Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade | Carmem Schiavon, Adriana K. Senna e Rita de Cássia P. Silva
A população do arquipélago formado por nove ilhas e várias ilhotas de origem vulcânica foi batizada “açoriana” em reverência às aves da espécie falconídea (“açor”) que povoavam o lugar. Parte desses ilhéus que lá vivia imigrou para o extremo Sul do Brasil em meados do século XVIII, na esperança de conseguir melhores condições de vida e de alcançar um futuro próspero. O deslocamento para o Rio Grande de São Pedro configurou, desde o início, um grande desafio para aqueles que enfrentavam o percurso marítimo que os levaria às terras brasileiras. Ao longo das viagens, a carência de alimentos e a precariedade das condições de higiene fatalmente ocasionavam a emergência de enfermidades e mortes. O contingente que conseguiu sobreviver aos infortúnios da travessia teve um papel essencial na colonização e no desenvolvimento da região após 1752.
A partir desse enfoque, cada um dos autores do livro “Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade” investiga a historiografia rio-grandense e luso-açoriana, observando-as criticamente. Organizada por Carmem Schiavon, Adriana Senna e Rita de Cássia Portela, a obra apresenta os resultados de pesquisas sobre os aspectos da história e da cultura do Rio Grande 1, privilegiando as tradições açorianas que se enraizaram entre a população residente naquele lugarejo.
Luiz Henrique Torres lembra que a ocupação destas terras esteve diretamente articulada à manutenção do território sob o poder dos portugueses, pois a vila cresceu nas cercanias da Comandância do Presídio do Rio Grande de São Pedro, um centro militar e administrativo orientado pela diplomacia portuguesa. Segundo Torres, a presença da população açoriana garantiu o povoamento que se “difundiu e marcou a formação” de muitas “localidades do Rio Grande do Sul”, no período colonial (TORRES, 2011, p.11)2.
Moacyr Flores, embora não discorde da relevância atribuída por Torres à presença dos açorianos, propõe uma incursão na história portuguesa desde a dinastia de Borgonha, levanta os interesses que teriam orientado a manutenção do arquipélago de Açores, e por esta via, questiona a legitimidade dos estudos, cuja hipótese centra-se na existência de uma cultura açoriana “autônoma”. Do ponto de vista do autor, as tradições desses ilhéus são frutos do encontro entre culturas distintas e da apropriação de elementos simbólicos e ritualísticos da Península Ibérica, comum entre os “cristãos-novos que se refugiaram nas ilhas” (FLORES, 2011, p. 30). Este seria o caso da festa do Divino Espírito Santo, reverenciado em Portugal, nos Açores e também entre a população que se deslocou para o Sul do Brasil. Por esta razão, embasado nos argumentos de Paul Ricoeur3, o autor assinala que a construção da memória açoriana está relacionada às práticas culturais, cuja tradição e identidade remetem a uma memória que recria práticas de outras etnias (2011, p. 30).
Na sequência, o estudo de Anna Lucia D. M. de Azevedo, “Rio Grande: Portal de Entrada dos Açorianos no Continente do Rio de São Pedro” propicia a compreensão da hipótese de Flores, na medida em que analisa as origens étnicas dos ilhéus, entre os quais destaca os portugueses, os flamengos e os mouros. No entendimento de Azevedo, as populações residentes no Rio Grande, após a chegada dos açorianos teriam passado por um “processo de aculturação” (2011, p. 37), uma vez que estes influenciaram os modos de viver dos rio-grandenses em amplo espectro, na maneira de lidar com a terra, nos rituais religiosos, na pesca, no linguajar e na maneira de ser e agir.
A despeito das implicações teóricas que a utilização do conceito “aculturação” trouxe à interpretação de Azevedo, reconhecemos que o contato da população rio-grandense com os açorianos gerou interações entre fronteiras culturais distintas que produziram alterações na condução da vida religiosa local, nos ritos e nas festas daqueles que habitavam o lugarejo antes da chegada dos imigrantes. Na gastronomia, eles introduziram alimentos como o feijão, a carne de porco, torresmo, peixes, crustáceos, batata-doce, e na doçaria, em particular, agradaram o paladar com as massas sovadas, o pão de ló, o papo de anjo, o arroz doce, o doce de leite, as marmeladas, geleias, cremes, entre outras delícias. No artesanato, desenvolveram a tecelagem, os cobertores e tapetes de lã de ovelha. No vestuário, paulatinamente inseriram o uso de lenços simples e lisos na cabeça, xales de lã, chinelas, tamancos e chapéus de palha.
A urbanização e a arquitetura seguem “os moldes determinados pelas ordenações portuguesas de 1747” que, por sua vez, também orientaram a jurisprudência dos padrões das “das Ordenanças Filipinas” e do direito português, influenciado pelo “direito Romano, Canônico e Germânico” (AZEVEDO, 2011, p. 40). A dança, a música e o idioma foram incorporados pela população que já vivia no Rio Grande, e seus descendentes ainda hoje preservam muitos costumes que podem ser observados nas roupas, na alimentação, na confecção de determinados tipos de artesanato e em algumas festividades religiosas.
Sem problematizar a questão do hibridismo, Jane C. L. Borghetti em “Precedentes do Urbanismo e da Arquitetura do Rio Grande” aborda o contexto histórico no qual se deu a fundação da cidade do Rio Grande desde 1737; para tanto, retoma a história urbanística de Portugal, analisa sua relação com os projetos arquitetônicos erguidos na cidade e aponta transformações e permanências estéticas detectadas no decorrer do século XX.
