A grande mudança aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, e mais intensamente ao longo da Guerra Fria, quando, nos anos 1970, a política internacional transformou-se em disputa pelo que então se queria entender por emancipação humana, ou por conquista de novas liberdades, quer no sentido anticolonial, quer no sentido da democracia repensada, restaurada, ampliada. A novidade do conceito de direitos humanos estava no ato de se acreditar que era mesmo possível agir-se para a elevação política e moral da humanidade, sem as limitações das fronteiras nacionais, se intervindo nos Estados de forma que seus governos, criticados externamente, respondessem por seus atos e promovessem mudanças positivas.
Esse ativismo de direitos humanos demorou mais de duas décadas desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, para se consolidar ao redor do mundo e ser parte ativa da política. Nesse passo, as organizações internacionais tiveram importante papel. Dentre elas, destaca-se a Anistia Internacional, por sua forma de atuação pela justiça desenraizada em relação a qualquer Estado-nação, recebendo, por isso, o Prêmio Nobel da Paz em 1977. Este reconhecimento evidenciou o fato de que a sociedade civil estava madura para atuar internacionalmente. Inserido na questão mais ampla da sociedade civil em busca de direitos, o livro da historiadora Renata Meirelles investiga não só a criação e o crescimento da Anistia, mas principalmente sua atuação pelo basta à tortura e a outros crimes cometidos pela ditadura militar brasileira.
Ultimamente, o trabalho da Anistia tem sido mais difundido no Brasil, tornando-se popular devido à sua campanha por justiça em relação ao escandaloso caso da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada à queima-roupa, em 2018, num crime de execução política cujos mandantes permanecem desconhecidos. O elo da organização com o Brasil, no entanto, é anterior. Começou há quase cinco décadas, tempo em que a ampliação de suas atividades permitiu-lhe confrontar as ditaduras do Cone Sul, tendo a brasileira como alvo preferencial. Fundada em Londres, em 1961, pelo advogado Peter Benenson – de família judaica, mas convertido ao catolicismo -, a Anistia chegava ao Brasil uma década depois, com campanhas contrárias à repressão ditatorial e atividades voltadas ao seu alívio. É a história dessa relação conflituosa, até agora pouco conhecida, o que o livro em questão põe a nu.
Com três capítulos organizados cronologicamente, o livro de Meirelles é uma versão mais enxuta de sua tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), em 2016. No ano seguinte, a tese foi reconhecida com a menção honrosa do Prêmio História Social, promovido pelo mesmo programa da USP. Parte da pesquisa foi desenvolvida em estágio no King’s College London, oportunidade em que a historiadora fez trabalho de arquivo e reuniu documentação relativa à Anistia e ao governo britânico encontrada nos National Archives do Reino Unido. Outro acervo fundamental no estudo é o do holandês International Institute of Social History, onde se encontra disponível o arquivo histórico da própria organização britânica. No Brasil, acervos documentais do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Estado de São Paulo, produzidos durante o período militar, foram utilizados para que a autora identificasse as ramificações brasileiras na trama de conexões transnacionais entre ativistas, políticos e funcionários da Anistia.
Como podemos notar pelo circuito arquivístico percorrido pela historiadora, seu trabalho oferece uma contribuição sólida do ponto de vista documental. A Anistia nasceu como organização não-governamental durante a Guerra Fria, razão pela qual tentava manter seu discurso de neutralidade em relação à bipolaridade. Interessava-lhe o sentido cristão da solidariedade e a ajuda humanitária ao sofrimento distante do outro, independente de nações, de modo que seus direitos humanos fossem respeitados. A rigor, como revela a autora, esta atitude imparcial não funcionou, e a organização teve de assumir posições anticomunistas num mundo marcado pela proliferação de revoluções armadas, guerras sangrentas e tortura de opositores políticos. Um conjunto de documentos originais do arquivo da Anistia e dos National Archives permitiu que a autora apontasse, nos primórdios da organização, experiências de colaboração com o governo britânico quando o Partido Trabalhista estava no poder. Ademais, o foco intencional de sua atuação repousava, segundo ela, em territórios coloniais britânicos e em países anticomunistas integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte.
