O livro Somalia: State Collapse, Terrorism and Piracy é a compilação de uma edição especial Journal of Contemporary African Studies, organizada por Brian Hesse, professor de ciência política na Universidade Northwest Missouri State. O professor Hesse possui outras publicações sobre África, em especial relacionada à política externa americana, como o livro The United States, South Africa and Africa: of grand foreign policy aims and modest means. Além disso, tem a peculiaridade de ser guia sazonal de safári na África pela empresa americana Cawabunga Safari. Este livro está dividido em sete capítulos, produzidos por autores diferentes, e analisa aspectos, como a formação do atual governo de união, a ligação da Somália com o terrorismo global, a influência da diáspora somali na política do país, a dinâmica da pirataria e onde o cenário político, econômico e social funciona bem na Somália. O livro concentra-se em explicar a falência do Estado somali por meio de três eixos: clãs, terrorismo e pirataria – estes somados às intervenções estrangeiras e agravados por elas. Trata-se de um livro recente, publicado pela primeira vez em 2011, e que reflete sobre os problemas atuais da Somália, assim como sobre as causas destes.
O primeiro capítulo, Introduction: The myth of Somalia, de autoria do próprio organizador do livro, apresenta a história da Somália independente, com ênfase na fragmentação do Estado somali. A atual Somália é a junção das antigas Somalilândia Britânica e Somalilândia Italiana, as quais ficaram independentes em 1960, formando a República da Somália. Os somalis étnicos estão espalhados por várias regiões do Chifre da África: Quênia, Etiópia, Djibuti e na região que se proclamou a República da Somalilândia. Além desses, os refugiados e a diáspora Somali estão localizados em países da África, do Oriente Médio, da Europa e da América do Norte. Desde 1992, a Somália já passou por três intervenções militares sob a chancela da ONU, além da presença de inúmeras Organizações Não-Governamentais (ONG).
Uma das principais causas de instabilidade na Somália é divisão entre clãs, subclãs e sub-subclãs, a qual foi em grande medida criada em tempos pré-coloniais e agravadas pelo favoritismo colonial. O período que seguiu à independência foi marcado mais pela rivalidade entre clãs do que pela união nacional. O autor utiliza o nome Somália entre aspas, com o objetivo de enfatizar que a Somália presente na maior parte dos mapas existe mais graças à vontade da comunidade internacional do que pela própria dinâmica interna.
Atualmente, o governo central é exercido pelo Governo Federal de Transição (TFG), colocado no poder após uma invasão etíope para derrubar o governo da União de Cortes Islâmicas (UIC) e foi mantido no poder pela ocupação de tropas desse país, seguidas por uma missão da União Africana. O TFG tem controle sobre apenas pouco mais do que algumas quadras da capital Mogadíscio e sua ascensão marca as quinze tentativas, desde 1991, de restaurar o governo central na Somália.
O segundo capítulo, entitulado The UN-led Djibouti peace process for Somalia 2008-2009: Results and Problems, de autoria de Apuuli Philip Kasaija, complementa e aprofunda o primeiro capítulo, na medida em que detalha os problemas recentes para a consolidação do Estado somali e descreve a ascensão do governo atual.
O autor contextualiza o processo de Djibuti, ao apresentar processos de paz anteriores. Os processos Djibuti I e II, de 1991; o processo de Sodere, de 1997, liderado pela Etiópia; o processo de Arta, de 1999, convocado pelo Djibuti; e o processo de Nairobe, de 2004, estabelecido pelo Quênia. Ambos os processos criaram instituições e escolheram líderes, tentaram conciliar com senhores da guerra e com os clãs que dividem o país; porém todos falharam em consolidar o Estado somali. Em todos esses processos, a interferência de interesses dos Estados vizinhos é percebia, não só pela convocação dos processos, mas, principalmente, em função das desconfianças e da contribuição desses Estados para o fracasso do processo. A Etiópia é caracterizada nesse último caso, em especial no processo de Arta.
