Teoria da História em Jörn Rüsen: sentido e consciência histórica | Itamar Freitas

Um caminho para a compreensão das ligações indicadas pelo título desta aula (Teoria da História – TH e Metodologia de Ensino – ME) é apresentar as categorias mais gerais do seu novo livro: “sentido”, “consciência histórica” e “competência narrativa”. Na apresentação desta última, descreveremos as proposições sobre métodos de ensino, que, por sinal, são raras na Teoria da História: uma teoria da história como ciência (2015). Vale lembrar que essa meta de transformar a da TH de Rüsen em Didática da História é efetivada com maior competência por vários outros profissionais, na Europa e nas Américas, que vocês podem acessar com facilidade pela Internet. Registramos, entretanto, que entre os desenvolvedores das suas teses para o ensino, Rüsen destaca o alemão Bodo von Borries.

A TH de Rüsen não é, prioritariamente, como informa o subtítulo, uma Teoria da Ciência da História. Ela ultrapassa os temas clássicos das TH anunciadas como Epistemologia ou Filosofia Crítica da História. Estas últimas discutem questões de método de investigação e estratégias de validação dos resultados da pesquisa. As questões com as quais Rüsen inicia a exposição da sua TH, ao contrário, estão presentes nos teóricos classificados como filósofos especulativos da História, que produziram entre o final do século XVIII e o início do século XX, como já vimos no semestre passado: (1) “A História tem sentido (lógica)?” “De onde vem o sentido da História (auto realização)?” “O que é um ser humano (experimentação, interpretação, orientação e motivação)?” “Como um ser humano é constituído (exercício da competência narrativa)?” “Para onde caminha a humanidade (alteridade)?”

Isso não significa dizer que ele despreze a Ciência Histórica. Pelo contrário: Rüsen faz sim epistemologia quando discute “as regras do método histórico” e as “formas de processos da historiografia”. Esses capítulos constituem a parte central do seu livro, que ao final, inclui questões típicas dos especialistas no ensino de História do nosso tempo. E ele próprio se transforma em teórico da Didática da História, quando expressa a crença de que um novo humanismo pode ser cultivado, mediante o emprego dos métodos e dos resultados da Ciência Histórica como componente curricular da formação básica. Nesse sentido, como teórico do ensino, apresenta as seguintes questões: “Qual a finalidade do conhecimento histórico na escolarização básica (constituição de identidades individual e coletiva em perspectiva genética)?” “Qual a contribuição do conhecimento histórico para a constituição das identidades individual e coletiva dos sujeitos históricos (desenvolvimento da competência narrativa):”

Vejamos, inicialmente, as respostas ao primeiro grupo de questões, que tratam de sentido e ser humano. Nos dois tópicos seguintes, exploramos as ideias de consciência histórica e de competência narrativa (onde estão as proposições de método de ensino de História.


A História tem sentido

A vida faz sentido. A vida é lógica. Rüsen contesta o ceticismo manifesto por filósofos como Nietzsche em relação à experiência humana (vida) e ao valor do conhecimento histórico como interpretação dessa experiência. Podemos até avançar dizendo que Rüsen despreza teses de existencialistas como Albert Camus. Este filósofo francês contemporâneo afirmou que a razão do sofrimento dos humanos estaria no choque entre a crença desses humanos em supostos sentidos para o universo e a teórica negação desse suposto sentido por parte do próprio universo. Na crítica às teses sobre a ilogicidade da vida, ele nos lembra de imediato as proposições de Immanuel Kant e Friedrich Hegel. Guardadas as respectivas diferenças, os seus compatriotas defendiam que a vida humana era sinônimo de ordem. No caso de certa interpretação de Hegel, a finalidade e direção da vida seriam produzidas pelos próprios humanos, o que significava dizer, produzidas sem a interferência de um Deus judaico-cristão.

