Tempos líquidos | Zygmunt Bauman
Zygmunt Bauman é um sociólogo polonês, de descendência judaica, nascido em 1925, em Poznań. Quando a Polônia foi invadida pelo nazismo em 1939, sua família refugiou-se na União Soviética. Bauman serviu na Polish First Army, sob o controle dos soviéticos. Neste período, o autor tomou parte nas batalhas de Kolberg e Berlin. De 1945 a 1953, Bauman passou a servir na Korpus Bezpieczeństwa Wewnętrznego (KBW), esta unidade foi responsável pela repressão à resistência ucraniana e germânica. Neste momento de incertezas, foi que o autor iniciou seus estudos em sociologia na universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e em 1968 foi afastado da universidade. Logo em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular da universidade de Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Responsável por uma prodigiosa produção intelectual, recebeu os prêmios Amalfi, em 1989, por sua obra Modernidade e Holocausto e Adorno, em 1998, pelo conjunto de sua obra. Atualmente é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
Em Tempos Líquidos, o assunto primordial que permeia a obra é a insegurança. Um fenômeno que, para o autor, caracteriza a vida nas grandes metrópoles globalizadas. Neste sentido, as cidades são hoje verdadeiros campos de batalha, onde poderes globais se chocam com identidades locais. O resultado desta equação é a eclosão nímia da violência e da insegurança.
Tempos Líquidos está subdivido em cinco capítulos. No primeiro, o autor manifesta sua preocupação em relação a liquefação do Estado-nação, face a sua incapacidade responder localmente ao estímulos globais. Segundo o autor, num planeta atravessado por “auto-estradas da informação”, nada que acontece em alguma parte dele pode de fato, ou ao menos potencialmente, permanecer do “lado de fora”. A sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que confie na proteção oferecida por este. Ela agora está exposta à rapacidade de forças que não controla e não espera, nem pretende, recapturar e dominar. “Aberto” e cada vez mais indefeso de ambos os lados, o Estado-nação perde sua força, que agora se evapora no espaço global, assim como a sagacidade e a destreza políticas, cada vez mais relegadas à esfera da “vida política” individual e “subsidiadas” a homens e mulheres. O que resta de política a cargo do Estado e de seus órgãos se reduz gradualmente a um volume talvez suficiente para guarnecer pouco mais que uma grande delegacia de polícia. Segundo o Autor, o Estado reduzido dificilmente poderia conseguir ser mais que um Estado da proteção pessoal. Bauman afirma que num planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas são globais e, sendo assim, não admitem soluções locais. Num mundo saturado de injustiças e habitado por bilhões de pessoas a quem se negou a dignidade humana vai corromper inevitavelmente os próprios valores que os indivíduos deveriam defender. Desta forma, a democracia e a liberdade não podem mais estar plena e verdadeiramente seguras num único país, ou mesmo num grupo de países. Sendo assim, o autor assevera que o medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Contudo, é a insegurança do presente e a incerteza do futuro, adverti o autor, que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável. Essa insegurança e essa incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência.
No segundo capítulo intitulado “ A humanidade em movimento”, o autor retrata as conseqüências da globalização, do enfraquecimento do Estado-Nação, quando aborda a questão do aumento de refugiados em diversas áreas do globo. O autor assevera que, a única indústria que floresce nas terras dos retardatários – conhecidas pelo apelido tortuoso e frequentemente enganoso, de “países em desenvolvimento” – seja a produção em massa de refugiados. Neste sentido, o número de vítimas da globalização sem teto e sem Estado cresce rápido demais para que o planejamento, a instalação e a construção de zonas que possam conter esses refugiados. Bauman aponta para a desregulamentação das guerras como um grande efeito da globalização, que em grande medida contribuem diretamente para o aumento destes refugiados. Bauman descreve que, tornar-se um refugiado significa perder os meios em que se baseia a existência social, ou seja, um conjunto de coisas e pessoas comuns que têm significados – terra, casa, aldeia, cidade, pais, posses, empregos e outros pontos de referência cotidianos. Essas criaturas à deriva e à espera não têm coisa alguma senão sua “vida indefesa, cuja continuação depende da ajuda humanitária”. Um outro ponto preocupante relacionado a esta questão, se refere a absorção de parte destes excedentes populacionais pelas guerrilhas, gangues de criminosos e traficantes de drogas, que em seus conflitos aniquilam e reabsorvem o “excedente populacional”. A partir de suas inferências o autor recorrer a Loïc Wacquant para asseverar que, a missão do Estado está sendo redefinida; este recua na arena econômica, alegando a necessidade de reduzir seu papel social à ampliação e ao reforço de sua intervenção penal. Um reflexo desta mudança pode ser observado no tratamento que alguns paises adotam em relação aos estrangeiros, permitem a saída, mas “protegem contra o ingresso indesejado de unidades do outro lado”, isto é, o que o autor denominou de “membranas assimétrica”.
