No próximo ano se completarão trinta anos da inserção do artigo art. 68 na Constituição (designação que prevê “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”). Nesse interim, um “campesinato negro” acossado por uma série de atores hegemônicos ligados ao capital se apropriou dessa “benesse” jurídica e a agenciou para defender seus territórios. Se antes de 1888, onde alcançou o sistema escravista no Brasil, formaram-se quilombos e mocambos em contraparte. Nos dias atuais, onde o voraz agronegócio – e seus congêneres: mineração, especulação imobiliária, grilagem, barragens hidrelétricas etc. – chegam, (re)nascem quilombos. Camponeses negros resistem e protagonizam ações contra esses grupos que tentam usurpar seus territórios. Não por acaso, em praticamente todas as partes do Brasil existem quilombos, algo que chega a cifra de cinco mil comunidades espalhados por todas as regiões. Estes grupos, mediante os princípios jurídicos do art. 68, “ressemantizam” a seu favor o sentido de quilombo na atualidade. E se existe algo que marca a luta dessas comunidades desde a vigência do referido artigo de lei, é a diversidade de estratégias de enfrentamento, efeito dos inúmeros contextos de interpelação territorial com os quais se deparam.
A obra “Tem que partir daqui, é da gente”: a construção de uma escola “outra” no Quilombo do Campinho da Independência, Paraty-Rj, de autoria de Ediléia Carvalho, apresenta um desses contextos que envolvem a defesa do território. Contudo, diferente da maioria dos trabalhos sobre quilombo que focam especificamente nas estratégias dessas comunidades pela defesa ou manutenção de suas terras, a autora se centra na luta do Quilombo do Campinho por uma “educação diferenciada”. Como é destacado, “o contexto de luta do Quilombo do Campinho por uma educação diferenciada não se encontra à parte da luta pelo território, pelo contrário, para as populações tradicionais, falar de território é falar de educação e vice-versa” (p.145)
O livro, assim, trata da saga do Quilombo do Campinho para que seja implementado na Escola Municipal Campinho da Independência, que se encontra situada em seu território, uma educação que dialogue com a realidade da comunidade. Isso muito em razão da aplicação na escola de um currículo descontextualizado que, longe de proporcionar uma interação com contexto local, executa um plano centrado na perspectiva do urbano e reproduz valores eurocêntricos e brancos. De acordo com depoimentos de algumas lideranças quilombolas relatados no livro, esse modo de conceber a educação e desenvolvê-la no espaço escolar aliena as crianças a respeito da cultura quilombola, ao desqualificá-la direta ou indireta, e enfraquece os laços comunitários e de pertencimento ao território.
Por trás dessa queixa da comunidade está também a percepção, na prática, de que a apropriação do território não se limita a uma simples posse física e do controle das fronteiras (tendo em vista que o Quilombo do Campinho é uma comunidade titulada desde o ano de 1999). Os aspectos simbólicos do território também definem os processos de territorialidade. As lideranças quilombolas lutam pela escola, pois sabem que a detenção e a manutenção do território dependem da reprodução e difusão de representações que estejam em consonância com as particularidades culturais, modo de vida, usos do solo, relação com a natureza etc. da própria comunidade. Assim, a escola e o tipo de educação reproduzida em seu interior se tornam componentes estratégicos para a manutenção (ou para o colapso) do território.
A obra “Tem que partir daqui, é da gente” está estruturada em uma introdução seguida de seis capítulos. Respectivamente, os títulos dessas partes, são: primeiro capítulo – “O caminho metodológico percorrido”; segundo – “Comunidades remanescentes de quilombo: sujeitos históricos, políticos e jurídicos”; terceiro – “Quilombo do Campinho da Independência: o protagonismo e a resistência de uma comunidade negra e rural”; quarto – “Campinho da Independência e o movimento de luta por uma educação diferenciada”; quinto – “Escola Municipal Campinho da Independência: no ou do Quilombo?”; e, a conclusão – “Educação Escolar Quilombola: o anúncio de uma modalidade decolonial de educação?”