A descoberta de Meirelles gera ressonâncias na historiografia. A Guerra Fria moldou esta mesma Anistia que atua no Brasil desde os anos de chumbo. Seu argumento, portanto, é significativo não só para o Grupo de Estudos sobre a Guerra Fria da USP, coordenado por Elizabeth Cancelli, do qual a autora faz parte, mas para os que desejam compreender a construção histórica da sociedade civil contemporânea. Nesse sentido, o livro soma-se aos estudos histórico-políticos à maneira daquele produzido por Bobbio (2010) – o que é e o que pode a sociedade civil contemporânea? -, assim, nos atraindo à discussão a respeito da história recente do mundo.
Ao contrário do que se pensava, Cancelli (2017) mostra que o Brasil já era parte das estratégias internacionais de repressão do comunismo antes de 1964. A Revolução Cubana reforçou uma posição anticomunista anteriormente definida por elites brasileiras e pelo Departamento de Estado norte-americano. Havia, então, um alinhamento entre esses dois países, propagando-se no Brasil a ideia de que comunismo e totalitarismo associavam-se. Desde fins dos anos de 1950, a sustentação desta sofisticada associação era erguida, no Brasil, pelos agentes intelectuais do Congresso pela Liberdade da Cultura, secretamente financiado pela Central Intelligence Agency.
Se o anticomunismo da Guerra Fria tinha considerável impacto no Brasil quando a Anistia lançou suas teias de atuação política no país, precisamos considerar o que instou a organização a essa mudança de rota em relação à sua agenda inicial e ao que ela estava ligada em termos políticos. No segundo e terceiro capítulos do livro de Meirelles, há uma narrativa sobre a expansão da Anistia principalmente no Hemisfério Sul, a partir de 1968. Ocorre que, depois do abalo oriundo de uma profunda crise moral devido à intrusão de governos em suas decisões, as estruturas de funcionamento da organização foram redefinidas e a sua agenda finalmente foi ampliada para casos de tortura em escala global.
Braços da Anistia atravessaram o Atlântico e se alastraram rumo à investigação de denúncias de crimes de Estado, que se avolumavam na América Latina. Os atritos cada vez maiores com as ditaduras latino-americanas, sobretudo a brasileira, são narrados pela historiadora com auxílio de documentos inéditos – não só o muito conhecido relatório Brasil: Nunca Mais –, o que contempla a sede de saber dos leitores, mesmo dos mais exigentes com a justeza do método histórico. O Report on the Allegations of Torture in Brazil, produzido pela Anistia em 1972, é o eixo em torno do qual a historiadora montou o detalhado mapa documental de sua pesquisa. Por tão bem utilizar a documentação e revelar novas informações, o livro vai ao encontro das mais importantes pesquisas em História e em Ciências Sociais sobre o que acontecera nos porões e no submundo da ditadura militar.[1]
Ao analisar a política externa de países democráticos europeus, sobretudo da França e da Grã-Bretanha, João Roberto Martins Filho (2018) revelou que eles apoiaram, com novas tecnologias militares, o aprimoramento das táticas de violência física nos países sob ditadura, como o Brasil, onde se impunham interrogatórios a presos políticos com amedrontadores e cruéis métodos de tortura. Internamente, o estudo de Mariana Joffily (2014) concluiu que a tortura era um instrumento de coerção, tentativa de poderosos civis e militares de esmagamento, pela letalidade policial, das forças radicalizadas à esquerda da oposição ao regime instaurado em 1964.
É a esse quadro de violência de Estado que o livro de Meirelles se soma. Nele, são analisadas as atividades de uma organização de direitos humanos em busca do esclarecimento público no que diz respeito às denúncias de tortura e desaparecimento forçado, ao mesmo tempo em que ela agia na tentativa de ajudar civilmente indivíduos presos e submetidos ao domínio de policiais militares e outros torturadores. Mais ainda, em 1972, a Anistia lançou a Campanha pela Abolição da Tortura, o que gerou repercussão no exterior dos casos de tortura ocorridos no Brasil e contribuiu para a elaboração de normas internacionais de direitos humanos. Note-se que os tratados diplomáticos estabelecidos com apoio da organização passaram a proibir o recurso à tortura em conjuntura posterior.
