federal do Paraná (LAPEDUH – UFPR).
A Introdução do livro, produzida pelo próprio autor, indica que a relação entre a História e outros conhecimentos (interdisciplinaridade), assim como a História (como conceito que associa vários sentidos) exige reflexão sobre seus fundamentos. Uma dessas reflexões, a da relação com a vida, consciência e cultura histórica, precisa articular compreensões sobre a ciência da História e o Ensino de História como uma das preocupações que precisam ser discutidas pela própria ciência, a função didática como um dos exemplos desse debate.
Um dos elementos que indica a relação entre a obra e a interlocução com o LAPEDUH, se dá pela leitura e divulgação comum à produção de Jörn Rüsen, que no caso do professor Estevão ocorre desde 1975 (MARTINS, 2017 p. 8). De acordo com Martins, o que o encorajou a contribuir com a divulgação das obras alemãs no Brasil se relaciona a forma como percebia os debates teóricos brasileiros na década de 1970-80, na universidade de Brasília percebeu a importância de trazer o debate: superar o cenário limitado ao marxismo, à crítica ao positivismo e as produções ligadas à escola dos Annales. Teoria e Filosofia da História, assim como os impactos dessas discussões na produção historiográfica, poderiam, como a própria vida, buscar ir além da condição encontrada.
Seu livro “TEORIA E FILOSOFIA DA HISTÓRIA – contribuições para o ensino de História” foi realizado a partir de textos reunidos, portanto podem ser lidos separadamente. O conjunto dos textos apresenta duas linhas mestras que definem a obra: uma de textos que lidam com questões fundamentais da teoria da História, filosofia da História, enfim, discussões da história como ciência. E outra, de acordo com o autor: fruto do dialogo com o LAPEDUH, ao longo dos anos 2000 e que possuem a proposta de utilização dos elementos teóricos para refletir sobre o ensino de história. Essa resenha está dividida em duas partes seguindo a lógica estabelecida pelo autor.
Parte 1 – fundamentos da história ciência
O primeiro artigo “O conhecimento histórico e sua rede fatorial” trabalha com o conceito que aparecerá de maneira recorrente ao longo do livro, rede fatorial, que para o autor complementa a distinção entre trama e enredo, esses conceitos mais debatidos no campo da filosofia e da teoria da História. Martins aborda a questão fatorial como um feixe de fatores cujo entrecruzamento é o lugar do sujeito. Esse agente (racional humano), é atravessado por influências (algumas quase determinantes) como tempo e espaço (físico) e outras muito mais variáveis tempo e espaço em perspectivas social.
Os sujeitos nas concepções do autor e os elementos de sua racionalidade merecem atenção especial na relação com os demais fatores que compõem a amplitude social. Ao mesmo tempo em que, não se pode esquecer que nenhum agente racional nasce em um mundo sem história.
As redes fatoriais estão ligadas a percepções da história processo e história produto. Ao passo que nos constituímos na relação com aspectos da vida em sociedade também construímos essas relações. A metáfora criada para exemplificar essas relações apresenta ideia semelhante aos círculos concêntricos cujo centro é a subjetividade particular do individuo. De maneira que ao pensarmos sobre esses processos como agentes racionais também estamos em perspectiva relacional e relativa, o que não significa a perda da fiabilidade histórica. O que só ocorreria com o abandono do controle metódico, essa uma característica fundamental para pensar a História.
Uma segunda parte do texto trata dos critérios de fiabilidade do conhecimento histórico que, envolvem tanto a rede fatorial que confere caráter relacional aos conhecimentos produzidos pelos historiadores quanto pelos elementos discutidos no campo do controle metódico da História. O leitor interessado sobre cientificidade da História encontrará um debate aprofundado e amplo, que envolve desde o diálogo com outras estruturas de pensamento diferentes das identificações do autor (ao responder, por exemplo, algumas críticas dos debates pós-modernos), quanto encontrará argumentação sólida na defesa do aspecto científico e da potencialidade dessa forma de compreensão para a vida em sociedade.
O segundo texto “Veritas filia temporis? O conhecimento histórico e a distinção entre teoria e filosofia da história” como o título anuncia, debate questões que asseguram a cientificidade da história sem abrir mão do argumento inicial sobre o caráter relacional e as redes fatoriais, o argumento defende o sentido de evitar tanto o dogmatismo quanto o ceticismo a respeito da cientificidade. A questão central passa a ser a construção da plausibilidade discursiva, pois a História lida com duas formas de verdade: a primeira relacionada ao tempo em que as coisas ocorreram e, a outra relacionada ao contexto em que o passado refletido será apresentado como narrativa com pretensão de validade, as duas formas precisam estar asseguradas pelo controle metodológico. A questão da verdade é trabalhada com o argumento da rede fatorial, agora colocado em perspectivas temporais mais amplas ampliando a discussão sobre a fiabilidade da ciência da História iniciada anteriormente.
A história, assim como as ciências humanas e sociais, não escaparam dos impactos das discussões pós-modernas, localizadas no ceticismo. A ideia de que não haja um critério absoluto de verdade não deve desfazer-se das possibilidades científicas de construir conhecimentos que se pretendam verdadeiros, as circunstâncias concretas da produção científica assim como sua lógica e critérios metodológicos são admitidos desde há tanto tempo quanto a falta de tal critério, e isso não é particularidade da História. No campo do que o autor classifica como dogmatismo figuram críticas a algumas formas de produção do conhecimento nas vertentes ortodoxas do marxismo. Observações semelhantes as que aparecem assim como na obra de Rüsen 39.