É relevante a derrota da UIC, no poder desde 2006, que leva à sua reorganização como Aliança para a Re-liberação da Somália (ARS), a qual sofre em seguida um racha entre os mais radicais e os moderados, o que abre espaço para o início do Processo de Djibuti, o qual tem como partes o TFG e os islamitas moderados (ARS-D). O processo de Djibuti culminou com a eleição de Sheikh Sharif, do ARS-D, e confirmou a saída das tropas etíopes e o reconhecimento internacional do TFG; porém não garantiu um governo nacional estável e funcional.
Assim como Hesse, Kasaija atribui grande relevância ao papel dos clãs para a política somali e às intervenções de atores externos como outro fator para o fracasso em se estabelecer um governo efetivo na Somália. O autor apresenta os interesses do Egito, da Etiópia, da Eritréia e dos EUA. Observa-se, porém, que a ênfase do autor é nas relações regionais, em especial com os países do Chifre da África. Em parte, isso se deve à política americana de “Soluções africanas para problemas africanos”, delegando a condução da política no continente aos seus aliados, no caso, à Etiópia.
Quanto ao terrorismo, o 3º capítulo, intitulado Somalia and global terrorism: A growing connection?, de Mohamed Ibrahim, atribui a emergência de movimentos terroristas na Somália à desestruturação do estado, à ausência de patrulhamento nas fronteiras e ao mercado de armas não regulamentado.
A partir da divisão interna do UIC, a milícia linha dura al-Shabaab inicia uma campanha de resistência terrorista, com ajuda externa. A princípio não havia uma ligação direta entre al-Shabaad e al-Qaeda, mas as ações dos EUA parecem ter aproximado os dois grupos. Um exemplo foi a invasão etíope à Somália, em 2006, apoiada pelos EUA, que fez recrudescer o radicalismo do al-Shabaab e, finalmente, em 2009, levou-o a proclamar lealdade a al-Qaeda. O autor apresenta a relação entre o al-Shabaab e a pirataria, que, segundo ele, apesar de bastante próxima, é apenas de negócios e não de proximidade ideológica. Por fim, ele afirma que a Somália é uma ameaça aos EUA, em função da presença de elementos da Al-Qaeda no país.
Apesar de Kasaija e Ibrahim concordarem com os efeitos danosos da intervenção da Etiópia, o primeiro apresenta visão positiva em relação à UIC, enquanto o segundo ressalta aspectos negativos. Não apenas questões ideológicas explicam isso, mas também o fato de Kasaija concentrar sua explanação no ARS-D, ala mais moderada do UIC, e Ibrajim, em al-Shaabad, mais radical.
O capítulo intitulado The fourth point: Anex amination of the influence of Kenyan Somalis in Somalia, de Donovan C. Chau, analisa a população de somalis étnicos quenianos e sua influência, ou falta de influência, na política da Somália. Trata-se de um agrupamento que, ao longo do tempo ganhou poder econômico e aumentou sua participação na política queniana, mas que ainda têm influência limitada na política somali. Segundo o autor, após os atentados de 11 de Setembro, as discussões sobre a importância economia dos somalis étnicos do Quênia foi ofuscada pela potencial ameaça que esse grupo passou a representar para os EUA e o Quênia, seu aliado, em função da filiação religiosa.
No capítulo seguinte, An open letter to Uncle Sam: America, pray leave Somalia to its own devices, Said S. Samatar, com certa informalidade, escreve uma carta endereçada ao Tio Sam, na qual defende que o conceito de sistema político centralizado é alheio à psique da população somali e que, portanto, seria insanidade forçar um Estado centralizado a um povo que nem entende, nem busca isso.Ele sugere a criação de uma estrutura federal, sob tutela da ONU, para dar cabo a atividades como emissão de passaporte, correios, política externa e de segurança.
Sua visão em relação à pirataria é, em tom de Robin Hood, de que trata-se de uma reação, que se tornou lucrativa, à pesca predatória e à degradação ambiental realizada por navios estrangeiros na costa somali. Sua polêmica sugestão para fazer face a esse tipo de atividade é aplicar o método de punição coletiva, ou seja, ao invés de lanchas de alta velocidade perseguindo navios piratas, dever-se-ia colocar espiões nas vilas de onde parte a pirataria, descobrir os clãs aos quais os piratas pertencem, pegar seus anciões e levar embora seus camelos (experiência que, segundo o autor, deu certo em meados do século XX para combater a criminalidade).
