Um livro que me causou um sentimento de coletividade: todas as mulheres precisavam ler, o pequeno, mas denso, objeto dessa resenha. E todos os homens também o deveriam fazer. Sei que uma utopia faz parte dessas afirmações, mas o que esperamos senão uma realização utópica de nossas relações?
Ana Maria Colling escreveu, com base teórica foucaultiana, uma história da construção do corpo feminino, os discursos e verdades que subjetivaram o feminino que conhecemos e vivenciamos em nossa sociedade ocidental.
Na introdução, a autora esclarece como a história das mulheres abriu caminho na história construída, tradicionalmente pelos homens, e como, a mulher foi ignorada por muito tempo como objeto histórico. Em termos da realização de sua escrita, referencia o diálogo entre as fontes e as bases teóricas, principalmente usando conceitos de Michel Foucault, que apesar de não específicos para as questões de gênero, importantíssimos na demonstração que “o corpo feminino não foi simplesmente uma construção histórica (ou exclusivamente), mas filosófica, médica, pedagógica, psicológica, jurídica” (COLLING, 2014, p. 16).
A leitura é agradável, recomendável ao público em geral. Não é uma obra somente para os pares da academia, e isso me alegra enquanto historiadora, porque o nosso desafio é sair das masmorras do rigor acadêmico, para que a história encontre finalidades múltiplas em leitores interessados.
Colling criou uma ponte unindo o processo histórico das mulheres com a historiografia das mulheres, juntamente com a construção das representações pelas mulheres, como se saindo da dominação masculina, a história e seu feitio estivessem, finalmente, nas mãos das próprias mulheres.
No primeiro capítulo, a autora fez um passeio sobre sua própria intelectualidade, tecendo o pano de fundo de seu interesse pelo assunto, o que faz parte da intriga que ela quer explicar na sua escrita, no ofício de historiadora. Ela também justificou o uso dos conceitos e método de Michel Foucault em sua pesquisa: as relações de poder, as subjetividades, os discursos, as alteridades, os corpos, as desconstruções; enfim, as ideias com as quais Foucault sempre nos convoca para uma historiografia dinâmica, de rupturas e liberdade.
No segundo capítulo, o pano tecido é o da própria história, a genealogia do que é o corpo feminino no mundo ocidental. A autora cruza as fontes com a teoria, construindo assim, uma explicação bastante clara sobre o surgimento de um discurso grego que, reproduzido pela filosofia, estruturado pela religião, justificado pela medicina, apropriado pela psiquiatria, e reafirmado pela psicanálise, foi ao longo do tempo construindo a inferioridade feminina, correspondendo diretamente às demandas da dominação masculina.
Os discursos, muitas vezes distantes temporalmente, mas que fecham “os elos da corrente da normatização sobre o que é e para quê serve uma mulher” (COLLING, 2014, p. 99). A construção do corpo feminino, o peso do útero nas nossas entranhas, o lugar social designado como de fraqueza, consoladas por títulos de “rainha” ou “anjo” do lar, a que fomos sujeitadas por séculos, e nossa descoberta que o poder também está em nós, e que nossas relações podem ser de acordo com o que escolhemos, foi o que me encantou em Tempos diferentes, discursos iguais.
Colling concluiu com questões sobre as verdades construídas sobre o feminino, e o que podemos fazer a partir desse conhecimento:
Se historicamente o feminino é entendido como subalterno e analisado fora da história, porque sua presença não é registrada, libertar a história é falar de homens e mulheres numa relação igualitária, é resgatar a dívida com a memória. Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que esteve presente, mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos. (COLLING, 2014, p. 107- 108)
Assim, a reflexão sobre essas 114 páginas, só poderia me levar à utopia do desejo que fossem lidas por mulheres e homens, para que entendidas as subjetividades pudéssemos pensar em outras possibilidades de relações de poder, onde cada um possa ser objeto da história, sendo o sujeito nossa prioridade.
Resenhista
Lenita Maria Rodrigues Calado – Doutoranda em História – UFGD. Bolsista CAPES. E-mail: lenitamaria@bol.com.br
Referências desta Resenha
COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história. Dourados, MS: Editora UFGD, 2014. Resenha de: CALADO, Lenita Maria Rodrigues. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.9, n. 18, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]
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