No terceiro texto “Vitam impemdere vero: moral e verdade na pesquisa histórica” o debate central se dá sobre a questão da verdade, agora ampliado para as relações entre o conhecimento produzido e as implicações disso na relação com a sociedade em que esse conhecimento é produzido. A vida humana possui valor fundamental e deve ser levada em consideração pelos pesquisadores, quando o autor se refere a vida, o faz também em relação as vidas humanas do passado, ou passado recente. Ressalta-se aqui a profundidade intelectual, característica marcante do autor, nesse caso em relação às escolhas de exemplos do campo da história, os acontecimentos propriamente ditos, ou as historiografias relacionadas aos temas, assim como a autores da filosofia. As relações entre as pretensões de verdade e o aspecto moral que envolve a ciência e a sociedade são um dos objetos de discussão.
Vê com crítica comedida a normatização de determinadas formas de produção científica relacionada a entes exteriores a própria ciência, o Estado por exemplo, ou ainda a ideia de que possíveis formas de normatização nem sempre são amplamente representativas na hora de sua constituição. Aqui, prevalece a atitude crítica do intelectual, que talvez pela densidade de sua formação pudesse parecer tradicional, demonstra-se quase um humanista libertário da produção do conhecimento, ressalto, na vertente humanista (liberal e humanista parece mais adequado). O receio da normatização exterior não é maior do que a defesa da dignidade humana.
O quarto capítulo “Cultura, História, Cultura histórica” estabelece uma revisão sobre os significados do conceito cultura. Recupera a tradição humanista germânica desde J. G. Herder, e apresenta sinteticamente propostas e pensamentos fundamentais das discussões sobre cultura em diferentes países e concepções. Revisa contribuições do conceito cultura como possibilidade e aperfeiçoamento (para todos e qualquer sociedade), uma marca da ação humana para além da natureza (característica da segunda metade do século XX – as escolas da teoria crítica e crítica literária). Basicamente três características da cultura são revisadas pelo autor: sua historicidade, seus limites no reflexo do mundo e sobre o mundo, e sua conexão com a sociedade contemporânea. A ideia de que ninguém nasce em um mundo sem história e que o estoque cultural é, portanto, histórico.
Como uma das formas prevalentes das manifestações culturais são narrativas, outro elementos característico das produções historiográficas, Martins estabelece as relações entre as discussões a respeito da Cultura e a produção historiográfica como elemento perspectivado culturalmente. Experiência, reflexão, historicização, enunciação, seriam as etapas básicas da narrativa em relação aos sujeitos (historiadores ou não), e essa relação entre cultura e expressão narrativa também enreda as cinco fases do tempo e do espaço humano: experiência, reflexão da experiência, pensamento histórico, consciência histórica e cultura histórica.
Todas as afirmações mais categóricas a respeito da formulação teórica apresentada são sempre exemplificadas com produções de autores ou eventos da vida em sociedade. Nesse caso, é exemplar o dialogo com outros autores (marca de seu pensamento e modo de escrita), nesse caso Hans Jürgen Pandel. Lidar com a tradição e com a crítica da tradição, em uma produção que precisa passar pelos parâmetros de confiabilidade intersubjetiva. Se o objeto comum das ciências sociais e humanas: agir racional humano, a cultura não é algo adicional de um ou de outro, mas o elemento constitutivo da condição humana. A história como cultura dimensionada no tempo, fator determinante precisa ser compreendida, analisada, examinada criticamente. Levando em consideração que haverá sempre certo grau de liberdade para adesão ou recusa dos elementos culturais (MARTINS, 2017, p. 105).
Criando uma lógica na reunião dos textos selecionados pelo autor, o quinto capitulo “Sentido da história: significado e implicações culturais” inicia com um questionamento: será que ainda faz sentido perguntar pelo sentido histórico?
Apesar das críticas epistemológicas, os sentidos históricos assim como a filosofia da história ainda não saíram de cena. “A virada contemporânea para a cultura como categoria interpretativa prevalente na pesquisa histórica pode ser entendida como movimento de busca de sentido” (MARTINS, 2017 p. 121). A Discutir sentido como processo de atribuição de sentido que se relaciona a práxis existencial no tempo, unida as questões discutidas na forma científica. O debate teórico a respeito da constituição de sentido para a vida pensada em elementos da teoria e da filosofia anunciam um debate semelhante as proposições de Rüsen40 (2017) sobre a diferenciação entre a filosofia material da história, a filosofia formal e a proposta de uma filosofia funcional da História. Que dá elementos para uma relação intrínseca entre a vida vivida pelos agentes racionais humanos e a elaboração científica da História como pressuposto da orientação existencial na vida.
O sexto capítulo “Historiografia: o sentido da escrita e a escrita do sentido”, texto escrito em homenagem a Nelson G. Gomes pela ocasião do seu aniversário de 65 anos em 2008. O leitor encontrará aqui o reforço dos argumentos anteriores, assim como seu aprofundamento ao tratar da historiografia. Defende o argumento de que o campo intelectual e campo social são indistinguíveis, assim como estilo de vida e estilo de pensamento (MARTINS, 2017 p. 124). “A expressão de significado, encontrado ou atribuído na operação de transformar a experiência do passado em história refletida no presente, é posta por escrito” (MARTINS, 2017pág. 127), ou seja, a relação intrínseca com a vida se expressa na narrativa. No caso científico deve haver rigor metódico científico e a necessidade permanente da crítica rigorosa das fontes. No entanto, o sentido escrito na história é também dependente da validação intersubjetiva que o autor chama de caráter relacional do conhecimento histórico (MARTINS, 2017 pág. 129).
