Sublimação e unheimliche – PARENTE (Ph)

PARENTE, Alessandra. Sublimação e unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017. Resenha de: SILVEIRA, Léa. A mulher entre o ouro e a carne. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 2, p.-91-104, jul./dez., 2018.

Il crut que dans son corps elle avait um trésor.

La Fontaine

A questão das neuroses condensou-se para Freud, como sabemos, em torno de um problema específico de defesa psíquica que ele, a certa altura, nomeou Verdrängung (recalque) e que cedo o conduziu ao enfrentamento teórico do modo pelo qual tal defesa se relacionava à cultura: suas exigências, suas condições psíquicas, sua existência mesma. Por que motivos, afinal, um indivíduo vem a rejeitar aquilo que ele próprio deseja? Eis algo que Freud, por mais que tivesse se identificado com os valores burgueses da Viena finde-siècle, não tomou por dado. Nem sequer, a meu ver, por um dado de sua época. Pelo contrário, ele perseguiu tal problema a partir dos mais diversos ângulos e fez disso o pensamento de uma vida. É assim que, para mencionar apenas um exemplo, ao relatar o caso Dora, ele expressa seu pasmo muito exatamente diante de um não reconhecimento da sexualidade. E escreve, nesse sentido:

Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobre-tudo ou exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não. Explicar o mecanismo dessa inversão de afeto é uma das tarefas mais importantes – e, ao mesmo tempo, mais difíceis – da psicologia da neurose (FREUD, 1905[1901]/2016, p.201).

Decerto, com Dora e os “Kas”1 temos também o problema da cegueira (ou surdez) possível do analista, mobilizada já como problema clássico na história das ideias psicanalíticas relacionadas à transferência, uma vez que Freud teria falhado em perceber o endereçamento do desejo de Dora. Lacan (1952[1951]/1998) vê isso em uma peculiaridade do momento em que a moça parece rejeitar o Sr. K. Trata-se do momento em que Dora entende que o Sr. K. não tinha acesso ao gozo da Sra. K., ao gozo do corpo daquela mulher. Lacan explora, com isso, o vislumbre do final do relato do caso, que ocorre a Freud só-depois: quanto mais o tempo passava, mais Freud se convencia de que o erro técnico, a partir do qual Dora rompera bruscamente o tratamento, consistiu em não pontuar o investimento erótico homossexual da moça na Sra. K2. É certamente em função dessa cegueira que Freud atribui a Dora, na interpretação de seus sintomas, “correntes afetivas masculinas” (p. 245). Mas, em qualquer caso, isso não dissipa o fato de que a pergunta de Freud, aquela com a qual ele se espanta, é: não seria de se esperar que uma mulher, ao desejar, assumisse o seu desejo enquanto tal? Se isso não acontece, conclui, é preciso tomar o fato na condição de enigma, pois ele não pede menos do que isso.  Se a cultura representa um campo importante no sentido de fornecer motivações para a rejeição do desejo, uma reflexão sobre ela é, então, inescapável para Freud. Tal reflexão terá desdobramentos sem os quais dificilmente poderíamos ter alguma expectativa de fazer uma leitura de nosso próprio tempo. Ela não será, no entanto, de modo algum suficiente para se pensar o que é o recalque. Não é raro vermos o leitor que se restringe a O mal-estar na cultura desencaminhar-se nesse sentido. Mas o que eu gostaria de destacar, tendo em vista meu propósito nessa resenha, é o fato de que essa reflexão – necessária e, para Freud, insuficiente – é marcada, de uma maneira fundante, por uma ambiguidade. Para mim, quando se trata de dizer isso, há uma passagem que se destaca como nenhuma outra. Está em A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno, primeiro texto que Freud dedica diretamente ao problema do antagonismo entre cultura e indivíduo. Poder-se-ia defender que um dos movimentos importantes que têm lugar entre esse texto e o do Mal-estar… é aquele que corresponde a uma estruturalização de tal antagonismo. Lá, o adoecimento cobrado pela cultura é destacado sobretudo como algo que caracterizaria a Europa da transição do XIX para o XX; aqui, tornar-se-á correlato de todas as suas formas. De todo modo, é no texto de 1908 que lemos:

A experiência ensina que há, para a maioria das pessoas, um limite, além do qual sua constituição não pode acompanhar as exigências da civilização. Todas as que querem ser mais nobres do que sua constituição lhes permite sucumbem à neurose; elas estariam melhores se lhes fosse possível ser piores (FREUD, 1908/2015, p.373-4).

