“Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos” | Jean Wyllys
Não é novidade iniciar esse texto falando do momento assombroso pelo qual atravessamos, no Brasil e no mundo, onde a democracia representativa aparece em plena derrocada e as noções de Direitos Humanos, universais e fundamentais, presenciam uma verdadeira guerra de narrativas. Época onde a humanidade parece mais uma locomotiva desgovernada que se dirige rapidamente a um futuro que, de tão incerto, amedronta qualquer um que se proponha a pensar nas lições advindas da própria história, presenciamos o florescimento de espaços fugindo à regra. O mandato de Jean Wyllys, Deputado Federal pelo Psol do Rio de Janeiro, é um destes espaços.
Autor de “Tempo bom, tempo ruim: Identidades, políticas e afetos”, publicado em 2014 pela editora Paralela, Jean Wyllys de Matos Santos parece um sujeito que teima em nadar contra a correnteza. Seu livro é um relato da sua trajetória, construída sobre pilares sólidos, fincados no sertão da Bahia, onde a fome foi uma experiência real de inúmeras famílias, incluindo-se a sua. Composto de quarenta e dois textos, a obra se divide em “tempos de vida” e “tempos de luta”, não para marcar espaços distintos, mas sim para apresentar os entrecruzamentos de ambos. Logo no início, Jean afirma que sua vida foi uma luta cuja primeira batalha foi travada com a desnutrição.
A formação política de Jean Wyllys, conforme apresentada no livro, começou com a relação estabelecida com a Igreja Católica ligada às ideias de esquerda no final da Ditadura Civil-Militar. A Teologia da Libertação que se apresentava nas Comunidades Eclesiais de Base nos rincões do Brasil foi o primeiro contato que o autor teve com o marxismo, que definiu as afinidades orientadoras de uma trajetória que construiu segundo Jean, um “animal político”.
Mais tarde, já na universidade, se aproximou dos movimentos de defesa dos Direitos Humanos, como o Grupo Gay da Bahia e o Movimento Negro. O cabedal erudito vasto foi construído ao longo de sua vida por meio dos espaços que ocupou, inclusive na academia. Formou-se em Jornalismo e fez Mestrado na área de Estudos Culturais em Literatura, quando se dedicou a compreender os discursos acerca do Complexo Penitenciário do Carandiru. Depois de se mudar para o Rio de Janeiro, ingressou no Doutorado em Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
“Tempo bom, tempo ruim” trata de assuntos diversos, complexos e muitas vezes rechaçados por uma cortina de fumaça representada pelos preconceitos que alguns temas enfrentam. Do “ventre da mãe” à “vida com pensamento”, passando por temas como religiosidade e sincretismo, questões de gênero, sexualidade, homofobia, casamento civil-igualitário, regulamentação das drogas e do trabalho sexual de homens e mulheres, aborto, cura gay, entre outros tantos, fica clara a busca por se fazer entender, que poderíamos encarar como a função pedagógica de um intelectual que se propõe a enfrentar, quase sempre solitário, a difícil batalha dos nossos tempos: afirmar que os seres humanos, sem distinção, são depositários de direitos, que devem ser assegurados para a construção de um mundo com menos violências.
Um dos mais longos capítulos da obra se intitula “O retorno do fascismo”. Para Jean Wyllys, há um apelo ao avanço de ideias e ações autoritárias e violentas, que devem ser caracterizadas como fascistas. Relembra que a Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988, rechaçou o fascismo típico da Ditadura Civil-Militar e apresentou ao país uma expansão da cidadania jamais experimentada no Brasil. Uma das primeiras e mais fundamentais armas do fascismo contemporâneo, segundo o autor, é a internet, onde o anonimato deu segurança para que fascistas lançassem mão de palavras de ordem calcadas em um ódio por muito tempo suprimido, sobretudo nos governos do Partido dos Trabalhadores, quando as classes baixas experimentaram uma “cidadania de consumo”.