O leitor interessado em conhecer exemplos característicos dessa discussão encontrará nesse capítulo análise de produções historiográficas brasileiras e internacionais tomadas como fonte e para a argumentação apresentada pelo autor.
Ao finalizar, apresenta oito etapas que conformariam a rede relacional (característica da história já discutida nos textos anteriores) que, sem a pretensão de ser uma receita para a produção do conhecimento historiográfico, podem ser pensados como elementos de sustentação para narrativas historiográficas. Com o alerta de que a pesquisa, representação historiográfica e a recepção histórica são empreendimentos coletivos (MARTINS, 2017 pág. 142), reforço e fortalecimento dos conceitos da rede fatorial da característica relacional da produção historiográfica. Características que não diminuem a História em relação a outras ciências, pois não está menos exposta (e eu acrescentaria: nem mais exposta) ás vicissitudes e falhas de comunicação que fazem parte da sociedade.
O sétimo texto intitulado “Historiografia contemporânea: um ensaio de tipologia contemporânea” inicia as discussões tratando dos aspectos internos da comunidade dos historiadores e dos aspectos externos que acabam por se relacionar a sociedade e as possibilidades de influência nas atribuições de sentido da práxis social. Mais uma vez os exemplos demonstram a profundidade das ideias do autor, assim como a capacidade de materializar com as produções historiográficas os exemplos discutidos sobre os fundamentos da ciência da História.
Com isso o autor propõe um quadro, a exemplo de Rüsen, que funciona como uma possibilidade analítica das formas historiográficas. Tradição, exemplaridade, crítica e constituição da identidade são algumas das características apresentadas, mas vão além das quatro formas básicas de atribuição de sentido discutidas por Rüsen. Aqui é possível perceber não apenas a influência desse autor, mas a interlocução. E para a possível crítica inercial do caráter estático das quatro formas de atribuição de sentido, é explicito o alerta, elas não são excludentes e existe entre elas certa tensão dialética 41 (MARTINS, 2017 pág. 153). Essa tensão dialética está articulada aos argumentos anteriores (que, vale ressaltar, não se limitam ao pensamento rüseniano) e articulam a rede fatorial, o caráter relacional, a constituição de sentido, de maneira que o produto historiográfico interage com o social. E, além disso, exercem uma função tratada como espécie de didática coletiva (MARTINS, 2017 pág. 155).
Encerrando a primeira parte do livro que trata dos fundamentos da ciência da História, o capítulo oito “Historicismo: o útil e o desagradável” talvez seja um dos quais remonta aspectos mais fundamentais, no que diz respeito ao caráter histórico da cientificidade da História. O autor selecionou um texto de uma coletânea sobre o historicismo 42. O autor apresenta de início suas compreensões a respeito da utilidade e potencial das discussões características do século XIX, quando foram debatidos os elementos da metodização do conhecimento histórico assim como sua definição como ciência. E, como elemento que já se apresentara nos textos anteriores, demarca o desagradável como elementos que fazem parte da composição do relativismo sociocultural ligado ao campo de determinadas discussões pós-modernas. Aliás, as leituras dos seus textos apresentam argumentação sólida para debates dessa crítica.
Como Estevão Chaves de Rezende Martins já indicara na entrevista intitulada “A culpa é de Hobbes e de Hume!”, por motivos de trabalho ao longo da sua vida o seu rascunho de um livro sobre teoria da História ainda não teria saído do rascunho. No entanto, a reunião dos textos selecionados, com o aprofundamento nos fundamentos da ciência, com discussões que passam pela filosofia e teoria da história, questões de epistemologia e de método, poderia afirmar que essa obra trata de um exame das condições e possibilidades da História Ciência. Sendo assim o anúncio de uma Historik (por vir do autor).
O capítulo nove “História: consciência, pensamento, cultura e ensino” faz as distinções necessárias das utilizações do conceito história, devido a sua plurivocidade: a da totalidade dos acontecimentos do passado; a do processo de produção do conhecimento científico da história; a dos resultados em forma narrativa (que pode ser historiográfica, ou mesmo espontânea).
Essas formas possuem interseção e interdependência, assim como as etapas da convivência social que vão constituindo a consciência. De um lado os indivíduos são produtos da história, e por outro, existe a noção de processo histórico, o processo-produto formativo dos agentes racionais humanos se dá constantemente e nessa inter-relação. No subtítulo “Intenção e ação: a trama da História”, o autor se refere mais objetivamente as relações entre aspectos discutidos em relação à história ciência com a tarefa de ensinar história.
Nesse sentido, apresenta a atividade do ensino de História como uma das mais desafiadoras, pois ao trabalhar com a história, professores e professoras o fazem na experiência social da consciência histórica e da cultura histórica, o que se relaciona com todas as formas anteriores que constituíram o processo produto da formação histórica dos agentes racionais humanos envolvidos nessa atividade. Ou seja, as características fatoriais, o caráter relacional, a relação entre vida e pensamento, tudo isso ganha uma vivacidade ainda mais complexa do que a produção da historiografia de maneira singular (o trabalho do historiador e suas fontes).
É sobre a relação entre vida no presente e o passado historicizado que o artigo reflete. Para que esse diálogo vivo seja proveitoso é preciso “dizer respeito a mim, ou a nós” (MARTINS, 2017 pág. 208). Entre os fatores, a estética, a moral, as variadas experiências dos sujeitos em situação de aprendizagem afetam emocionalmente os sujeitos. Contribuir para a expansão da subjetividade individual e coletiva deve ser uma das contribuições dessa forma de conhecimento, portanto, do ensino de história.