No terceiro capítulo, Bauman aponta três possíveis causas para o sofrimento humano: a primeira está relacionada ao poder superior da natureza; a segunda diz respeito a fragilidade de nossos corpos; contudo, a terceira causa se relaciona intimamente a questão central desta obra e emerge da inadequação dos regulamentos que ajustam as relações dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Robert Castel chegou a conclusão semelhante, depois de descobrir que a insegurança moderna não deriva de uma carência de proteção, mas sim da “falta de clareza de seu escopo”. Castel atribuí à individualização moderna a responsabilidade por esse estado de coisas; sugere que a sociedade moderna, tendo substituído as comunidades e corporações estreitamente entrelaçadas, que no passado definiam as regras de proteção e monitoravam sua aplicação, pelo dever individual do interesse, do esforço pessoal e da auto-ajuda, tem vivido sobre a areia movediça da contigência. Segundo Bauman, a segurança das pessoas e a proteção de suas propriedades são condições indispensáveis para a capacidade de lutar efetivamente pelo direito à participação política, mas não podem se estabelecer de forma definitiva nem serem adotadas com confiança, a menos que a forma das leis impostas a todos tenha se tornado dependente de seus beneficiários. Contudo, devemos fazer uma ressalva: se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentados no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática desfrutada – deixada à sua própria lógica de desenvolvimento, a “democracia” poderia continuar sendo não apenas na prática, mas também de modo formal e explicito, um assunto essencialmente elitista -, sem direitos políticos, as pessoas não podem ter confiança em seus direitos pessoais; mas sem direitos sociais , os direitos políticos continuarão sendo um sonho inatingível, uma ficção inútil ou uma piada cruel para grande parte daqueles a quem eles foram concedidos pela letra da lei.
No quarto capítulo o autor trata da dicotomia social vivida nas grandes cidades. O autor recorre a Manuel Castells que retrata uma crescente polarização e uma distância cada vez maior entre os mundos das duas categorias em que se dividem os habitantes: “o espaço da camada superior geralmente está conectado à comunicação global e a uma vasta rede de intercâmbio, aberta a mensagens e experiências que envolvem o mundo inteiro. Na outra extremidade do espectro, redes locais segmentadas, frequentemente de base étnica, recorrem a sua identidade como o recurso mais valioso para defender seus interesses e, em último instância, sua existência.” Desta forma, as pessoas da “camada superior” não pertencem ao lugar que habitam, pois suas preocupações estão em outro lugar. Segundo Bauman, além de ficarem sozinhas, e portanto livres para se dedicarem totalmente a seus passatempos, e terem os serviços indispensáveis a seu conforto diário assegurados, elas não têm outros interesses investidos na cidade em que se localizam suas residências. Por outro lado, o mundo em que vive a outra camada de moradores da cidade, a camada “inferior”, é o exato oposto da primeira. Os cidadãos urbanos da camada inferior são “condenados a permanecer locais”. Para eles, é dentro da cidade que habitam que a batalha pela sobrevivência, e por um lugar decente no mundo, é lançado, travada e por vezes vencida, mas na maioria das vezes perdida. O acirramento desta segmentação social pode ser observado pelo aumento vertiginoso dos condomínios fechados, como os existentes na Barra da Tijuca – RJ, Região dos Lagos – RJ, São Paulo – SP, e em outras grandes cidades brasileiras que sofrem pelo aumento dos índices de violência contra a vida e ao patrimônio. Pois, como afirma Bauman, qualquer um que tenha condições adquire uma residência num “condomínio”, planejado para ser uma habitação isolada, fisicamente dentro da cidade, mas social e espiritualmente fora dela. O traço mais proeminentes do condomínio é seu “isolamento e distância da cidade… Isolamento significa a separação daqueles considerados socialmente inferiores”. As cercas têm dois lados…Elas dividem em “dentro” e “fora” um espaço que seria uniforme. Desta forma, as cidades, que originalmente construídas para fornecer proteção a todos os seus habitantes, hoje se associam com mais freqüência ao perigo do que à segurança.