Jean relembra ainda que as primeiras ressonâncias desse retorno do fascismo estiveram presentes nas manifestações de junho de 2013, quando o país estourou em protestos de massa. Entretanto, com maior evidência, esse fascismo se expressa em duas situações extremamente preocupantes. A primeira delas diz respeito à reação violenta com que a classe média alta enfrentou um fenômeno cultural e histórico protagonizado por jovens periféricos da cidade de São Paulo. Trata-se do rolezinho, movimento que pegou de surpresa os habituais frequentadores dos shoppings paulistanos. Salutar relembrar que o movimento foi violentamente reprimido pela polícia e pela segurança dos estabelecimentos, criando regras análogas às políticas de segregação racial, tais como o impedimento do acesso aos sujeitos cujos estereótipos remetessem à juventude periférica: negros, portadores de uma linguagem própria, vestidos com roupas específicas.
Para Jean Wyllys, o fato se agrava quando uma revista de circulação nacional publica matérias marcando posição frente ao acontecido, onde um dos colunistas afirma que “independentemente de participarem de rolezinhos ou não, todas as pessoas com as características físicas dos que participam da ação também são perigosos e, por isso, devem ser policiados”. Essas expressões do racismo e do elitismo brasileiro são, para Jean, atitudes onde se expressa o fascismo.
Interessante ainda notar a avaliação lúcida realizada por Jean Wyllys, segundo a qual o movimento rolezinho não tinha qualquer pretensão de criticar o sistema, mas sim, fazer parte dele. Num paralelo com o chamado funk ostentação, Jean afirma que, o que há, de fato, é um interesse em fazer parte daquilo que historicamente lhe é negado, recorrendo ao que Marx chamou de fetichismo da mercadoria. “E é esse desejo que parece espantar aqueles que, à direita do espectro político, defendem o privilégio e a exclusividade que o mesmo capitalismo lhes prometeu”.
A segunda situação que preocupa é que esse fascismo recalcado tomou conta também de parte da mídia brasileira e se expressa em comentários odiosos de âncoras de telejornais, como aconteceu em 2014. Jean aborda esse assunto relembrando o linchamento explicitamente defendido e incentivado por uma jornalista do SBT, segunda maior audiência no país. Na ocasião em que vários casos assombrosos de justiçamento foram registrados Brasil afora, a apresentadora lançou a campanha para os defensores dos Direitos Humanos: “faça um favor ao Brasil. Adote um bandido”. Jean reage a tal situação afirmando que a concepção de Direitos Humanos da apresentadora é restrita. “Os direitos à vida e à integridade física, bem como o direito a um julgamento justo, não podem ser entendidos como privilégios de gente branca que mora em bairros privilegiados e tem renda para consumir. Esses direitos são também daquele adolescente espancado e atado ao poste!”
Desse modo, a pergunta exposta como epígrafe do capítulo, “pois a questãochave é: sob que máscara retornará o recalcado?” de autoria do poeta marginal Waly Salomão, parece começar a ser respondida quando o autor se debruça sobre estes casos de violência explícita, além dos discursos de ódio confundidos com liberdade de expressão, cujos objetos são, via de regra, os negros, periféricos, as mulheres, a comunidade LGBT, a esquerda brasileira.
O papel da escolarização na sua constituição como sujeito é destacado em vários momentos do texto. Um deles se dá no capítulo “Contra o fundamentalismo”, onde o autor narra um pouco como a educação escolar lhe foi essencial para pensar o papel da Igreja Católica na sua vida. Jean destaca que seu gosto pelos estudos e a boa educação formal lhe impediram de ser um fundamentalista. Nesse trecho do livro, o autor destaca a seletividade com que os fundamentalistas religiosos se valem para criticar e se opor à garantia dos direitos às pessoas LGBTs, na medida em que se utilizam de trechos bíblicos para atacar, mas negligenciam aqueles que poderiam ser interpretados como opostos às suas práticas, lhes comprometendo.