Da mesma forma como os historiadores precisam dialogar com universo cultural dos sujeitos a quem pretendem atingir, não seria profícuo negar os aprioris, o estoque experiencial dos envolvidos nessa relação, mesmo as divergências, é necessário tê-los presentes, trazer essa multiplicidade para a relação do ensinar e aprender história. De acordo com Martins, a interseção e as interdependências devem estar presentes tanto no trabalho da produção historiográfica do historiador quanto dos historiadores docentes.
Nos capítulo 10 – “Educação e consciência histórica” e 14 – “Educar para humanidade. História e Iluminismo” os debates tratam do conceito consciência histórica e da relação com o conhecimento, aspectos interno e externo, e que a reflexão da consciência se dá em nível metarreflexivo, pois a consciência é confrontada e pode pensar sobre ela mesma. Na dinâmica das salas de aula as inter-relações temporais são constantes. Indica que, ao pensarmos sobre as formas de pensar estamos realizando um exercício de meta-reflexão.
Educar para humanidade é uma ideia que se repete entre outros textos e dedica-se a questões como: que homem formar, que cidadão formar, recuperando historicamente elementos da Europa (irmãos Humboldt no século XIX – educar para humanidade; ambiguidades que envolvem o termo universidade), assim como um equivalente brasileiro contemporâneo (José Bonifácio). O programa da consciência histórica da universidade humboldtiana (MARTINS, 2017 p. 214) também figura entre as discussões. Os capítulos examinam os autores e as ideias que circulavam no contexto da virada do XVIII para o XIX na Europa ocidental, sobretudo filósofos germânicos.
Nas reflexões figuram as condições das universidades, sua função e para quem se destinam, apresentando suas visões (que envolvem posições relacionadas ao aspecto político dessas reflexões) com base em uma discussão que compara as discussões de W. von Humboldt e seu projeto de universidade e a relação com as condições atuais das universidades brasileiras. Essas comparações também se dão no plano do próprio passado do XIX ao estabelecer alguma comparações entre Humboldt e José Bonifácio de Andrada e Silva (ambos envolvidos nos projetos de construção de nações, Alemanha e Brasil). Interessante observar que, a surpreendente comparação realizada pelo autor é digna de nota, Humboldt foi um notável europeu, e na comparação entre o mundo conhecido por esse intelectual foi significativamente menor do que o conhecido por José Bonifácio 43.
Interessante destacar que as comparações entre intelectuais setecentistas não se limita apenas a relação com a compreensão desses passados (europeu e brasileiros), mas a discussão teórica se dá no sentido de atualizar as contribuições
Parte 2 – a preocupação teórica com o ensino e aprendizagem da história
A segunda parte do livro é intitulada “Práticas”, e de acordo com o autor, são textos que foram produzidos ao longo dos anos de contato com as produções e eventos realizados no âmbito do LAPEDUH – UFPR, em interlocução com a professora Maria Auxiliadora Schmidt. O leitor perceberá que os textos mantêm a densidade teórica, mas incorporaram a preocupação com aspectos da história ensinada, ou melhor, como a teoria da história pode auxiliar na compreensão da tarefa, também científica, de ensinar História.
O capítulo nove “História: consciência, pensamento, cultura e ensino” faz as distinções necessárias das utilizações do conceito história, devido a sua plurivocidade: a da totalidade dos acontecimentos do passado; a do processo de produção do conhecimento científico da história; a dos resultados em forma narrativa (que pode ser historiográfica, ou mesmo espontânea).
Essas formas possuem interseção e interdependência, assim como as etapas da convivência social que vão constituindo a consciência. De um lado os indivíduos são produtos da história, e por outro, existe a noção de processo histórico, o processo-produto formativo dos agentes racionais humanos se dá constantemente e nessa inter-relação. No subtítulo “Intenção e ação: a trama da História”, o autor se refere mais objetivamente as relações entre aspectos discutidos em relação à história ciência com a tarefa de ensinar história.
Nesse sentido, apresenta a atividade do ensino de História como uma das mais desafiadoras, pois ao trabalhar com a história, professores e professoras o fazem na experiência social da consciência histórica e da cultura histórica, o que se relaciona com todas as formas anteriores que constituíram o processo produto da formação histórica dos agentes racionais humanos envolvidos nessa atividade. Ou seja, as características fatoriais, o caráter relacional, a relação entre vida e pensamento, tudo isso ganha uma vivacidade ainda mais complexa do que a produção da historiografia de maneira singular (o trabalho do historiador e suas fontes).
É sobre a relação entre vida no presente e o passado historicizado que o artigo reflete. Para que esse diálogo vivo seja proveitoso é preciso “dizer respeito a mim, ou a nós” (MARTINS, 2017 pág. 208). Entre os fatores, a estética, a moral, as variadas experiências dos sujeitos em situação de aprendizagem afetam emocionalmente os sujeitos. Contribuir para a expansão da subjetividade individual e coletiva deve ser uma das contribuições dessa forma de conhecimento, portanto, do ensino de história.
Da mesma forma como os historiadores precisam dialogar com universo cultural dos sujeitos a quem pretendem atingir, não seria profícuo negar os aprioris, o estoque experiencial dos envolvidos nessa relação, mesmo as divergências, é necessário tê-los presentes, trazer essa multiplicidade para a relação do ensinar e aprender história. De acordo com Martins, a interseção e as interdependências devem estar presentes tanto no trabalho da produção historiográfica do historiador quanto dos historiadores docentes.
