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Teoria da História | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2006

Cena de Os Irmãos Grimm – Filme de Terry Gilliam (2005) | Imagem: Boca do Inferno

Poucos campos da ciência histórica permanecem com fronteiras tão livres e francas quanto a teoria da história. Eu disse teoria da história? Alguns a lêem como historiografia, como debate historiográfico, outros tantos como metodologia. E isto se reflete na prática diária do ofício do historiador, quando, por vezes, a definição do que é teoria fica um tanto capenga. Em certo sentido, é evidente que cada historiador precisa, sem adiamentos ou postergações, pensar no que faz.

Mas não é curioso que algo que deveria ser um imperativo – pensar no que se faz – permaneça sendo algo indefinido, imaturo, precário? Ora, ninguém duvida, dentro da filosofia, da existência de uma área denominada epistemologia, ou de uma outra classificada como estética. Os filósofos, sistemáticos e hierárquicos por natureza de ofício, reconhecem-lhes as obras clássicas, permitindo o ultrapasse destas fronteiras, sabendo que recebem em suas casas uma nobre visita. E pouco mais do que isso.

Já da teoria da história não se pode falar o mesmo. E quem o diz não é este obscuro escriba, mas sim Jörn Rüsen, que por décadas vem pensando o que significa… pensar historicamente, viver historicamente, expressar-se historicamente. Tudo pode ser jogado nesta imensa panela chamada “teoria”: metodologia, filosofia da história, epistemologia, hermenêutica, teoria da ideologia, sociologia e história da ciência, e o debate interdisciplinar entre as disciplinas que compreendem tais especialidades.1 É estonteante o panorama.

O conjunto de artigos que tenho a honra de apresentar neste dossiê – e desde já agradeço sinceramente pelo convite prontamente aceito por todos os colaboradores – não haverá de demarcar definitivamente as fronteiras. Se algo os une, é uma virtude que deveria estar presente, de maneira mais ou menos explícita, em cada aula, conferência e publicação dos historiadores e que não carregue consigo os vícios do moralismo dogmático, a saber, a obsessão de se perguntar decisivamente pela necessidade pensar historicamente. Não é obrigatório partir desta obsessão formulada em todas as suas letras. A face dos artigos reflete estas necessidades: os artigos, e isto o leitor generoso haverá de reparar, não têm a sisuda face tradicional dos textos teóricos.

Sendo inadiável a tarefa de pensar historicamente, ou de pensar, pura e simplesmente, torna-se homogêneo o que aparentemente é caótico; afinal, o conjunto de artigos abriga as preocupações de pesquisadores experientes, de jovens professores recentemente aprovados em concursos públicos e que, aqui e acolá, para o provável desespero de vocações teóricas, começam a enfrentar o ramerrão da prática universitária, e o de jovens alunos de graduação. Não há, portanto, razão alguma para aguardar e esperar o momento de refletir sobre o que se faz, tampouco motivo algum para se considerar que tudo está feito.

Biografias de lado, o que se lê nas páginas dos artigos é uma marca clara deixada por motivações distintas. Diria: preocupações radicais. O leitor poderá pensar, a partir do artigo de Estevão Martins, o que significou escrever história a partir da experiência política e social do século XX. Recuará ao início da modernidade tanto no texto de Luiz Costa Lima, como no texto escrito a quatro mãos por Valdei Araújo e Bruno Gianez. E o confronto entre estes três trabalhos já mostrará que a intensidade da experiência histórica novecentista e a alta qualidade da historiografia produzida no século recém terminado não significam que o mesmo tenha o monopólio – como muitos lamentavelmente ainda acreditam – de certas preocupações refinadas em teoria da história: desde sempre há a preocupação como a natureza do fato e da linguagem, com a essência da verdade histórica e da retórica que a sustenta, muitas vezes politicamente. Poderia citar Herder, no final do século XVIII, que já falava, lá muito ao seu modo, da relação entre história e linguagem. Mas nestes artigos sobre Montaigne e Fernão Lopes o leitor poderá ver que há uma imensa tradição a ser investigada por detrás de questões geralmente tratadas em um conjunto relativamente pequeno de autores. Mais uma vez: a própria história da experiência moderna demonstra a impaciência em se pensar historicamente. A precocidade não é precipitação, e a síntese não é, de modo algum, simples recauchutagem.

E a teoria da história, aqui sempre entendida como qualquer atividade reflexiva do historiador – na qual o elemento empírico aparece como motivo e alavanca, e não como objeto domesticado e justificado por uma teoria prévia – encontra-se também em áreas que não se associam facilmente ao cariz geralmente filosófico deste campo da ciência histórica: e, neste sentido, são muito ricos os textos de Flávia Varella e Sérgio e Giulle de Mata. Construindo sobre uma base filosófica e científica, que, no caso do trabalho de Flávia Varella, é a filosofia de David Hume, e, no caso de Sérgio e Giulle da Mata, a folclorística e o historicismo alemães, torna-se possível pensar, de maneira criativa e surpreendente, a ficção clássica de Jane Austen e um filme comercial como Os Irmãos Grimm, de Terry Gilliam. O que estes dois textos comprovam é: não há objeto que seja indiferente à tarefa de pensar o que significa a historicidade do homem. E, no ambiente do século XIX, que já questionava radicalmente a modernidade, há o meu estudo sobre Hegel e Nietzsche, que, francamente inspirado na provocação nietzscheana sobre a utilidade da história para a vida, e, portanto, sobre a sua possível desvantagem, tenta contemplar uma preocupação comum a todos: a teoria não é mera vigia da historiografia, e, apesar de todas as suas distinções, é sempre uma preocupação cuidadosa que se pergunta pelo sentido do que faz. Uma obsessão saudável, diria.

Deixo agora o leitor com os textos do dossiê. Espero que tenha a mesma impressão que tive ao lê-los pela primeira vez: a teoria não precisa empinar o nariz e se encastelar em conceitos. Pode, e deve, sutilmente, introduzi-los através de experiências vitais. Boa leitura.

Nota

1 Cf. RÜSEN, Jörn. Historische Vernunft: Grundzüge einer Historik. Band I: Die Grundlagen der Geschichtswissenschaft. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1983, p. 13.


Organizador

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia e professor-integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura – NEHAC. E-mail: pedro.caldas@gmail.com


Referências desta apresentação

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Apresentação. Teoria da História: a necessidade da História. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.3, n.2, abr./jun. 2006. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Itamar Freitas

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