Isso se desenha assim para Freud especialmente porque a construção da cultura envolve um investimento de energia psíquica subtraído das perversões constitutivas do ser humano, sendo este um argumento que resultará na célebre formulação de que a neurose é o negativo da perversão.  Assim, apesar de por vezes Freud situar a arte como um caminho de reconciliação com os sacrifícios exigidos pela cultura3, qualquer estudo sobre o tema em sua teoria deve estar advertido de que sua reflexão sobre a estética não poderia deixar de reverberar essa ambiguidade. Se por um lado, o resultado do processo sublimatório consiste, diz Freud, em alcançar metas valorizadas socialmente, por outro lado o que ele mobiliza, como formação do inconsciente, é, de saída, potencialmente subversivo na medida em que aquilo que o caracteriza são as tendências de oposição à cultura. A sublimação corresponde a um destino pulsional que precisa trabalhar contra a pulsão; ou, dito de outro modo, corresponde a um trabalho da pulsão contra si mesma.

A ambiguidade que Freud enxerga, talvez a despeito de seu próprio desejo, na realização estética, na medida em que ela é também uma tensão constitutiva da cultura, é um problema que atravessa todo o livro Sublimação e Unheimliche, de Alessandra Parente. Assim, a autora escreve, na introdução, sobre o caráter paradoxal da sublimação: “[…] o conteúdo que emerge do inconsciente, servindo como matéria essencial para a criação, não pode mostrar sua natural face subversiva, a menos que seja amainada por ornamentos ou superfícies formais que reiteram o estado vigente das coisas” (PARENTE, 2017, p.38).  O livro toma para si a tarefa de explorar aspectos sociais e históricos presentes no período de elaboração da teoria freudiana, de modo que a autora pretende expor não apenas a maneira como Freud concebia a cultura, mas a maneira como concebia a forma assumida pela cultura na época em que viveu e que viu nascer a nova disciplina. Ela se compromete, então, com a investigação das implicações psíquicas, sociais e políticas de tais concepções. À luz dessa chave, a primeira parte do livro mostra o modo pelo qual o modelo político-cultural do Império Austro-Húngaro aparece no conceito de sublimação. A. Parente defende que aparece nesse conceito freudiano um patriarcalismo que não teria percebido seu próprio fim, fim este que teria sido gestado pela Reforma Protestante e pela Revolução Francesa. O término não elaborado dessa ordem patriarcal, cujo representante paradigmático teria sido Francisco José I, teria promovido como resultado o surgimento de um espírito melancólico.  No sentido psicanalítico, a melancolia, assim defende Freud, está relacionada a uma situação em que o Eu perde o objeto amado e não reconhece essa perda, introjetando o objeto e, consequentemente, deixando de fazer o trabalho de luto que se sucederia. Além disso, o não reconhecimento da perda seria disparado por uma culpa relacionada ao fato de o sujeito direcionar ao objeto um sentimento de ódio ou o desejo de matá-lo. Em virtude dessa ausência de reconhecimento, a hostilidade que se voltaria para o objeto