Quanto ao terrorismo, o autor afirma que uma intervenção seria mais danosa, na medida em que o sistema de linhagem segmentar se incumbe de fragmentar a população em clãs, inviabilizando a união em torno de organizações terroristas. Uma invasão estrangeira significaria um inimigo comum contra o qual os diversos grupos unir-se-iam para combater.
Em Putting Somali piracy in context, J. Peter Pham, assim como outros autores do livro, defende que o fracasso do Estado somali facilitou grandemente o surgimento da pirataria. A Somália reúne condições excelentes para que a pirataria seja sustentável (boa remuneração das presas, existência de refúgios e níveis aceitáveis de risco), apesar de esta não ser uma exclusividade da Somália. Além disso, a importância econômica e a posição do Golfo de Aden na rota do comércio marítimo, a impunidade dos piratas e as lacunas no direito do mar fazem com que a Somália seja, realmente, uma região de destaque para a pirataria, chegando a ser mais lucrativa do que a exportação de gado, que são, oficialmente, os maiores ganhos de exportação do país.
Refuta a ideia do autor do capítulo anterior, ao afirmar que se por um lado é verdade que na década de 1990 navios pesqueiros de várias partes do mundo migraram de forma agressiva em direção ao mar da Somália, a visão maniqueísta de pescadores pobres e artesanais contra caça furtiva e poluidora realizada por interesses corporativos maus não se sustenta.
Sugere, por fim, que a estratégia mais prudente é aquela que, adaptada à realidade descentralizada da sociedade somali e privilegiando a abordagem bottom-up, mostre-se capaz de dar tempo e espaço suficiente para que os somalis façam suas próprias escolhas sobre o futuro.
O último capítulo, Where Somalia Works, de autoria do organizador do livro, conclui com uma visão otimista, trazendo informações sobre aquilo que dá certo na Somália. Segundo o autor, setores econômicos que funcionam bem na Somália são telecomunicações, transferência de dinheiro, microcrédito e o mercado de internet. Ele detalha o funcionamento desses setores e apresenta casos de empresas de sucesso, como a Dahabshiil, empresa somali de transferência de dinheiro que atua em 44 países.
A Somalilândia, região declarada independente unilateralmente em 1991, é apresentada como um modelo de relativa boa governança, tendo realizado diversos pleitos desde a declaração de independência, com chancela internacional e conceito razoável da FreedomHouse, principalmente quando comparado ao “Estado” da Somália como um todo. Além disso, o governo conseguiu desmobilizar milícias rivais; retirar minas; repatria refugiados; facilitou a reconstrução da infraestrutura, adotou uma postura de pouca intervenção do Estado, facilitando o investimento privado e o empreendedorismo (a sede da Dahabshiil é na Somalilândia); criou um banco central, com câmbio estável e conseguiu manter a Somalilândia a maior parte do tempo em paz, nos últimos 10 anos.
Já Puntlândia, região autônoma, a partir de 2009, apresenta resultados positivos no combate à pirataria. O autor conclui ponderando que, a despeito da desestrutura do Estado somali, foi a ausência de um Estado constituído e efetivo que proporcionou algumas “vantagens” para o desenvolvimento de uma Somália que dá certo.
Somalia: State Collapse, Terrorism and Piracy é um livro informativo, detalhado e atualizado. Uma leitura recomendada para todos aqueles que queiram entender a Somália atual e conhecer visões diferentes sobre a situação da Somália e seus atores.
Resenhista
Júlia Covre Vilas-Bôas – Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: juliacovre@hotmail.com
Referências desta Resenha
HESSE, Brian. (Org.). Somalia: State Collapse, Terrorism and Piracy. Londres e Nova York: Routledge; Taylor & Francis Group, 2011. Resenha de: VILAS-BÔAS, Júlia Covre. Meridiano 47, v.14, n.135, p.46-48, jan./fev. 2013. Acessar publicação original [DR]
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