Noutra linha de argumentação, Santa Inèze R. Soares busca a compreensão de aspectos genealógicos da obra de Luiz Antonio Alves, cujo memorial foi inaugurado em 2005. Régis A. M. Gomes investiga o papel de instituições como a “Casa dos Açores” e do “Conselho Mundial da Casas dos Açores” na difusão da cultura luso-açoriana, e conclui que elas protegem e defendem os interesses dos Açores e dos açorianos, divulga os valores dessa cultura, seus costumes e tradições (2011, p. 75).
Merece destaque a divulgação das pesquisas realizadas por Carmem G. B. Schiavon e Tiago F. dos Santos e por Nara Elisa Peres Vaz. Enquanto os primeiros constataram a riqueza do patrimônio cultural da Ilha dos Marinheiros e a importância do desenvolvimento de ações propositivas na esfera da Educação Patrimonial nas escolas locais; Peres Vaz ocupa-se da discussão sobre o desenvolvimento do “Projeto de Pedro Z3 – Construindo um Sonho com um Toque em Português”, cujo objetivo visa à sensibilização da população residente na colônia de Pescadores de São Pedro – área com significativo potencial turístico.
Schiavon e Santos ressaltam que Rio Grande é a cidade mais antiga do Estado, sua fundação data de 19 de fevereiro de 1737, pelo Brigadeiro de Infantaria José da Silva Paes; e assinalam que os luso-açorianos advinham da região das Beiras, do Douro, Trás-os-Montes, do Alentejo e do Minho. A Ilha dos Marinheiros, localizada ao Noroeste da área urbana do município de Rio Grande, segundo Schiavon e Santos é uma área propícia ao desenvolvimento de programas de Educação Patrimonial, pautados nos referenciais da História, nas metodologias da História Oral e no estudo das memórias, de modo a realçar os “laços identitários das comunidades”, bem como o “exercício da reflexão crítica acerca das problemáticas socioambientais” (2011, p. 81).
Nara Elisa Peres Vaz lembra a relevância das atividades desenvolvidas junto aos pescadores do Z-3, como “I Concurso de Arte nas Baterias” que incentivou a criatividade dos ilhéus e reafirmou o sentido de pertença entre o Z-3 e a Ria de Aveiro 4. Nesta oportunidade, cada um dos pescadores concorrentes ao prêmio “pintou coloridos adereços nos seus barcos, […] expressando de forma autodidata, temáticas populares e religiosas” (2011, p. 89). Por essa via, a estudiosa avalia a potencialidade turística local e reconhece que o desenvolvimento do projeto na Colônia de Z-3 alcançou seu maior objetivo, qual seja o da inclusão social. Ademais, conclui que a “valorização da cultura local foi um elemento expressivo, tanto na arte de lançar suas redes na água como de exteriorizar sua cultura através da arte em suas embarcações” (VAZ, 2011, p. 100). No decorrer do estudo, a autora apresentou diversas figuras da arte popular de Z-3, registros imagéticos de exposições e congressos realizados na colônia, fotografias das paisagens e de cultos religiosos, como a da Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes.
No último capítulo do livro, Marcelo M. Baptista retoma elementos “enraizados na vida e na alma do povo lusitano”, como as “festas religiosas, o variado artesanato, os trajes açorianos, a arquitetura colorida, os jogos e as brincadeiras, ditos e adágios populares, assim como os jogos de adivinhações, as parlendas (lengalenga), as lendas, as poesias populares, supertições, os sobrenomes, o amor à música e a dança, o falar cantado” (2011, p. 103).
O livro Sul do Sul entusiasma o leitor, à medida que lhe permite desfrutar de pesquisas acadêmicas sobre o meio e a população residente em Rio Grande, sem perder de vista as interfaces entre as memórias e as identidades, a preservação e a educação patrimonial. Desse modo, enquanto a Universidade Federal do Rio Grande deflagra uma nova fase de aproximação e de compromisso com aqueles que, de alguma forma, ainda estavam excluídos da investigação acadêmica; o livro ora analisado surpreende por não se restringir a abordagem da história regional, muito pelo contrário, o livro tende a observar criticamente as construções discursivas sobre as tradições culturais açorianas, evidenciando as relações entre o local e o global.
Notas
1. Essa coletânea de textos foi apresentada durante Seminário ocorrido na cidade do Rio Grande, em abril de 2010, no evento realizado por intermédio de uma parceria entre a Prefeitura Municipal do Rio Grande, a Casa dos Açores do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal do Rio Grande/RS, Brasil.
2. Todas as citações de autores, com excessão da nota e, faz parte do livro resenhado (nota do editor).
3. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
4. A Ria de Aveiro é um fenômeno decorrente do “recuo do mar” e da “formação de cordões, que convergem para formar uma laguna, que é ligada ao mar, pela Barra de São Jacinto. Rica em peixes e aves aquáticas, a Ria é especialmente conhecida pelos barcos moliceiros, cujos ingênuos e coloridos painéis decorativos, retratam através da arte naïf, a cultura do local” (VAZ, 2011, p. 88).
Resenhistas
Sandra C. A. Pelegrini – Professora do Programa de Pós-graduação em História da UEM, Maringá/PR, Brasil. Coordenadora do Museu Bacia do Paraná (MBP/UEM) e do Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural (Ceapac/UEM). E-mail: sandrapelegrini@yahoo.com.br
Gustavo Batista Gregio – Graduado em História pela UEM, Maringá/PR, Brasil. Pesquisador do Ceapac/UEM.
Referências desta Resenha
SCHIAVON, Carmem G. B.; SENNA, Adriana K.; SILVA, Rita de Cássia P. (Org.). Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade. Presença luso-açoriana em Rio Grande. Porto Alegre: EST Edições, 2011. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A.; GREGIO, Gustavo Batista. Patrimônios e bens culturais no Sul do Brasil. Diálogos. Maringá, v.16, n.3, p. 1295-1300, set./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]