Nos capítulo 10 – “Educação e consciência histórica” e 14 – “Educar para humanidade. História e Iluminismo” os debates tratam do conceito consciência histórica e da relação com o conhecimento, aspectos interno e externo, e que a reflexão da consciência se dá em nível metarreflexivo, pois a consciência é confrontada e pode pensar sobre ela mesma. Na dinâmica das salas de aula as inter-relações temporais são constantes. Indica que, ao pensarmos sobre as formas de pensar estamos realizando um exercício de meta-reflexão.
Educar para humanidade é uma ideia que se repete entre outros textos e dedica-se a questões como: que homem formar, que cidadão formar, recuperando historicamente elementos da Europa (irmãos Humboldt no século XIX – educar para humanidade; ambiguidades que envolvem o termo universidade), assim como um equivalente brasileiro contemporâneo (José Bonifácio). O programa da consciência histórica da universidade humboldtiana (MARTINS, 2017 p. 214) também figura entre as discussões. Os capítulos examinam os autores e as ideias que circulavam no contexto da virada do XVIII para o XIX na Europa ocidental, sobretudo filósofos germânicos.
Nas reflexões figuram as condições das universidades, sua função e para quem se destinam, apresentando suas visões (que envolvem posições relacionadas ao aspecto político dessas reflexões) com base em uma discussão que compara as discussões de W. von Humboldt e seu projeto de universidade e a relação com as condições atuais das universidades brasileiras. Essas comparações também se dão no plano do próprio passado do XIX ao estabelecer alguma comparações entre Humboldt e José Bonifácio de Andrada e Silva (ambos envolvidos nos projetos de construção de nações, Alemanha e Brasil). Interessante observar que, a surpreendente comparação realizada pelo autor é digna de nota, Humboldt foi um notável europeu, e na comparação entre o mundo conhecido por esse intelectual foi significativamente menor do que o conhecido por José Bonifácio 43.
Interessante destacar que as comparações entre intelectuais setecentistas não se limita apenas a relação com a compreensão desses passados (europeu e brasileiros), mas a discussão teórica se dá no sentido de atualizar as contribuições iluministas a teoria da História ciência, assim como as contribuições que essas relações estabelecem com o processo de educar a humanidade no presente. Processo de educação em que a História mantém um papel fundamental. Em tempos em que a intolerância supera a racionalidade, a leitura desse texto e especificamente do subtema “Consciência histórica e Razão esclarecida” possui mensagem alvissareira e salutar.
O capítulo 11 “Fazer história, escrever história, ensinar história” destaca que ao longo do século 20 três formas de fazer história foram admitidas na historiografia: experiência temporal dos indivíduos, a reflexão sobre a experiência do tempo refletida na consciência histórica e a crítica da experiência do tempo refletida e legada por outros. Como nenhum ser humano nasce em um muno sem história (outra ideia reforçada ao longo do livro), e ao mesmo tempo somos resultado e produto dessa história, aprendemos com essas relações temporais que envolvem o presente, a experiência refletida e as expectativas com relação ao porvir (nas palavras de Rüsen uma constante antropológica44). O nível de aprendizado pode variar de acordo com a relação que se estabelece com o passado refletido, isso pode se dar no aspecto mais cotidiano que se nutre da memória de todos e de cada um, assim como a experiência com o passado metodizado, ou seja, com preocupações científicas e que resultam na historiografia.
Há nesse capítulo uma articulação objetiva entre os indivíduos que vivem, e portanto fazem história, e o plano mais amplo da sociedade em que estão inseridos, assim como as variáveis que envolvem a reflexão sobre essa condição de agentes, tempo e espaço (MARTINS, 2017 pág. 239). As tarefas de ensinar história são objetos centrais da preocupação desse capítulo, o que pode ocorrer no plano da consciência histórica em geral, da historiografia como produto científico, o da formação dos profissionais que trabalham com a história historiográfica e seus subprodutos, e por fim, dos profissionais que se dedicam ao ensino de história na educação formal.
Sobre a educação formal há um pequeno equívoco em uma comparação entre os estabelecimentos de ensino superior particulares que são maioria entre a totalidade das unidades de ensino superior públicas no Brasil, uma vez que o mesmo não ocorre entre as escolas de ensino médio e fundamental (em que a esmagadora maioria são públicas 45). Em todo caso, o argumento serve para a concepção do autor de que, uma maioria dos professores consome historiografia e não produz conhecimento historiográfico (MARTINS, 2017 p. 241). O que de acordo com o autor amplia a necessidade da reflexão didática dos historiadores.
No final do capítulo “excurso – autoridade historiográfica: elementos da disciplinarização”, o leitor encontrará um breve históricos das correntes historiográficas normalmente debatidos nas disciplinas de teoria da história. Destaco a capacidade de síntese do autor ao tratar de características de determinados modelos de produção historiográfica ao longo do século XX, e o que teria levado a História da condição de fardo (res gestae) para a condição de constituição de autonomia, identidade de relação social crítica e argumentada (rerum gestarum) (MARTINS, 2017 p. 243 – 246).
O capítulo 12 – “Processos históricos, aprendizagem e a educação de uma “segunda natureza humana” se divide em sete seções. Na primeira inicia uma revisão sobre a formação de uma segunda natureza humana que se constitui nas relações sociais que estabelecemos, ou seja, um processo formativo e incontornável que muitas vezes possui uma vertente conservadora (preservação da cultura), mas que admite as possibilidades de transformação (crítica) – elementos presentes desde a antiguidade, de acordo com as referências do autor (MARTINS, 2017 p. 251- 252).