Na introdução, Carvalho deixa nítido seu posicionamento no que se refere ao tema abordado. À medida que realiza a apresentação acerca da construção do “objeto”, expõe as questões centrais e os objetivos de sua pesquisa. Desde o início da discussão proposta, a autora toma para si a responsabilidade de correr os mesmos riscos que seus “informantes”, a partir do momento em que, mesmo expostos às vulnerabilidades ocasionadas por esse embate, decidem manter suas críticas frente às disputas ocorridas em torno da escola e na luta por uma educação capaz de dialogar com o cotidiano do Quilombo.
A despeito das tensões políticas, a narrativa se dá de forma bastante terna. Carvalho, conta sobre sua chegada, ainda como estudante de graduação, ao Quilombo do Campinho. Como as “viagens” não se limitam somente a deslocamentos físicos, mas também, a deslocamentos daquilo que é subjetivo, as “viagens ao Quilombo” são repletas de aprendizados e transformações, algo que culmina em profundos desdobramentos teóricos para pesquisadora. Carvalho parece ultrapassar os velhos limites da relação sujeito-objeto desta maneira. Seus posicionamentos políticos e ética acadêmica frente a comunidade tem ressonâncias afetivas. Foi acolhida e levada a lugares da comunidade que poucos forasteiros chegaram. O campo parece mudar de sentido para a autora no decorrer da pesquisa. Quando não, torna-se casa.
No Capítulo I, é apresentado o caminho metodológico percorrido na realização da pesquisa. É realizada um levantamento e revisão bibliográfica apurada da produção acadêmica sobre quilombo e educação. Foram consultados para tal levantamento os bancos de teses, dissertações e periódicos qualificados da Capes. É evidenciado um descompasso entre essas esferas de produção acadêmica, pois, “o processo de busca aponta (…) para um número pouco significativo de publicações, principalmente nas revistas Quali A1, A2, B1 e B2, se comparado à quantidade de teses e dissertações defendidas acerca do tema” (p.44). Isso demonstra a não absorção dessa temática pelo mainstream acadêmico no Brasil.
Como é demonstrado no tópico “território quilombola e seus processos educativos” deste capítulo, para além da existência de processos educativos específicos nos próprios quilombos, a discussões sobre a temática “educação” são antigas no movimento quilombola, presente como pauta em encontros nacionais desde 1990. A educação escolar em comunidades quilombolas é compreendida pelo movimento como estratégico e um campo em disputa, pois, a educação institucional que chega aos quilombos é tão predatória quanto a investida de grileiros, sendo necessário a sua reorientação.
No Capítulo II, a autora apresenta o debate acerca da ideia de quilombo no Brasil, um panorama que se inicia desde as “ressemantizações” do conceito a partir do art. 68 na Constituição, passa pela nota técnica da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) sobre essas comunidades e as certificações da Fundação Cultural Palmares. Com isso é dado sentido a ideia de que “não é possível tratar de quilombos sem adjetiválos” (p. 69). Isto é, ao se analisar uma comunidade quilombola é necessário, via de regra, estabelecer uma contextualização temporal, espacial e cultural desta. Para justificar tal assertiva, outra comunidade é posta em questão: o Quilombo de Santa Rita do Bracuí (Angra dos Reis – RJ). Apesar da proximidade espacial entre o “Quilombo do Bracuí” e o “Quilombo do Campinho”, ambos são interpelados por forças e problemas distintos, o que lhes obriga a estabelecer estratégias diferentes de defesa do território. É nesse sentido que, também, a luta pelo território corre lado a lado à luta pela educação, uma vez que, cada “território possui e produz sua própria pedagogia, seus saberes e conhecimentos” (p.89).