É bem conhecida a trajetória de muitos opositores de esquerda ao regime militar: suas batalhas frequentemente implicavam prisões, desaparecimentos, interrogatórios com tortura e julgamentos pela Justiça Militar. Mas, até agora era-nos desconhecido, e o livro State Violence veio para nos contar, o fato de que a Anistia Internacional prestou assistência a mais de uma centena de presos políticos entre 1969 e 1980. A autora fez uma extensa tabela com informações específicas sobre esses adotados (a adoção dos casos individuais de prisioneiros da ditadura significava que eles seriam investigados e assistidos de diferentes formas pela Anistia), na qual figuram pessoas mais ou menos à esquerda e mais ou menos conhecidas. Destaco algumas: Frei Betto, Ênio Silveira, Ivan Seixas, César Benjamin, Nelson Rodrigues Filho, Lúcio de Brito Castelo Branco e Luis Werneck Vianna.[2] A pesquisa tem essa originalidade, ou seja, fornece novas informações sobre a sociedade civil e as suas pontes entre Brasil e Grã-Bretanha.
O livro de Meirelles também contribui para a historiografia porque sua narrativa avança para algo relevante: além da assistência a prisioneiros políticos, o que mais fez a Anistia em relação à violência brutal da ditadura militar? É aí, no terceiro capítulo, que vemos sua intensa mobilização, no Brasil e na Grã-Bretanha, em busca do fim da tortura. É claramente notável na narrativa o esforço da autora de nos revelar atividades da Anistia não restritas a indivíduos, mas as atividades, por assim dizer, sociais da organização; aquelas que miravam o problema in totum da violência de Estado no Brasil. Indo além do Report on the Allegations of Torture in Brazil, apresentado em pleno Sesquicentenário da Independência do país, a Anistia percorreu um caminho de campanhas sucessivas pela revelação internacional dos crimes da ditadura militar.
O livro traz uma narrativa dessas campanhas que chegaram a expor ao Foreign Office britânico relatos de tortura – inclusive os assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho -, e a tentar o boicote da visita de Geisel à Rainha da Grã-Bretanha, Elizabeth II, em 1976. Enquanto a realeza reiteradamente fechava os olhos ao problema da violência política no Brasil, a Anistia lutava para iluminar a escuridão do sofrimento dos torturados e fazia jus ao sentido de seu maior símbolo: a chama incandescente de uma vela cercada por arame farpado. Renata ainda nos mostra que outras ações contestadoras perfizeram a trajetória da organização no Brasil, de 1980 em diante; história que o leitor encontrará no encerramento de seu livro.
Ao término da leitura, porém, ficam algumas dúvidas de natureza histórica. Segundo a autora, o Report on the Allegations of Torture in Brazil “apontou com precisão que o uso da tortura não podia ser visto como uma resposta à luta armada, pois, quando foi escrito em 1972, a maioria dos grupos armados já havia sido derrotada” (Meirelles, 2020, p. 98). Ora, se houve todo um planejamento, por parte do Centro de Inteligência do Exército, das operações de extermínio da Guerrilha do Araguaia – um dos mais sangrentos episódios da ditadura militar, que teve seu fim apenas em 1974 -, então não se pode dizer que a luta armada havia deixado de ser um problema para a ditadura militar antes mesmo desse episódio. Do meu ponto de vista, é preciso entender por que a Anistia Internacional afirmou haver o desbaratamento da luta armada num momento em que ela acontecia violentamente no interior do país, ao passo que o Estado, sob Geisel, continuava a política encoberta de aniquilamento da oposição de esquerda radical, tanto nas maiores cidades, quanto nas profundezas do interior.