inflete-se agora, na melancolia, para o próprio Eu que se regozija tanto com a manutenção do objeto quanto com sua própria punição. “A sombra do objeto caiu sobre o Eu” (FREUD, 1917/2011, p.61) foi a bela formulação que Freud encontrou, em Luto e melancolia, para esse estado de coisas. Do ponto de vista econômico (no sentido da metapsicologia), isso corresponde a uma inflação do Eu, já que lhe torna mais difícil realizar investimentos de libido em outros objetos. Essa hipertrofia do Eu, sustenta agora A. Parente, está relacionada com a sublimação.  A referência à melancolia permite à autora proceder a um diagnóstico da cultura da época, em favor do que ela convoca as análises que W. Benjamin fornece dos dramas do Barroco alemão. No Trauerspiel, o traço marcante seria a fragilidade dos soberanos, a exposição do abalo que incidira sobre o poder monárquico. Qual é a reação dos cidadãos do Império Austro-Húngaro diante desse abalo? Eles preferem, diz a autora, alhear-se das discussões políticas e investir em uma “cultura dos sentimentos” que supervaloriza as artes e a beleza. Tudo se passa aqui como se, quanto mais complexas e investidas fossem as percepções dos objetos internos, mais os indivíduos se afastassem do âmbito público. Neste lugar, estaria então localizada a função da sublimação: ela estaria a serviço de dar vazão ao mundo interno sem tocar a questão dos problemas públicos. Isso corresponde, por óbvio, a uma crítica do conceito freudiano de sublimação, pois, na medida em que consiste em um processo conduzido pelo Eu com o intuito de, simultaneamente, obter reconhecimento social e realizar de modo parcial desejos sexuais e agressivos do artista, ela submete conteúdos que seriam resistentes à civilização a uma adaptação, contribuindo, assim, para a manutenção do “estado vigente das coisas”.  Já com o Unheimliche4, o que se passa seria algo bem diferente porque sua expressão pelo artista trabalharia o conteúdo do trauma sem integrá-lo, afastando-se de valores que são reconhecidos pela sociedade de maneira não crítica e não problemática. O encaminhamento da reflexão estética na direção dessa noção teria, por esse motivo, desalojado Freud do lugar de um liberalismo conservador.  Para A. Parente, a condição cultural que tem lugar com a Primeira Grande Guerra reflete-se no encaminhamento do pensamento de Freud, que então sofreria uma alteração significativa. Após a Guerra ele retoma sua teoria do trauma, elabora o conceito de pulsão de morte e escreve Das Unheimliche. Por esse motivo, a autora declara que seu segundo objetivo no livro é mostrar a importância desse acontecimento para a reconfiguração da teoria freudiana da cultura, o que significaria que essa reconfiguração alcançaria também o conceito de sublimação que Freud mobilizava até então. Nesse período, ele teria reconhecido limites em tal conceito, tendo sido por isso que: 1- não publicou o artigo metapsicológico que teria escrito sobre a sublimação e 2- escreveu o texto O inquietante. Isso faria parte de um cenário em que a condição psíquica prevalecente deixa de ser a melancolia e passa a ser o pânico.

