Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos | Jean Wyllys
Em entrevista a Antônio Abujamra em 2013, o Deputado Federal pelo PSOL – Partido Solcialismo e Liberdade – do Rio de Janeiro, Jean Wyllys, afirmou que sua ida para o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo em 2005 foi resultado das leituras que fez sobre as ideias do italiano Antonio Gramsci, acerca do posicionamento estratégico dentro do sistema: “mudar de dentro”. Importa afirmar que Gramsci foi um combatente contra o avanço do fascismo na Europa da primeira metade do século XX e elaborou uma espécie de manual sobre como o enfrentamento das questões e contradições da sociedade capitalista podem ser encaradas. Ao sujeito que se coloca na luta (ou na militância) dentro de um partido político ou outra instituição de cunho engajado, deu o nome de intelectual orgânico. Mal poderia imaginar o grande filósofo que, décadas depois de tombar na batalha, o fascismo ainda seria o inimigo a ser vencido.
Jean Wyllys de Matos Santos, baiano de Alagoinhas, é, talvez, o personagem brasileiro contemporâneo mais objetivado pelo ódio na internet. Digo “talvez” pelo fato de não deter dados estatísticos sobre quem são as pessoas mais odiadas atualmente nas redes sociais e por acreditar que, os concorrentes deste posto também são a presidenta Dilma Rousseff, o expresidente Lula, além de outros personagens que, de uma maneira ou de outra, vinculam-se ao campo político da esquerda brasileira. Poderia demorar-me por horas na tentativa de apontar os responsáveis pela construção, sustentação e difusão desse ódio, mas me limitarei. Historicamente, é sabido, as questões que tocam em pontos sensíveis e que buscam retirar as pessoas de um lugar calcado no senso comum e na segurança dos seus preconceitos (muitas vezes involuntários) atingem os ânimos de forma que a reação sempre vem acompanhada de um espanto, uma perplexidade e, invariavelmente, de violência, às vezes simbólica, outras, física.
Se a presidenta Dilma foi causadora do desastre apontado por especialistas da economia de mercado que levou o país a uma recessão (e existem várias análises que a isentam de culpa, atribuindo-a à crise econômica internacional), não se pode apagar, nem explicar ou muito menos justificar as agressões a que foi submetida pela sua simples existência. Resumidamente, o fato é que Dilma é mulher! Reside aí a disputa com Jean Wyllys de personagem mais odiado na internet brasileira: este é o primeiro Deputado Federal assumidamente homossexual que tomou para si, literal e simbolicamente, a bandeira colorida da luta pelos direitos de toda uma imensa comunidade sintetizada nas letras LGBT.
O livro que publicou em 2014 pela Editora Paralela é o reflexo das subjetividades que o constituem. O título, Tempo bom, tempo ruim, é parte da letra de Iansã, música composta por Gilberto Gil e interpretada brilhantemente por Maria Bethânia e Rita Benneditto. A relação de Jean com a religiosidade afro-brasileira aparece em diversos momentos no livro, como a saudação à orixá (Eparrei Oiá!). Emerge, na obra, a influência do sincretismo religioso tão característico da formação daquilo que comumente chamamos de cultura brasileira, mas que tem no estado da Bahia sua maior ilustração. “Que me perdoem, mas Santa Bárbara é Iansã sim!”, diz o autor. O texto que constrói neste livro se faz às voltas com sua biografia, da qual é impossível negligenciar os modos pelos quais a política (no sentido mais amplo possível do conceito) atravessa sua existência.
Os quarenta e dois textos da obra estão separados em duas partes: a primeira, Tempos de vida; a segunda, Tempos de luta. Marcadamente inspirado em autores que vão da filosofia moderna, passando pela literatura brasileira e estrangeira; de Hanna Arendt, quando inicia o livro falando das opções que a vida lhe ofereceu, a Michel Foucault, sobre as relações produzidas por meio dos desejos e afetos, Wyllys aborda temas nem sempre de fácil compreensão.