Na segunda seção, a primeira natureza é tratada como um pressuposto metafísico entre uma estrutura originária e aquilo que se preenche na relação do agente racional humano e a sociedade. Essa distinção é analítica, uma vez que no plano da consciência histórica a ideia de primeira e segunda natureza, ou aspecto interno (subjetividade) e aspectos externos (cultura), ou ainda individuação e aculturação são elementos que estão constantemente articulados.
A terceira seção se dedica a reflexão sobre o papel do Estado moderno como elemento que influencia nos aspectos de preservação da memória. Apesar de reservado com relação as possibilidades de intervenção do Estado na ciência, o autor também relativiza essa crítica quando demonstra uma das características do seu pensamento, vez ou outra ao longo do livro, figuram críticas ao marxismo (ou a determinadas formas de marxismo) e alerta que o papel da crítica constate ao Estado poderia ser tão impositivas quanto as escolhas do Estado que se critica (MARTINS, 2017 p. 256).
A quarta seção trata das inter-relações entre a primeira e a segunda natureza no âmbito do que se chama cultura histórica, como suprassumo dos sentidos constituídos pela consciência histórica humana. No século 21 as características muitas vezes parecem distorcidas possibilitando o prevalecimento das ações humanas de intervenção na natureza até ao ponto dos desastres, momento em que cita a tragédia de Minas Gerais em relação as barreiras de contenção de rejeitos de mineração (2015).
A quinta parte discute as noções de formação para humanidade, em que revisando autores já citados no capítulo 10, é mais interessante que as formações específicas (técnica ou cidadã, por exemplo) não se sobreponham ao humano. A sexta e sétima seções dedicam-se as ideias sobre formação para a autonomia e a aprendizagem para emancipação. Discutem-se as contribuições do conhecimento histórico como racional e metódico para o processo formativo dos agentes racionais humanos que, segundo autor, pode gerar um processo de assenhorear-se de sua segunda natureza, e na relação dialética entre aspectos internos e externos, tornarem-se protagonistas efetivos de sua contemporaneidade.
É no capítulo 13 – “A exemplaridade da história: prática e vivência do ensino” que as discussões a respeito da teoria da história assumem uma relação mais específica com fatores mais práticos a que se pretende a segunda seção do livro. Elementos discutidos anteriormente e que garantiriam aspectos científicos da história e a própria identificação das comunidades a que os historiadores se dedicam que são discutidos elementos da história e suas funções didáticas.
Professores e professoras trabalham com públicos de características bastante diversificadas, muitas vezes precisam lidar com graus diferenciados de possibilidades de compreensão das discussões, nesse caso alguns cuidados (ou indicações) da teoria podem auxiliar a discussão sobre o ensino. Mediações entre formas exemplares de discussão sobre conteúdos da história, com a forma problematização levando em consideração a ideia (muito discutida por Rüsen) sobre as carências de orientação dos estudantes. Ou seja, trazer para o ensino a problematização histórica, dar historicidade as características do presente que não podem ser compreendidas sem um recurso a história. Quando a história nos diz respeito acarreta mais envolvimento, e um envolvimento maior acarreta uma aprendizagem com sentido para a vida humana em sociedade.
As atividades de ensinar e aprender história nas escolas (básicas ou superiores) são amplas, e a partir das reflexões sobre a teoria, o autor convida a reflexão de sete elementos fundamentais que envolvem a relação entre consciência e cultura histórica, entre as relações da história com as três expressões temporais (presente, passado e futuro), além de funções didáticas da história. Depois de tratar de cada um dos aspectos listados o autor aponta que o trabalho com o ensino de história pode ser visto como profissão e missão, de um lado os aspectos profissionais (metodização, cientificidade, programas escolares, regulação), e de outro a responsabilidade humana (que envolve estudantes e professores) com a humanidade (as constantes relações consigo mesmo e com os outros na sociedade e no tempo).
No capítulo 15 – “O futuro da educação e a reforma universitária”, Martins se dedica a uma análise das reformas educacionais por ocasião da chamada reforma universitária de 2006. Aponta críticas em relação às atitudes políticas, comuns no Brasil de acordo com o autor, que parecem tratar dos assuntos como se o Estado tivesse sempre começando cada vez que um novo governo assume uma gestão. Para defender suas críticas as ações políticas da educação do governo federal em 2006, Martins parte de duas teses principais: a) processos educacionais são interações sociais e culturais mais abrangentes do que um determinado momento da história de um país; b) políticas públicas para educação normalmente instrumentalizam a formação em um determinado sentido (o que ocorre no Brasil pelo menos desde a década de 1950, também de acordo com o autor).
A primeira tese é argumentada com o mesmo arcabouço das discussões sobre “educar para a humanidade” retomando discussões sobre o projeto Humboldt e as contribuições de renomados intelectuais do século XVIII e XIX a respeito da educação dos seres humanos (MARTINS, 2017 p. 301 – 306). A segunda tese, discutida sobre a seção ambiguidades e crises provoca o leitor a pensar na função do Estado como mecenas da autonomia universitária e nas crises da não resolução entre o que é público e o que é Estatal. Ao mesmo tempo as universidades e os sistemas educacionais em geral ganham funções pragmáticas de formar para determinados fins, o que contrariaria o princípio de “formar para a humanidade”.