Finalizando a obra o autor trata da utopia face a incerteza do mundo contemporâneo. Viver em um mundo incerto com a esperança de dias mais equilibrados é necessário para o progresso. Bauman revisita Anatole France que afirma que: “sem as utopias de outras épocas, os homens ainda viveriam em cavernas, miseráveis e nus. Foram os utopistas que traçaram as linhas da primeira cidade…” para nascer, o sonho dos utopistas necessitava de duas condições. Primeiro, um sentimento irresistível de que o mundo não estava funcionando de maneira adequada e de que era improvável consertá-lo sem uma revisão completa. Segundo, a confiança na capacidade humana de realizar essa tarefa, a crença de que “nós, humanos, podemos fazê-lo”, armados como estamos da razão capaz de verificar o que está errado no mundo e descobrir o que usar para substituir suas partes doentes, assim como da capacidade de construir as armas e ferramentas necessárias para enxertar esses projetos na realidade humana. Neste sentido, o autor apresenta três metáforas, diferentes entre si, mais relacionadas ao modo de interagir com o mundo vivido. A primeira diz respeito ao guarda-caça, que tem por princípio defender a terra sob sua guarda contra toda interferência humana, a fim de proteger e preservar. A segunda é a do jardineiro, o qual presume que não haveria nenhuma espécie de ordem no mundo, não fosse por sua atenção e esforços constantes. Essas duas metáforas tipificam a autoridade investida aos Estados-Nações. A terceira metáfora é a do caçador, o qual não dá a menor importância ao “equilíbrio” geral “das coisas”, seja ele “natural” ou planejado e maquinado. A única tarefa que os caçadores buscam é outra “matança”, suficientemente grande para encherem totalmente suas bolsas. Esses são produtos da globalização e do enfraquecimento do Estado-Nação. Contudo, nem todos podem tornar-se caçadores, mas os mais abastados.
Ao ler a presente obra, sob a perspectiva do autor, pode-se perceber sua importância no planejamento das políticas públicas. Muitas vezes somos tentados o produzir estratégias locais para resolução de problemas, que se quer, compreendemos. Talvez esta seja a razão de continuarmos tentando. Para ilustrarmos o tema tratado, vamos utilizar como referência um caso recorrente em nossa sociedade, que é o do combate diuturno ao tráfico de drogas. O enfrentamento de grupos criminosos nas favelas cariocas aumenta a sensação de insegurança de nossa sociedade, sem, contudo abalar os pilares do crime organizado. Os EUA lideram uma campanha ao combate de drogas nos cartéis colombianos. Todavia, não são tão impetuosos no comércio de venda de armas. São essas incongruências que nos circundam. Como construir estratégias para essas questões, se não controlamos os insumos de tais processos. O sentimento que advém desta análise é o de impotência, mas o autor nos incentiva a continuar visionando um mundo melhor. Precisamos perseguir a utopia.
Resenhista
Márcio Pereira Basílio – Mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas – FGV e Oficial Superior da Polícia Militar do Rio de Janeiro. E-mail: marciopbasilio@terra.com.br
Referências desta Resenha
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. Resenha de: BASÍLIO, Márcio Pereira. Meridiano 47, v.9, n.91, p.21-24, fev. 2008. Acessar publicação original [DR]