Seguindo implicitamente semelhante direção, Rüsen afirma que o sentido da vida é produzido pelos próprios humanos. Humanos são seres sofredores e seres livres para agir. São seres suscetíveis à mudança quando percebem que “as coisas do mundo próprio não acontecem como deveriam”. São também seres agentes da mudança quando afirmam “controlar o curso da [sua] vida segundo critérios que valham como [seus]”) (Rüsen, 2015. p.55), seja para superar uma mudança, seja para efetivar “uma aspiração à felicidade”. A superação do sofrimento ou a concretização de uma “demanda utópica” são promovidos pela mobilização de funções mentais que lhe são inerentes: “percepção”, “interpretação”, “orientação” e “motivação.” Esses poderes mentais (que nos lembram a concepção de faculdades mentais da idade moderna) são também universais antropológicos da sua TH ou seja, capacidades válidas para todos os humanos em qualquer tempo e lugar (2015, p.210). São esses universais que [manipulam] memórias e esperanças (ou espaços de experiências e horizontes de expectativa – de R. Koselleck). São essas capacidades que viabilizam a articulação de presente, passado e futuro na superação de um obstáculo ou na satisfação de um sonho. Descrevamos cada uma dessas capacidades com exemplos caricatos de uma situação de desemprego para facilitar a sua intelecção.

A primeira dessas funções ou atos mentais nós realizamos quando identificamos (ou experimentamos) as diferenças entre passado e presente. Há percepção dessa dessemelhança quando nos defrontamos com uma mudança na vida prática e anunciamos: “No ano passado, tive condições de comprar presentes para a família, aproveitando as promoções do Shopping Rio Mar. Este ano, desempregado, nada posso comprar, nem mesmo na Rua José do Prado Franco.” A segunda função ou “operação” mental realizamos quando circunscrevemos essa mudança (essa diferença temporal – presente/passado) em uma sequência de eventos mais abrangente (a vida de uma pessoa, a vida de uma instituição ou a vida de um país), transformando-a em acontecimento histórico (conhecimento histórico). Há interpretação quando dizemos: “Segundo consta neste artigo escrito por um historiador na Folha de São Paulo, grande parte desse desemprego reflete as a ampliação do poder do capital financeiro sobre o capital produtivo, que ocorreu no Brasil, durante as décadas de 90 e de 2000.” A terceira função ou competência realiza-se quando empregamos o conhecimento histórico (o ato transformado em acontecimento, no interior de uma sequência temporal mais ampla) com o objetivo de reforçar ou modificar uma norma de vida. O uso pode se dar em nível social e ou em nível pessoal. Há orientação em nível social quando mobilizamos o conhecimento histórico para afirmar: “Devo votar nos candidatos trabalhistas porque (com a informação que tenho sobre as relações históricas entre desemprego e dominação do capital financeiro) esses futuros deputados são a chance de os trabalhadores resistirem como classe às políticas neoliberais implantadas pelo atual governo.” Paralelamente, há orientação em nível pessoal quando dizemos: “Eu sou eletricista e gosto (não gosto) dessa profissão. Fui iniciado no ofício quando adolescente por vontade dos meus avós”. A última função mental nós realizamos com a mobilização de emoções que ligam o pensamento à ação. Há motivação quando afirmamos: “É revoltante saber que a recente reforma trabalhista obriga mulheres grávidas a trabalhar em condições insalubres. Por isso, vou às ruas protestar contra a aprovação desse projeto de lei.”


Consciência histórica

Quando observadas estaticamente, essas quatro funções (operações, capacidades ou competências mentais) são sintetizadas didática, esquemática e até ficcionalmente com a expressão “consciência histórica”. Rüsen nos induz a afirmar, assim, que todos os humanos são portadores de consciência histórica. Todos os humanos são o que são, no tempo. Todos os humanos estão conscientes da sua natureza eminentemente temporal. Aqui (nesse “todos”) está a terceira demonstração da valência dos universais antropológicos da TH de Rüsen.

Consciência histórica é um modelo teórico (um tipo ideal) que serve para viabilizar o exame dos modos pelos quais os humanos se relacionam com o tempo, ou seja, os modos pelos quais as pessoas constroem suas identidades (individual e coletiva) e orientam as suas ações para enfrentarem a mudança ou realizarem seus planos de melhoria de vida. Assim, para abranger a diversidade de situações nas quais os humanos mobilizam presente, passado e futuro, Rüsen estabelece teoricamente quatro possibilidades ou quatro “formas” de consciência histórica (consciência de estarem no tempo). As duas primeiras refletem a permanência e as duas últimas refletem a mudança. Na relação de permanência, há uma situação onde os humanos não percebem diferenças entre presente e passado. Suas ações estão inscritas em uma “eternidade intratemporal” (2015, p.207). Aquelas pessoas ou grupos que assim convivem são portadoras de uma consciência histórica “tradicional”. Na relação de permanência há também a situação onde pessoas ou grupos diferenciam presente de passado (o presente é a outra coisa), mas agem a partir de regras instituídas no passado. Tal relação com o tempo, conhecida por todos nós como vida por imitação (Historia magistra vitae), caracteriza a consciência histórica “exemplar”. Quando a relação dos humanos com o tempo é de mudança (o presente é diferente do passado e o futuro pode ser o que o agente quiser), a consciência histórica é designada como “genética”. Há, por fim, um último tipo de “consciência histórica” que é marcado pela mudança, mas funciona como pura negação dos três citados. É a consciência onde predomina a “negação” do passado.