Para Martins o Estado não deve se comportar nem como um regulador das Universidades, mas também não pode se omitir a ponto de não haver regulamentações ou acompanhamento administrativo. A crítica central se estabelece ao crescimento no número de universidades sem a ampliação dos investimentos ou das preocupações com as etapas da educação básica (em grande medida distribuída entre estados e municípios). Nesse texto é possível perceber aspectos discutidos anteriormente nos textos mais teóricos, por exemplo, sobre a relação entre a consciência do historiador (assim como de todos os agentes racionais humanos) e a realidade (tempo e espaço físico e social) em que o indivíduo se encontra.
Defensor da capacidade crítica, o autor utiliza essa parte fundamental do pensamento histórico em suas análises em relação ao contexto de 2006, mas não fica apenas no exercício da crítica, também faz proposições que valeriam tanto para a Universidade pública, quanto para os elementos particulares que prestam serviços públicos (a educação como exemplo central). Diretrizes e bases, regulação administrativa das atribuições do Estado e regulação qualitativa dos serviços prestados conformariam um ambiente mais interessante do que a intervenção para determinadas finalidades políticas (MARTINS, 2017 p. 313 – 316).
Na finalização do artigo o autor ainda apresenta certa dose de otimismo, sobretudo na continuidade da democracia (reinstituída com a constituição de 1988), e na defesa do interesse público acima dos interesses mais imediatos que se dão no campo da política. Independente do posicionamento do leitor em relação ao espectro político do período atual é interessante dizer que o período histórico brasileiro em que o artigo foi produzido guarda diferenças fundamentais em relação ao mês de outubro de 2018 (momento em que escrevo essa resenha). A leitura desse artigo é quase um convite para a reflexão sobre as mesmas bases teóricas em relação, por exemplo, a reforma do Ensino Médio por medida provisória em 2016 (atual lei 13.415 de 2017), ou ainda o contexto da Emenda Constitucional 95/2016. Para finalizar os comentários desse texto cito uma das frases finais do autor: “a educação é um bem que se situa acima e além de interesses particulares, políticos, econômicos ou partidários” (MARTINS, 2017 p. 317).
O último texto dessa coletânea é o capítulo 16 – “Historicidade e consciência histórica: as matrizes do pensamento histórico em Jörn Rüsen”. O autor inicia com uma abordagem da produção de Jörn Rüsen, caráter interdisciplinar e de feitura europeia ocidental, mas que estuda outras sociedades para fugir do etnocentrismo europeu. A teoria proposta por Rüsen possui o Humanismo como característica fundante: inegociável para quem já conquistou e horizonte a ser conquistado por aqueles que ainda não possuem. A maneira de acessar essas compreensões passa pelos conhecimentos históricos e sua relação com a vida, portanto, a preocupação com as funções didáticas da história também são fundantes no pensamento de Rüsen.
Os elementos fundamentais foram organizados na Matriz disciplinar da produção historiográfica, que teve desdobramento na matriz do pensamento histórico, a segunda vai além da historiografia e se aplica a toda e qualquer forma de reflexão historicizante. NA representação gráfica da segunda matriz ficou de fora um complemento, a legenda a respeito dos números que figuram no esquema: 1. estratégia política da memória coletiva; 2. Estratégia cognitiva da produção do saber histórico; 3. Estratégia estética da poética e da retórica da representação histórica. Esses três elementos são também fundamentais para a compreensão do movimento perene entre a história ciência e a vida.
É a categoria sentido que articula a terceira matriz e trás a interdependência entre as formas de atribuição de sentido as experiências humanas no tempo. Entre as formas de atribuição de sentido há prevalência da forma tradicional e o influxo transversal do sentido crítico. As discussões sobre as matrizes de Rüsen envolvem pensamento, constituição de sentido e narrativa historiográfica, todos esses conceitos são discutidos por Rüsen e aparecem no capítulo de maneira objetiva.
Uma ideia central da teoria de Rüsen que Martins debateu é que tanto o pensamento historiográfico, como o comum cotidiano, nasce de carências de orientação. A relação entre o pensamento histórico e a vida, algo que acompanha a história da própria teoria da história é discutida de maneira concisa e contundente.
Além do aspecto pragmático do pensamento histórico, Martins localiza e discute com as compreensões a respeito da história que estão no campo da pósmodernidade (aqui o leitor encontrará análise e argumentação crítica em relação a esses posicionamentos). Alguns historiadores se recusam a refletir sobre o estatuto epistemológico de sua produção, outros ficaram no período da crítica do giro linguístico. Entre as pessoas que se propuseram a debater o estatuto científico da História, a primeira proposta de fôlego apresentada foi a trilogia de Rüsen, que impulsionou debates em vários lugares do mundo. Além do campo da teoria, a proposta de Rüsen gerou muitas produções nos campos da educação histórica, didática da história e ensino de história.
Para finalizar gostaria de destacar uma ideia presente ao longo de toda obra do professor Estevão Chaves de Rezende Martins, assim como na obra de Rüsen, sobre a importância do espaço público para o pensamento histórico. O ponto de partida é sempre a relação com o presente. As matrizes de Rüsen, assim como as teorias propostas por Martins permitem a relação entre cultura e consciência, a relação entre presente-passado e presente-futuro, entre a vida e a ciência especializada e essas relações inspiraram Rüsen a distinguir dimensões, assim como desdobramentos antropológicos e critérios dominantes de sentido respectivos a cada dimensão 46.