Como órfãos de uma cultura perdida”, escreve a autora, “os homens que vagavam melancolicamente pela vida finalmente são obrigados a olhar para o vazio deixado após a guerra e para sua condição de desamparo. Juntando migalhas, tecem narrativas desconexas, potentes e vigorosas. Ao contrário do verniz que encerava o processo sublimatório, é possível ver uma inconsistência e uma precariedade mais fiéis à seiva inconsciente (p. 40).

A tese central do livro precisa então ser assinalada ao redor disso: há uma inflexão relevante entre a sublimação e o Unheimliche na teorização que Freud dedica à arte. Eles seriam dois processos de simbolização distintos e o entendimento da transição entre ambos precisa ser referido à repercussão que a Primeira Grande Guerra teria tido no pensamento freudiano. Tal chave dará ensejo a diversas incursões por obras artísticas e, especialmente, a autora recupera essa tensão entre o destaque conferido ao ouro na pintura de G. Klimt e a exposição crua da carne na de E. Schiele. Suas obras podem ser vistas como signos de uma amplitude de contexto cultural que, segundo A. Parente, ecoa na argumentação que Freud tece entre esses dois períodos cuja separação teria sido marcada com a Grande Guerra. A passagem entre o mestre e o discípulo – isto é: entre Klimt e Schiele – sinaliza uma ruptura da nudez para com a extravagância dourada e permite perceber a queda do véu da ornamentação, conduzindo decisivamente a obra de arte à exploração do Unheimliche, o que corresponderia a uma potência mais ampla de deslocamento e disrupção relativamente à ordem social estabelecida.  Há muitos percursos possíveis para a leitura desse livro tão rico. Porém, em torno de sua tese central, A. Parente não entrega o ouro fácil. Ela exige bastante de sua leitora porque a costura da argumentação precisa ser feita constantemente. Nossos fios de coser são convidados a passear pelas duas partes constitutivas do livro, demarcadas entre si a partir dos dois momentos identificados na reflexão estética de Freud, e que acabam de ser assinalados aqui. Em torno do primeiro momento – ou seja, da primeira parte do livro –, temos sete capítulos que elaboram sucessivamente os seguintes recortes: o teatro na Viena finse-siècle, a relação entre modernidade e melancolia, o declínio da imagem do pai, o feminino na obra de Klimt, a abordagem romântica da sublimação, a relação entre Freud e Goethe, o estatuto da escrita freudiana. Já na segunda parte do livro, nos deparamos com cinco outros capítulos, sendo que o primeiro deles situa a obra de Freud diante de sua desilusão com a guerra, o segundo aborda a articulação entre o sentimento de pânico e a condição de desamparo, o terceiro investiga a figura do Unheimliche na obra de E. T. A. Hoffmann, o quarto fornece uma leitura da produção de E. Schiele e o último retorna ao Édipo mediante a referência a H. von Hofmannsthal.  Diante das etapas assim desenhadas, podemos levantar algumas questões. Por exemplo: como podemos identificar em Klimt o modelo sublimatório nos termos propostos (p. 179) e ao mesmo tempo reconhecer em sua obra um profundo questionamento do poder patriarcal (p. 180)? Isso não seria prova de que a sublimação pode trazer resultados que ultrapassam a expectativa da aceitação social? Quando se diz que a Guerra imprime também uma mudança no próprio estilo de Freud, que análise concreta seria possível fazer desse estilo? Como o esforço de referir a teoria psicanalítica à história de seu tempo, especialmente mediante o estudo das obras de arte selecionadas, permitiria avançar a sua compreensão e o modo pelo qual ela dispõe seus conceitos? Chegamos, ao final do livro, no contexto de uma discussão sobre a peça A torre, de Hofmannstahl, a um comentário de Totem e tabu que está longe de ser trivial. Mas, dali, olhamos para um certo abismo, desamparados em busca de “considerações finais” que estivessem a serviço de dizer que um certo itinerário se encerrava ali de um certo modo, ainda que abrisse atalhos para tantas outras coisas. É especialmente importante ficar atenta ao fato de que a argumentação do livro vai se voltar para o tema do feminino. Uma das pistas mais relevantes nesse sentido, além do destaque dedicado a Klimt e Schiele – e, consequentemente, a essa questão – é a epígrafe do capítulo 3, que traz um pequeno trecho de 1907 das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Nele, lemos muito a  contragosto, para dizer o mínimo, que, “na opinião de Freud, a verdade é que a mulher nada ganha pelo estudo e que, no todo, a sorte delas não há de melhorar com isso. Acresce que as mulheres não podem alcançar a realização do homem na sublimação da sexualidade” (citado por PARENTE, 2017, p.141). Não se pode acusar Freud de ter sido incoerente com esse posicionamento nos textos que publicou durante sua vida. Pois conhecemos bem – nós, suas leitoras – o modo pelo qual ele se esforça por destituir as mulheres das condições ética e estética. Mas, por mais que seja difícil para nós hoje equacionar essas duas coisas, também devemos em larga medida a Freud a construção de um território em que o pensamento feminista se tornou possível. Dívida que começa, é claro, no que concerne à psicanálise, com a coragem das mulheres que ocuparam seu divã. A exemplo de Dora, com quem abri essa resenha, eram sobretudo mulheres que colocavam em cena, ainda que de modo deformado, seu desejo na clínica de Freud durante seu período inicial. Convém lembrar, a esse respeito, as seguintes palavras de J. Mitchell: só podemos entender o significado da obra de Freud

[…] se compreendermos primeiro que eram exatamente as formações psicológicas produzidas dentro das sociedades patriarcais que ele estava revelando e analisando. A oposição à história assimétrica sobre os sexos, proposta por Freud […], pode muito bem ser mais agradável no igualitarismo que ela assume e revela, mas não faz sentido algum para uma defesa mais profunda de que sob o patriarcado as mulheres são oprimidas – uma argumentação que só as análises de Freud podem nos ajudar a compreender (1974/1988, p.7).