Comprometido do início ao fim do texto com a questão dos Direitos Humanos, ainda entendidos por ele como aqueles inalienáveis, o autor passa por questões como identidade de gênero e orientação sexual- buscando ao máximo se fazer entender; racismo, homofobia, transfobia e a necessidade de se debater e instituir a lei que tipifica, nos mesmos moldes do crime de injúria racial, estas violências; casamento civil igualitário, regulamentação trabalhista das atividades das/dos profissionais do sexo, cura gay, legalização e regulamentação das drogas, esquerdas; Stonewall e o legado das lutas da comunidade LGBT dos anos 1960 e 1970 aparecem no livro como a inspiração que baseia seu utopismo em relação ao futuro. Para Jean Wyllys, “comemorar o levante de Stonewall nas paradas LGBT em todo o mundo é mais do que constituir uma „mitologia‟ para os homossexuais: é reafirmar as conquistas políticas e culturais [daquela] geração”.
Todas essas questões, além de outras também expostas no livro, fazem parte de um arcabouço bastante erudito construído ao longo da formação do autor como membro das Comunidades Eclesiais de Base, da Pastoral da Juventude Estudantil, do contato com a Teologia da Libertação, da faculdade de jornalismo da Universidade Federal da Bahia; sua constituição vem também da sua formação como linguista, professor universitário, doutorando, ex-BBB, Deputado Federal, militante de esquerda, “animal político”, como ele mesmo se denomina em um dos textos.
Os temas, como reforma política, são abordados de maneira clara, objetivamente na tentativa de ser compreendido. Para Wyllys, o atual sistema eleitoral brasileiro, organizado da maneira que, para ele, beneficia os currais eleitorais e abre espaços para a predominância do capital utilizado em campanhas sobre os debates políticos que precisam, de fato, ser feitos.
Um dos capítulos de maior extensão no livro chama-se “O retorno do fascismo”. Tema bastante atual e, como dito no início desta resenha, as inspirações gramscianas perpassam a escrita. Usando do movimento que ficou sendo chamado de rolezinho, quando alguns adolescentes e jovens das periferias de São Paulo passaram a frequentar, em grupos organizados, os shopping-centers cuja clientela, via de regra, era sempre de classe abastada. Para Jean, as respostas que deram a esse movimento são, na sua raiz, fascistas. O fato dos meios de comunicação, tais como a Revista Veja, publicar abertamente a repulsa aos jovens pobres, serve para endossar e instigar os raivosos preconceitos que caracterizam a velha e prepotente classe média brasileira.
Os linchamentos de pobres e negros, a suposta “justiça com as próprias mãos” justificada pelo discurso da falha do Estado na organização da segurança pública, fazem parte substancial desse retorno do fascismo aos cotidianos. Na defesa da necessidade de se reafirmar que os direitos humanos são para todos, Jean afirma que “os direitos à vida e à integridade física, bem como o direito à defesa num julgamento justo, não podem ser entendidos como privilégio de gente branca que mora em bairros privilegiados e tem renda para consumir”. Esses direitos, como já afirmado aqui, devem ser entendidos como inalienáveis; devemos, portanto, recuperar sua matriz, pois, como Brecht brilhantemente afirmou, “devemos ainda defender o óbvio!”
Ademais, penso que o lugar que Jean Wyllys ocupa no Brasil atual é o da sua missão neste planeta. Com um sentimento de gratidão a toda forma de sagrado, afirmo que sua existência neste tempo é um ato de resistência do qual aqueles que defendem o direito à liberdade, à vida e ao culto ao conhecimento e à sabedoria são privilegiados.
Aos leitores, fica a sugestão de leitura. Aos comprometidos com a pauta dos direitos humanos nas suas mais diferentes versões, o afago e o respeito a um representante que não se nega à reflexão e o saber-se incompleto, mas jamais despreparado.
Resenhista
Carlos Alexandre da Silva Souza – Mestrando em História Universidade Federal do Mato Grosso. E-mail: carlosalexandreufmt@yahoo.com.br
Referências desta resenha
WYLLYS, Jean. “Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos”. São Paulo: Paralela, 2014. Resenha de: SOUZA, Carlos Alexandre da Silva. Animal político com fé no que virá”: Jean Wyllys nos tempos bons e ruins. Temporalidades. Belo Horizonte, v.8, n.3, p.480-483, set./dez. 2016. [DR]