WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, 1998. Resenha de: MOURA, Denise. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37, sept. 1999.
Graças à iniciativa do Programa de Pós-Graduação em História Social, do Depto. de História da USP e a Ed. HUCITEC, Sonhos africanos, vivências ladinas, defendido como dissertação de mestrado em 1989, é mais um volume da série Teses que vem facilitando o acesso dos pesquisadores a estudos de relevo, que têm contribuído para entendermos um pouco mais sobre nosso passado e nossa própria atualidade.
A autora, Maria Cristina Cortez Wissenbach, vem se destacando com publicações em diversas revistas especializadas e mais recentemente com um dos capítulos do 3o volume da História da Vida Privada. Em 1997, apresentou sua tese de doutorado sobre práticas mágico-religiosas nas primeiras décadas do século XX paulista.
Em Sonhos africanos…, sua pena de historiadora coloca-nos diante das experiências de vida de pessoas comuns. Homens, mulheres, forros ou escravos, remediados ou muito pobres. Uma gente engenhosa o suficiente para se apropriar das asperezas da vida e das relações cotidianas e criar estratégias de sobrevivência. O quê nos liga a estes homens e mulheres das terras paulistas de 1850-1880?
Tributária de uma vertente teórica que nos anos 80 trouxe novos ares aos estudos de escravidão – E. P. Thompson, E. Genovese, Herbert G. Gutman -, a autora empreendeu um vigoroso trabalho de pesquisa em documentos do Tribunal de Justiça, trazendo à luz práticas, percepções e valores de uma gente de ontem disfarçada no discurso das camadas dominantes. É nos processos-crime – e na documetanção processual em geral – que ouvimos o sussuro de suas existências. Mesmo revelando um universo sutilmente recortado pelos interrogatórios, é nos processos jurídicos que estão estas vozes: sofridas, tímidas, medrosas, ladinas, chorosas.
São vozes que a renovação historiográfica dos anos 80 tornou mais perceptíveis e que têm desconcertado formas mais tradicionais de se ver nosso passado escravista. A começar pela maneira desfigurada do escravismo em São Paulo dos anos 1850-1880, pois núcleo urbano tímido que era, favoreceu uma situação na qual pessoas de diferentes condições sociais serviam-se das mãos e pés escravos, sob a forma de aluguel ou ganho, numa vivência tão estreita que tendia a confundir senhores de posses irrisórias com seus cativos.
A escravidão urbana tendeu a atenuar os rigores do regime, ampliando a margem de negociação dos escravos com seus senhores, dando-lhes maior liberdade para circular pelas ruas e improvisar variados expedientes que aumentavam seus ganhos, além de favorecerem o exercício de uma sociabilidade nas irmandades e em pontos específicos da cidade.
De página em página, o leitor vai assistindo a cenas intrigantes da vida de pessoas comuns: desentendimentos, confusões com guardas locais insistentes em alinhar condutas em padrões definidos, um ir e vir incessante, solitário ou em ajuntamentos, sempre procurando tornar a vida melhor de ser vivida.
Os níveis de criminalidade cativa – e a própria documentação que a autora utilizou – apontam para a violência destes tempos. Esta criminalidade, insana em muitas situações, coexistia no entanto com histórias bastantes corriqueiras, como a dos escravos de Joaquim Camargo do bairro de Santana, que podiam usar o carro do senhor para venderem lenha, produto de seus próprios negócios1. Quantos não se ocuparam de outros serviços nos intervalos das tarefas incumbidas por seus senhores. Afinal, eram possibilidades extras de ganhos. Produção agrícola ou criações independentes também fizeram parte desta política de consentimentos e acordos nos relacionamentos de escravos e senhores.
No capítulo “O sentido social do crime e da criminalidade escrava” vemos o quanto transgressões à lei e o recurso à violência pelos escravos foi parte de um movimento mais amplo, dotado de uma coerência criada por eles próprios e que aos poucos foi ruindo o regime de escravidão.
Foi recolhendo os fragmentos da fala de negros cativos ou forros e homens livres, pobres ou remediados, que a autora foi costurando o tecido social da São Paulo destes anos. Eram lavadeiras, quitandeiras, domésticas e trabalhadores de ofícios, andejos na sobrevivência e que diariamente incomodavam as autoridades locais e as famílias mais abastadas. Parecia intrigante aos olhos de senhoras brancas e senhores sisudos o vai-e-vem nervoso de uma gente de cor ora com trajos que quase a confundia com seus donos, ora com adereços que lembravam as tradições africanas.
Intolerável era o conversar ruidoso, em torno aos chafarizes, em meio às rodas de capoeira e partidas de jogos, misturando-os a homens livres pobres, também trabalhadores de diversos ofícios e expedientes, numa convivência tensa e necessária para a sobrevivência.
O capítulo “O escravo e o mundo caipira na comarca de São Paulo” é primoroso ao revelar o ritmo da escravidão num meio rural pobre, afrouxado pela pobreza dos senhores e pelas interrupções do trabalho inerentes à faina na roça.
É o potencial criativo que as pessoas carregam consigo que vamos acompanhando por meio da narrativa de Sonhos africanos…. Artistas da sobrevivência, escravos criavam a partir das condições que o “ser escravo” em São Paulo na segunda metade do XIX permitiam, ou seja, o regime abria esta possibilidade e os escravos souberam se apropriar disto com astúcia e sabedoria, donos que eram de uma erudição das ruas, aprendida nos imprevistos que enfrentavam, nas traições, nas brigas em torno do chafariz, nos sofrimentos de amor e nos laços de vizinhos e parentes que tão bem sabiam tecer.
O leitor se vê diante de uma sociabilidade tensa e solidária nas praças, largos, pontes, becos, festas e reuniões. Espaços onde solucionavam discórdias, lavavam a honra e tramavam ganhos e negócios. Sob o foco de estudo pioneiro e clássico da história social e das mulheres2, a autora vai desvelando flagrantes da pobreza feminina paulista, na vida de forras audaciosas o suficiente para afrontarem imposições de maridos e autoridades, firmando sua condição de mulheres que respondiam por boa parte – senão por todo – o sustento da casa.
O conjunto iconográfico do volume é tocante: uma galeria de fisionomias comuns e antigos locais de trânsito, trabalho e encontros que desafiaram o tempo graças à arte fotográfica do conhecido fotógrafo Militão Augusto de Azevedo (1835-1905).
O estudo de Wissenbach é também um desafio ao tempo, fazendo com que os sonhos e as vivências de homens e mulheres que viveram tão antes de nós não caiam na grande armadilha do esquecimento. Mas como estes sonhos de uma vida melhor de ser vivida e esta arte de improvisar e criar a sobrevivência parecem tanto com os dos dias de hoje.
Notas
1 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, p. 135, 1998.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a. ed., São Paulo, Brasiliense, 1995.
Denise Moura – Doutoranda do Dep. de História da Universidade de São Paulo
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