Isso significa, dentre tantas coisas, que é ainda urgente rever, comentar, repensar Totem e tabu nessa sua direção fundamental de estabelecer uma equivalência entre cultura e masculinidade e da qual, a meu ver, Lacan não soube se desvencilhar o suficiente. A. Parente acena para essa tarefa ao encerrar seu livro, de modo que a peça de Hofmannstahl dá ensejo a localizar essa pergunta pelo legado do mito freudiano e a marcar, talvez, mais um ponto de tensão entre o território do Unheimliche e o do patriarcado, embora ainda pareça pouco vincular, como faz a autora, a posteridade de Totem e tabu apenas ao tema da insurgência.  A questão da mulher é um dos pontos mais pungentes em que a obra de Freud parece ser refém de seu contexto. Não é o caso de avançar aqui em sua exploração, mas ela força a esta pergunta de base, tão centralizada pelo livro de A. Parente: em que medida a obra reverbera seu contexto histórico, em que medida é independente dele?  No que diz respeito ao segundo dualismo pulsional, não podemos deixar de lembrar a argumentação que L. R. Monzani constrói em Freud: O movimento de um pensamento. Para ele, o conceito de pulsão de morte não pode ter sua inteligibilidade referida à Grande Guerra5, pois tratar-se-ia, com tal conceito, de um elemento presente na obra de Freud desde o início em virtude da própria caracterização da pulsão como alguma coisa que possui a tendência a eliminar a si mesma. Lemos, assim, que “[…] a ideia de uma tendência à inexcitabilidade total e absoluta era um dos ordenadores fundamentais da rede teórica elaborada por Freud, que atravessa toda a sua obra de um extremo ao outro […]” (MONZANI, 1989, p.228). Pensar a pulsão de morte como resposta a um acontecimento histórico seria, assim, para Monzani, perder de vista a lógica interna que guia o movimento do pensamento. No livro de A. Parente as cartas são, a meu ver, claramente apresentadas em um sentido oposto.    Aqui o historicismo é assumido em torno de um pressuposto metodológico articulado com a leitura de W. Benjamim, de cujas teses sobre a história ela destaca a ideia de que a “substância histórica” está presente na estruturação dos conceitos. Tal estratégia envolve, como qualquer estratégia, perdas e ganhos. Que se ganha, espero ter conseguido mostrar um pouco. É preciso acrescentar, todavia, que a autora sinaliza nesse sentido para a aposta de que o resgate da história dos conceitos possui a capacidade de indicar forças que teriam sido abafadas pelas circunstâncias em que foram construídos. Por outro lado, se se defende que conceitos são amplamente tributários do contexto vivido por aquele que os pensou e construiu, então corre-se o risco de não se poder empregá-los sob a pena da óbvia objeção de serem datados. Qual a medida de sua sobrevivência? Por que alguns teriam uma vida para além da situação em que nasceram enquanto outros não? Por que aceitamos, por exemplo, um conceito metapsicológico de inconsciente, enquanto rejeitamos as teses de Freud sobre a inferioridade da mulher? Não são todos – tal conceito e tais teses – situados no mesmo contexto histórico? Se levássemos o ponto até suas últimas consequências, não seria, aparentemente e afinal, nem despropositada nem ingênua a pergunta: que direito tem a psicanálise de ser psicanálise após Freud? Esse tipo de impasse não restou, é claro, desapercebido por A. Parente. A solução encontrada por ela parece ser formulada aproximadamente do seguinte modo: “Conceitos e noções representam ideias que atravessam os tempos, mas só ganham feições nas malhas concretas da história” (PARENTE, 2017, p.51). Mas, se é assim, a pergunta pelo estatuto do Unheimliche não permanece em aberto? Se a noção de inquietante tem na Primeira Grande Guerra sua condição de possibilidade, possuiria ela alguma força para “atravessar os tempos”? O problema poderia também ser organizado de uma maneira não menos necessária por ser aparentemente trivial: por que continuamos a reconhecer que têm lugar processos de sublimação, apesar de a melancolia ter sido atrelada ao período que antecedeu a Primeira Guerra? São questões que, a meu ver, podem, dentre tantas outras, ser construídas com o livro de A. Parente de modo a favorecer o debate e a continuidade da investigação.

Referências

FREUD, Sigmund. (1905[1901]) Análise fragmentária de uma histeria. In:____. Obras completas. Volume 6. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund. (1908) “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”. In: ____. Obras completas. Volume 8. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (Trad.: M. Carone). São Paulo: Cosacnaify, 2011.

FREUD, Sigmund. (1927) O futuro de uma ilusão. (Trad.: R. Zwick) Porto Alegre: L&PM, 2012.

LACAN, Jacques. (1952[1951]) Intervenção sobre a transferência. In: ____. Escritos (Trad.: V. Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MITCHELL, Juliet. (1974) Sobre Freud e a distinção entre os sexos. In: ____. Psicanálise da sexualidade feminina. (Trad.: L. O. C. Lemos). Rio de Janeiro: Campus, 1988.

MONZANI, L. R. Freud: O movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.

PARENTE, Alessandra. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.

Notas

1 Dora estava envolvida em um enredo que implicava, além de seu próprio pai, duas pessoas casa-das entre si que Freud nomeia “Sra. K” e “Sr. K”.

2 “Quanto maior o tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que meu erro técnico consistiu na seguinte omissão: eu não percebi a tempo e não comuniquei à paciente que a mais forte das correntes inconscientes de sua vida psíquica era o impulso amoroso homosse-xual (ginecófilo) relativo à Sra. K” (FREUD op. cit., p.317).

3 Cf., por exemplo, Freud 1927/2012, p.51-2

4 O termo é por vezes traduzido por “inquietante”, outras por “estranho” e ainda por “sinistro” ou por “ominoso”.

5 Cf. nota 38, p.318

Léa Silveira – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG, Brasil.  E-mail: leasilveiralea@gmail.com

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