Sem estar disposto a ceder espaço para que esses fundamentalistas avancem em seus projetos limitadores da cidadania à comunidade LGBT, Jean Wyllys marca lugar na disputa, afirmando que “a conquista da cidadania plena e a afirmação do Estado laico e democrático de direito passam pelo enfrentamento aberto e pelo desmascaramento do proselitismo fundamentalista de reacionários”.
É ainda interessante perceber como Jean Wyllys compreende o lugar que as mídias ocupam na expansão da cidadania no Brasil. Para ele, as esquerdas políticas erram ao buscar demonizar a Rede Globo, por exemplo, na medida em que perde um espaço de poder que deve ser ocupado também por sujeitos que se proponham a repensar o estado de coisas no qual o Brasil mergulha dia após dia. As novelas, segundo ele, merecem a nossa atenção e devem ser pensadas não apenas como abstração, mas como um espaço que também pode educar, e, no que tange à representação, sobretudo LGBT, merece muito ser valorizada. Em que pesem os equívocos e os reforços de estereótipos expostos em várias novelas da Rede Globo, Jean considera que há avanços que merecem ser aplaudidos. Autores como Agnaldo Silva e Gilberto Braga, que sempre buscam construir personagens homossexuais em suas tramas o fazem, para Jean, de maneira salutar.
Os vários assuntos abordados por Jean Wyllys em “Tempo bom, tempo ruim” não serão possíveis de se expressar em uma pequena resenha como esta. Sua contribuição para a compreensão de questões importantes merece ser ressaltada, bem como sua atuação como Deputado Federal, que não abre mão da honestidade intelectual. Sua trajetória como ativista dos Direitos Humanos foi marcada pelas idas e vindas do tempo, que lhe forçou a se “armar em palavras” para se engajar nas batalhas cotidianamente reforçadas pelo lado contrário ao que nos colocamos.
Jean foi eleito em 2015 o melhor Deputado Federal do Brasil pelo Prêmio Congresso em Foco, pelo terceiro ano consecutivo. Nesse mesmo ano a revista The Economist o listou como uma das cinquenta personalidades promotoras dos direitos da diversidade no mundo. Além inúmeras outras referências e títulos que reconhecem Jean como um defensor dos Direitos Humanos, o jornal britânico The Guardian o elegeu como Herói LGBT em 2017.
As referências de Jean Wyllys são as mais notórias possíveis. Seu texto perpassa citações desde a poesia de Fernando Pessoa, passando por João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado (a quem dedica um capítulo), Waly Salomão, até Batriz Sarlo, Michel Foucault, Hannah Arendt; da música de Michael Jackson a Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethania, Lulu Santos, são referências que só poderiam fazer de Jean Wyllys, um sujeito com uma sensibilidade que atravessa sua atuação como político e intelectual. No peito, carrega tatuado o espectro que assombrou sua família e marcou sua vida, norteando também suas práticas de atuação até aqui: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.
Por fim, seu livro merece ser lido como um manifesto pelos direitos inalienáveis, pela expansão da cidadania e pela recuperação da democracia. Mais do que nunca, Jean Wyllys deve ser visto no contexto de ódio que nos assola, como um sujeito imprescindível àqueles que defendem que a vida merece ser apreciada de forma plena e sem distinção de gênero ou cor da pele, de sexualidade ou de classe social.
Resenhista
Carlos Alexandre da Silva Souza – E-mail: carlosalexandreufmt@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
WYLLYS, Jean. “Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos”. São Paulo: Paralela, 2014. Resenha de: SOUZA, Carlos Alexandre da Silva. “Gente é pra brilhar” em qualquer tempo: Jean Wyllys no campo de batalha da contemporaneidade. Outras Fronteiras. Cuiabá, v.4, n. 1, p. 241- 245, jan./jul. 2017. Acessar publicação original [DR]