Esses tipos de consciência formam uma progressão (também ideal). Em provável história da espécie humana e, ainda, em hipotética história de um indivíduo humano, essas consciências são apresentadas em progressão. No plano da espécie, teríamos migrado de uma consciência estruturada na permanência para uma consciência que priorizou a mudança; de uma identidade pessoal que espelhava o passado para uma identidade pessoal que respeita o passado como um outro, mas que, a partir desse “outro” constrói a sua própria regra para agir; de uma relação de mesmidade, enfim, para uma relação de alteridade com os diferentes passados.

No plano individual, a tipologia da consciência histórica rüseniana oferece mais uma proposição para a Didática da História e, consequentemente, para o planejamento dos métodos do ensino de História. Rüsen sugere que os indivíduos se desenvolvem ao longo do tempo vital, experimentando cada uma das etapas comentadas acima. No novo livro, ele não detalha essa “hipótese ontogenética”. Nos textos traduzidos nas duas primeiras décadas do nosso século, porém, essa hipótese é defendida com clareza. Rejeitando, por exemplo, os estágios da Teoria do Desenvolvimento Psicológico de Jean Piaget, Rüsen conjectura que os indivíduos em formação escolar experimentam as consciências tradicional, exemplar e genética (no livro anterior eram quatro). Crianças e adolescentes modificavam progressivamente o seu modo de relacionar-se com o tempo (de constituir suas identidades etc.), migrando da imitação (da ação conforme regras estabelecidas pelos pais, comunidade, isto é, relações inscritas no passado) à negociação (da ação mediada pela alteridade, ou seja, do respeito à regra do passado, combinado ao sentimento de autonomia em seu agir).

Cabe ao professor, em sua tarefa de planejar currículos e aulas, conhecer as formas predominantes de consciência dos seus alunos. Isso significa dizer que a primeira potencial operação de método de ensino é o diagnóstico dos modos pelos quais os alunos articulam presente, passado e futuro. É a medição do quanto esses alunos estão mais próximos ou mais distantes da consciência compatível com a vida contemporânea. E Rüsen não nega que exista esse modelo: a consciência genética de sentido. Marcado pelos traumas gerados pela participação do seu país na Segunda Guerra Mundial, entre outros motivos, Rüsen defende a efetivação de uma sociedade onde o respeito à diversidade cultural seria a tônica. Isso inclui a autocrítica em relação ao eurocentrismo e a efetivação de uma convivência global fundada em direitos individuais de alcance universal. O ensino de História estaria justificado nesse contexto. A ele caberia a função de viabilizar essa utopia, mobilizando as funções mentais na construção de consciências históricas compatíveis com o que ele entende ser a tendência da sociedade contemporânea.

Evidentemente, a adoção do diagnóstico sobre o pensamento histórico dos alunos e a aceitação da consciência genética como tipo adequado implicam na incorporação da sua utopia (sua ideia de sociedade e de humanidade) no estabelecimento dos fins do ensino de História e do desenvolvimento da competência narrativa como principal caminho (método) para atingi-los.[…] 


Referências

RÜSEN, Jörn. As formas elementares da constituição histórica de sentido. In: Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015. p.41-55. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins. Revisão Técnica de Arthur Alfaix Assis.

RÜSEN, Jörn. Direitos humanos e civis como orientação histórica: sugestões para interpretação e para análise didática. In: Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A., 2012. p.193-220.

RÜSEN, Jörn. História prática – aprender, compreender, humanidade. In: Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015. p.247-273. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins. Revisão Técnica de Arthur Alfaix Assis.

RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (org.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. p.51-77.

RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (org.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. p.109-127.

RÜSEN, Jörn. Tipologia da narrativa histórica II: os quatro tipos da constituição histórica de sentido. In: Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015. p.247-273. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins. Revisão Técnica de Arthur Alfaix Assis.


Voltar para o programa de “Teoria da História (URCA)”

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.