Neste novo livro, o eminente sociólogo José de Souza Martins se propõe a estudar o documento visual, como um dos instrumentos indispensáveis da leitura sociológica dos fatos e dos fenômenos sociais. Neste sentido, a inserção da imagem nas pesquisas das Ciências Sociais abriu um amplo terreno de indagações, dúvidas e experimentos. A fotografia, por ser flagrante, revelou as insuficiências da palavra como documento da consciência social e como matéria‐prima do conhecimento. “A composição fotográfica é também uma construção imaginária, expressão e momento do ato de conhecer a Sociedade com recursos e horizontes próprios e peculiares” (p.11). Não existem pesquisas no âmbito das Ciências Sociais sem a interação entre o pesquisador e o objeto que estuda. A Sociologia tem como material não a realidade em si, mas a interpretação dessa realidade que o homem simples faz dos processos interativos que vive em confronto com as referências estruturais. A fotografia tem as limitações da visão social do fotógrafo e da invisibilidade de várias dimensões da realidade social.
Devemos lembrar que o pesquisador não só produz conhecimento, mas também interage na realidade investigada, podendo alterar o conhecimento do senso comum referencial das populações estudadas. O Sociólogo e Antropólogo têm que estar atento as regras sociais das comunidades em estudo, se não pode acabar influenciando o corpo coletivo invisível. Também devem dominar o código de visualidade dos fotógrafos, já que a fotografia pode ser assimilada como peça de afirmação e veículo dos valores, normas e instituições tradicionais. “A imagem produzida pelo homem, segundo diferentes concepções e estilos, diz ao homem, em cada época, quem o homem é” (p.20). O grande desafio do pesquisador é compreender o monopólio do imaginário documentado pelo fotógrafo.
A fotografia é uma expressão das grandes ilusões da Sociedade contemporânea, ou seja, a paralisação da vida e a ilusória contenção do envelhecimento e da morte. Também possui polissemia e multifuncionalidade, o que conduz sua leitura, na Sociologia, à contradição entre o verossímil e o ilusório. Devido a sua ilusão polissêmica, a fotografia pede uma Sociologia do conhecimento visual para ler e interpretar as imagens. Para o sociólogo, ela é constituída da realidade contemporânea e, de certo modo, objeto e também sujeito.
A reflexão sociológica sobre a fotografia pode contribuir para o conhecimento de suas limitações como forma de documentação e demarcar com segurança o seu lugar na Sociologia. Ela pode acrescentar a indagação sociológica, porque a câmara e a lente permitem ver o que, por outros meios, não pode ser visto. Sendo um dos componentes de uma sociedade intensamente visual e dependente da imagem, a fotografia não é o melhor retrato da sociedade, pois ela é um documento da tensão entre a ocultação e revelação, característica da cotidianidade.
Para historiadores e sociólogos, a fotografia congela um momento do processo social, podendo ser usada como documento histórico e sociológico. Mas esse pressuposto esbarra na polissemia da imagem fotográfica. Na análise que o autor faz do filme Blow‐Up, de Michelangelo Antonioni (1966), e da novela The Photograph, de Penépole Lively (2003), mostra que a fotografia tece uma história, não congela, entrosa‐se dinamicamente nas necessidades do processo social. Nos dois casos, a fotografia é um documento da incerteza e não da certeza.
A fotografia, quando disseminou como meio popular de expressão visual, transformou os cenários da vida cotidiana em imagem fotográfica, como um meio de registrar e guardar a memória. “A fotografia junta fragmentos visuais. Sem a imagem a cotidianidade seria impossível. Mesmo quando não temos uma fotografia para cada situação, o imaginário cria a imagem em nós e para nós. De certo modo, em boa parte, hoje, pensamos fotograficamente” (p.43).
Devido a esse esforço de representar, a fotografia se propõe como apontamento da memória, como lembrete do que se perdeu no cotidiano. Ela também diz menos do que o acontecido. A modernidade, quando da definição da pessoa e das próprias relações sociais, tornou‐se dependente de imagens e do enquadramento do visto no imaginado. Com isso, há a negação da idéia que a fotografia é o congelamento de um instante e pode ser tratada como um corte no processo social e no cotidiano. Ela não documenta o cotidiano, faz parte do imaginário e cumpre funções de revelação e ocultação na vida cotidiana, as pessoas representam‐se na Sociedade e para a Sociedade quando são fotografadas.
Decifrar o que se esconde por trás do visível e do fotográfico é um desafio de natureza metodológica para os cientistas que trabalham com expressões visuais da realidade social. Segundo o autor, é preciso abrir mão de uma vez, por todas da ilusão de que a fotografia é um documento socialmente realista e objetivo. O fotógrafo, no seu ato de fotografar, não tem clareza a respeito da dimensão antropológica de sua fotografia.
Nas fotos tiradas da casa de detenção Carandiru, antes de sua demolição, o autor demonstra que não é preciso que as pessoas estejam presentes nas fotografias para revelarem sua presença. Nas diversas fotos de objetos deixados pelos presidiários, é possível enxergar através de suas ocultações e segredos, as marcas, desejos e sonhos por eles deixados.
No capítulo referente ao mestre Vitalino, o sociólogo propõe que suas obras refletem os limites da cultura da pobreza e sua marginalidade permitiu que representasse o sertão que estava além de seu próprio mundo. Suas obras não retratam especificamente o sertão, e sim o que a cultura urbana pensa.
Desde sua origem, a fotografia é dada como captura da ilusão do similar e do documental. Nela há tensões que empurram as imagens para fora dos enquadramentos, propondo significados ocultos e não intencionais. Há também formalizações resultantes das relações de poder e dos modos de dominação social política. Toda fotografia tem um “ver a mais”, já que nenhum fotógrafo, mesmo amador, é passivo diante do que está fotografando.
A Sociedade da multiplicação e da acumulação descobriu, na riqueza do fragmentário, um novo modo de ver socialmente, e, portanto, de interpretar e interpretar‐se. A fotografia foi capturada pelas precisões da nitidez própria da Sociedade industrial e moderna. “Se a pintura optou pela liberdade da busca, a fotografia optou residualmente pela servidão ao supostamente documental” (p.159).
A polissemia da fotografia não decorre apenas das múltiplas leituras que possam ser feitas, o objeto também tem uma carga de significados que o fotógrafo pode anular ou mutilar. Como documento, ela é parte dos confrontos de significados e significantes.
Por fim, o livro mostra como o visual está se tornando cada vez mais importante para compreensão dos fatos e fenômenos sociais. Através das fotografias, Martins passeou pela fé, pela cultura popular através das obras de mestre Vitalino, e visitou a presença do ausente no Carandiru. Mas deixou claro que, por trás de toda fotografia, há a imaginação e a perspectiva do fotógrafo, e as ocultações com a combinação de ficção e realidade da própria fotografia. Portanto, um livro para ser consultado por todos os estudiosos que trabalham o documento visual, em especial a fotografia..
Resenhista
Dércio Cardoso Reis – Graduando em História Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS/CNPq)..
Referências desta Resenha
MARTINS, José de Souza. Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo: Contexto, 2008. Resenha de: REIS, D. C. Ponta de Lança- Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v.2, n. 4, p.101-103, abr./out. 2009. Acessar publicação original [DR].
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