No Capítulo III, Carvalho realiza uma análise do laudo antropológico elaborado sobre o Quilombo do Campinho. A partir de uma contextualização fundamentada neste documento, são ressaltadas as especificidades da comunidade. Como se nota, ainda que tenha ocorrido a titulação da terra por força do laudo, fica patente que a resistência em defesa do território é um processo contínuo. Também nessa seção são apresentados os “locais de aprendizagem e de transmissão de saberes” (p.127) importantes para a política e memória do Quilombo (a Igreja, a Associação de Moradores do Campinho, a Escola, a Casa de Artesanato, a Casa de Farinha etc.), e as principais atividades desenvolvidas (produção de farinha, roça, jongo, artesanato, capoeira etc.). Uma vez que essas atividades são importantes para a existência e subsistência da comunidade, ficam expressos os anseios de que esses “locais de aprendizagem” e “atividades” se articulem à escola.
No Capítulo IV fica expressa a perspectiva da autora de que “a luta por uma educação diferenciada não se encontra à parte da luta pelo território” (p.145). São evocados, assim, os processos e sujeitos desse embate pelo território. Vale destacar como ponto interessante neste capítulo, as discussões sobre as redes de migração quilombola rural-urbano, algo que se constituiu mediante deslocamento de integrantes da comunidade para cidades em busca de melhores condições. A mobilização feita para o retorno dessas pessoas ao quilombo serviu para reforçar a luta pelo território e a constituição de uma comunidade autônoma economicamente. Diante disso, é apresentada a trajetória da quilombola Laura Maria dos Santos como paradigmática para a compreensão das recentes migrações, da formação territorial do quilombo e das ações para a autonomia econômica. Carvalho, assim, desconstrói tanto a noção de isolamento, quanto a de que as experiências quilombolas se reduzem a um espaço-tempo estática. Mediante isso, são apresentadas as bases e referências da educação quilombola no Campinho; um conhecimento centrado na educação popular e composto de acordo com projetos desenvolvidos pelos grupos da comunidade.
Adiante, no Capítulo V, frente às tensões e problemáticas emergidas entre Escola e o Quilombo do Campinho, a autora caracteriza a política espacial em volta desse conflito com a pergunta: “[há uma] escola “no” ou “do” quilombo?” (p.185). Essa questão é colocada, justamente, para que haja uma reflexão sobre o deslocamento simbólico da escola, pois, apesar de estar localizada “no” interior do território quilombola, pouco dialoga com a cultura, modo de vida e política ali existente. É difundido a partir da escola um discurso supostamente universal que, na realidade, é centrado em aspectos e características fundamentados em um currículo institucional e homogeneizador. Do mesmo modo, ao montar uma justificativa que articula teoria, contexto, legislação e luta comunitária, é salientada a necessidade de produzir uma escola “do” território que esteja organicamente conectada à vida no quilombo. A escola, como um centro de embates, é compreendida como campo em disputa e um instrumento de luta identitária, epistemológica e territorial – desde que, referenciada em uma “educação quilombola”.
No Capítulo VI, a conclusão, é vislumbrado nas lutas do Quilombo do Campinho por uma educação diferenciada a gestação de uma “modalidade decolonial de educação” (p. 213). Há a conformação de uma educação que se reafirma a partir do território, da cultura e do modo de vida quilombola, o que apresenta, para além das perspectivas hegemônicas, outros horizontes pedagógicos, epistêmicos e antropológicos.
Por fim, a obra “Tem que partir daqui, é da gente”, de Ediléia Carvalho, é uma contribuição para os estudos educacionais, principalmente no diálogo junto a Geografia. Indo além dos estudos sobre currículo, metodologias de ensino, transposição de conteúdo etc., é nos apresentado um horizonte profícuo no que toca às possibilidades de se estabelecer uma “geografia da educação” que seja capaz de compreender o espaço escolar e suas dimensões políticas.
Resenhista
Diogo Marçal Cirqueira – Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor no Instituto de Educação da UFF, Campus de Angra dos Reis/RJ. E-mail: diogomc@id.uff.br
Referências desta Resenha
CARVALHO, Ediléia. “Tem que partir daqui, é da gente”: a construção de uma escola “outra” no Quilombo Campinho da Independência, Paraty-RJ. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2016. Resenha de: CIRQUEIRA, Diogo Marçal. Revista Brasileira de Educação em Geografia. Campinas, v. 8, n. 16, p. 411-416, jul./dez. 2018. Acessar publicação original
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