A teoria e filosofia da História discutida por Rüsen, assim como as propostas teóricas e filosóficas propostas pelo professor Estevão já deram contribuições muito significativas para a produção historiográfica, para os debates teóricos, para o campo da educação histórica, didática da história e ensino de história. Mas ainda há muito que compreender e fazer uso dessas propostas para que o trabalho das historiadoras e historiadores, assim como dos historiadores e historiadoras docentes, que possam buscar conhecimentos históricos com geração de sentido para a vida no presente, que permitam os processos de “dar-se conta”, assenhorear-se da possibilidade de compreensão da vida humana e que isso possa gerar ações no tempo com orientação para a construção de uma vida mais justa, humana e igual. Talvez, novas produções que deem conta de analisar a realidade a partir da relação entre cultura e consciência e das diferentes dimensões da cultura histórica, possam ampliar as discussões sobre teoria e filosofia da história, assim como das relações de ensinar e aprender história nas salas de aula (espaço prevalente da aprendizagem histórica contemporânea). Sem esquecer, no entanto, que assim como as dimensões da cultura histórica estão inter-relacionadas a sala de aula ou o gabinete dos historiadores não estão deslocados das realidades objetivas e concretas em que se dão as formas de pensar historicamente.
Notas
37 Ver, por exemplo, a entrevista “A culpa é de Hobbes e de Hume! Uma entrevista com Estevão de Rezende Martins” disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/151/74 (acesso em 21/09/2018).
38 Jörn Rüsen é um historiador e filósofo alemão, suas produções envolvem temas da teoria, metodologia e filosofia da História. Nas discussões sobre a História como ciência o autor apresenta preocupações relacionadas as funções didáticas da História e suas relações com a práxis existencial.
39 Ver, por exemplo, RÜSEN, 2001 p. 136. No livro Razão Histórica Rüsen critica a forma pré-estabelecida de apreensão do passado, que pode figurar em algumas produções do marxismo-leninismo, como forma de dogmatismo, o que não se limita a essa concepção, mas também se apresenta como característica de visão partidária da ciência na tradição do pensamento histórico burguês.
40 Ver Rüsen, J. (2017). Senso e contrassenso na História: reflexão sobre o perfil de uma filosofia da História. Intelligere, 3(2), 1-12. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2017.140975 acesso em 21/09/2018.
41 Ver também” História viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico” (RÜSEN, 2007 p. 64). Ou ainda para a relação das formas com as enunciações dos estudantes em sala de aula pensamento “Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas” (RÜSEN, 2012 p. 94). Também “Teoria da História: uma teoria da história como ciência” (RÜSEN, 2015 p. 254).
42 VARELLA, Flávia F.; MOLLO, Helena M.; MATA, Sérgio R. da; ARAÚJO, Valdei L. de. (Org.). A dinâmica do Historicismo. Revisitando a historiografia moderna. 1 ed.Belo Horizonte: Argumentum, 2008.
43 Ver, por exemplo, “A era das revoluções”, especificamente o capítulo: “O mundo em 1780” (HOBSBAWM, 2006 p. 23).
44 Ver RÜSEN, 2015 p. 55.
45 De acordo com os dados do censo escolar publicados em janeiro de 2018, de um total de 184,1 mil escolas, apenas 21,7% são estabelecimentos particulares. (ver http://inep.gov.br/web/guest/resultados-e-resumos acesso em 03/10/2018).
46 Em entrevista publicada em 2016 o autor cita a possibilidade de, em uma argumentação mais complexa, distinguir sete dimensões: estética, retórica, política, cognitiva, moral, didática, religiosa, e a dimensão da visão do mundo e da ideologia (RÜSEN, 2016 p. 167 – 168).
Referências
ARAÚJO, André de Melo (org.) Entre filosofia, história e relações internacionais: escritos em homenagem a Estevão de Rezende Martins / André de Melo Araújo, Arthur Alfaix Assis, Sérgio da Mata (organizadores) – São Paulo: LiberArs / SBTHH, 2017.
HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções. 20ª.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MARTINS, Estevão C. de Rezende. Teoria e Filosofia da História. Contribuições para o Ensino de História. Curitiba: W & A Editores, 2017.
PEREIRA, Ana Carolina B; ASSIS, Arthur. A culpa é de Hobbes e de Hume! Uma entrevista com Estevão de Rezende Martins. História da historiografia. Ouro Preto, número 04, março, 2010. (disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/151 acesso em 21/09/018)
RÜSEN, Jörn. (2001) Razão histórica: Teoria da história: Os fundamentos da ciência histórica. (trad. Estevão de Rezende Martins). Brasília: Ed. UnB.
RÜSEN, Jörn. (2015) Teoria da história: Uma teoria da história como ciência. (Trad. Estevão de Rezende Martins). Brasília: Ed. UFPR, 2015.
RÜSEN, Jörn. (2016). Entrevista – Jörn Rüsen. Algumas ideias sobre a interseção da meta-história e da didática da história. Realizada por Marília Gago. Revista de História Hoje, v. 5, nº 9, p. 159 – 170 – 2016
RÜSEN, J. (2017). Senso e contrassenso na História: reflexão sobre o perfil de uma filosofia da História. Intelligere, 3 (2), 1-12. https://doi.org/10.11606/issn.2447- 9020.intelligere.2017.140975 acesso em 21/09/2018.
Resenhista
Thiago Augusto Divardim de Oliveira – Professor de História no Instituto Federal do Paraná (Campus Curitiba) e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH – UFPR). ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4719-5565 E-mail: thiagodivardim@gmail.com
Referências desta Resenha
MARTINS, Estevão C. de Rezende. Teoria e Filosofia da História. Contribuições para o Ensino de História. Curitiba: W & A Editores, 2017. Resenha de: OLIVEIRA, Thiago Augusto Divardim de. A teoria como elaboração da realidade: fundamentos da história ciência e a preocupação teórica com o ensino e aprendizagem da História. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n.22, p.95-113, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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