Mais um ponto de inquirição reside no outro lado da experiência humana: ao invés dos ativistas institucionalizados ao redor da Anistia, o lado dos prisioneiros políticos. Durante a ditadura militar, em meio à aceleração do desenvolvimento econômico imposto a ferro e fogo pelo regime, ao mesmo tempo em que penosa e lentamente emergia o tema dos direitos humanos em países latino-americanos -estudado em síntese por Samantha Viz Quadrat (2008) -, é de se perguntar o que os opositores esperavam em relação à sua resistência política tão cerrada a este estado de coisas ditatorial. De modo conciso, coloco em questão: o que sonhavam esses ativistas, o que seguiam e pelo que lutavam com paixão e não raro à custa da própria vida? Aqui, faço coro com a Angélica de Chico Buarque. Afinal, o que mantinha acesa essa chama mística a ponto de levá-los às ruas para se contraporem frontalmente aos dominadores mortais? Pois conhecer o espírito combativo dos opositores diretos da ditadura pode ajudar-nos a entender melhor as relações da sociedade civil com a emergência dos direitos humanos no Brasil e no restante da América Latina.
Não há respostas fáceis e simplistas no livro de Meirelles, mais preocupado em narrar documental e cuidadosamente a ação da Anistia Internacional, recorrendo à história dos direitos humanos de Moyn, à filosofia da política no século XX de Arendt, à teoria do Estado de Gramsci e ao conceito mais amplo de direito de Bobbio. Se State Violence não oferece resposta às perguntas em torno da motivação propriamente dos opositores, pois não é esse o seu foco, tem a qualidade de apresentar uma análise bastante afiada sobre a construção histórica da sociedade civil contemporânea, incluindo aí o surgimento de convenções de direitos humanos destinadas ao banimento da tortura nos países que as ratificaram. Com narrativa clara e intrigante, State Violence é um livro importante para quem se interessa pela história da sociedade civil. É por isso que se recomenda fortemente uma tradução da obra para o português. O público de língua portuguesa merece conhecer com mais facilidade esse livro original e necessário nos estudos da política.
Notas
1. 20 mil pessoas foram torturadas e 434 mortas ou desaparecidas durante o regime militar, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Cf. Meirelles, 2020, p. 56 e 60.
2. Em entrevista concedida a Renata Meirelles, o professor Werneck Vianna afirmou desconhecer que tenha recebido qualquer ajuda da Anistia Internacional durante a ditadura militar. Isso nos leva a pensar que as atividades da organização nem sempre eram explícitas, podendo o adotado não saber que contara com sua ajuda para a libertação do cativeiro. Em determinadas circunstâncias, como mostra a autora, a discrição era uma estratégia considerada importante. Em outras, a organização fazia denúncias abertas: “name and shame”. Eram campanhas que revelavam casos de violência política com riqueza de detalhes, inclusive os nomes dos perpetradores.
Referências
BOBBIO, Norberto. Sociedade civil. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Orgs.). Dicionário de política. Vol. 2. 13a ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2010.
CANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra Fria cultural: o pós-guerra em releitura. São Paulo: Intermeios, 2017.
JOFFILY, Mariana. Mecânica do interrogatório político. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta (Orgs.). Tortura na Era dos direitos humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.
MARTINS FILHO, João Roberto. Les démocraties européennes et la dictature militaire brésilienne: la France, la Grande-Bretagne, et la torture au Brésil. In: GREEN, James N.; SCHPUN, Mônica Raisa (Orgs.). 1964: la dictature brésilienne et son legs. Paris: Éditions Le Poisson Volant, 2018.
MEIRELLES, Renata. State violence, torture, and political prisoners: on the Role played by Amnesty International in Brazil during the dictatorship (1964-1985). Coll. Crimes of the Powerful. London; New York: Routledge, 2020.
MOYN, Samuel. The last utopia: human rights in history. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2010.
QUADRAT, Samantha Viz. A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina. In: FICO, Carlos et al. Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 2008. p. 361-395.
Resenhista
Gustavo Mesquita – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: gustavormesquita@gmail.com
Referências desta resenha
MEIRELLES, Renata. State violence, torture, and political prisoners: on the role played by Amnesty International in Brazil during the dictatorship (1964-1985). Coll. Crimes of the Powerful. London; New York: Routledge, 2020. Resenha de: MESQUITA, Gustavo. Anistia chega ao Brasil, ou como uma organização britânica ultrapassou fronteiras, amparou presos políticos e escancarou crimes da ditadura militar. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.41, n.86, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR].
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