Sociedades açucareiras / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2008
Ilustrando quão importante é o papel do açúcar no desenho das sociedades modernas do Brasil, e mais amplamente, de todas as “terras de açúcar”, o presente número da Clio apresenta um dossiê bastante abrangente geográfica e tematicamente. A transdisciplinaridade se impõe na abordagem das sociedades açucareiras, na medida em que, no mundo moderno ocidental, o açúcar, uma das “substâncias duradouras”, nas palavras do Prof. Mintz, implica uma cadeia de produção e consumo envolvendo inúmeras dimensões, que podem ser melhor apreendidas com as ferramentas analíticas da história e suas disciplinas irmãs, antropologia, sociologia, geografia entre as mais presentes neste volume.
Os autores que contribuíram com o resultado de suas pesquisas e reflexões, exploraram âmbitos variados, incluindo questões dietéticas, energéticas no sentido mais amplo, jurídicas e culturais, além de contemplar a dinâmica de movimentos sociais, sejam eles históricos ou mais contemporâneos que colocam em evidência a condição dos atores principais desta saga, seja na origem de suas organizações de defesa modernas, seja nas dimensões que a abordagem indigenista ou agroecológica, mais atuais, propõem. A produção, geralmente privilegiada na literatura acadêmica sobre o assunto, aparece aqui em prismas singulares, agronômicos, agro-ecológicos no sentido da resistência à monocultura, ou da dimensão das relações de trabalho e dinâmicas de luta dos atores sociais que são os trabalhadores rurais.
Assim, o Professor Sidney Mintz nos honra com um artigo que associa de forma desafiadora as relações mútuas de energia e cultura. Grande especialista da história do açúcar, ele traça paralelos entre períodos dos sistemas de alimentação mundial, antigamente autárquicos e hoje em dia cada vez mais integrados. Paralelos ousados são traçados com questões energéticas atuais, muito presentes no horizonte brasileiro, físico ou metafórico, que está ocupado maciçamente pela proposta do etanol, reputada progressista.
Vários artigos se dedicam às sociedades coloniais que nasceram como sociedades açucareiras, no Brasil, mas também no Caribe. Em um estudo usando o conceito de gênero para analisar as sociedades pósabolição nas Antilhas francesas, Myriam Cottias debate a evolução das relações familiais examinando os efeitos desta transformação social sobre as relações de gênero no seio de uma sociedade que se estruturou sobre a hierarquia racial e a partição entre “Livres” e “Escravos”.
As sesmarias no Pernambuco do início da colonização também refletem, na fundação dos primeiros engenhos, o entrelaçamento das famílias dos primeiros proprietários. Socorro Ferraz estabelece a relação entre estes e a criação de vilas e povoados na Zona da Mata Sul de Pernambuco. No mesmo contexto pernambucano, Virgínia Almoêdo explora o processo de retomada, pela coroa portuguesa, dos poderes jurisdicionais – notadamente para a nomeação de cargos públicos da Justiça – originalmente doados aos capitães-donatários.
Vários artigos exploram a dimensão cultural, nas suas expressões, mas também nos usos e interpretações que lhes foram atribuídos. Assim, Severino Vicente revista conceitos sobre a cultura na região sacaricultora, defendendo a proposta de abandonar o exclusivismo da visão desta a partir da Casa Grande, e propondo explicações mais atentas às tensões das relações sociais existentes também nas expressões culturais.
A propósito de criação fílmica, Caio Maciel interpreta as representações da paisagem canavieira procurando evidenciar como o espaço geográfico desta região adquire o significado cultural de síntese regional, exercício que o pesquisador já realizou a propósito do Sertão.
O olhar de três escritores franceses influentes, cujos escritos se escalonam ao longo do século XX, é analisado por Regis Tettamanzi. A respeito de Luc Durtain (viajante), Roger Bastide (sociólogo) e Jean- Christophe Rufin (romancista que atuou como diplomata) o autor revela elementos comuns na visão que estes textos dão do Recife, capital açucareira, ao mesmo tempo em que evidencia as especificidades ligadas aos respectivos gêneros.
A ecologia ocupa os dois autores seguintes. O historiador Thomas Rogers descreve a história da mudança das variedades de cana-de-açúcar nos canaviais de Pernambuco, a emergência e profissionalização de um setor de cientistas e assessores agronômicos. Ele revela também as reações dos plantadores pernambucanos a estas inovações. Enquanto que o sociólogo Marcos Figueiredo revela experiências em andamento de camponeses sem terra e trabalhadores rurais e urbanos da região canavieira pernambucana que se empenham em desenvolver uma ação social coletiva, se constituindo como “sujeitos da reforma agrária”. Contra o modelo do latifúndio monocultor, eles alcançam uma melhoria das condições de vida e da autoconfiança das famílias camponesas assentadas.
Nas memórias dos índios Xukuru, a migração para a Zona da Mata Sul de Pernambuco, chamada “o Sul”, foi causada pelas violências dos fazendeiros invasores das terras do antigo aldeamento de Cimbres. No artigo de Edson Silva, esta fase mais recente da secular desapropriação dos primeiros habitantes das terras de açúcar nordestinas é examinada no aspecto das vivências na migração para a zona canavieira onde estes trabalhadores se estabeleceram reinventando suas relações no mundo do açúcar.
A gênese dos movimentos reivindicativos dos trabalhadores rurais constitui o assunto analisado por Anthony Pereira, particularmente a ‘passagem’ das Ligas Camponesas para os sindicatos de trabalhadores rurais, realçando o papel do Estado neste processo. No mesmo âmbito, Socorro Abreu trata da comunicação sindical, durante o período da ditadura: programas de rádio, jornais, panfletos, encenações, etc. reforçaram o trabalho de formação, de divulgação ou de propaganda, fundamentais para a difusão da atuação destes órgãos de defesa dos trabalhadores rurais. Os ‘direitos’ constituem o elemento principal das temáticas assim divulgadas. A promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, assim como a instalação de Juntas de Conciliação e Julgamento da 6ª Região do Tribunal Regional do Trabalho permitiram Christine Rufino Dabat aos assalariados rurais da zona canavieira fazer valer o aparato legal que finalmente os protegeu. O artigo seguinte, concluindo o dossiê “Sociedades Açucareiras”, traz dados extraidos dos arquivos do judiciário que fornecem um perfil das ações assim empreendidas.
O artigo de Richard Marin analisa as semelhanças e as diferenças entre as trajetórias pastorais dos prelados Helder Câmara e Oscar Romero. Expressões famosas da “Igreja dos pobres” no Brasil e em Salvador, os dois religiosos de destaque tiveram itinerários pessoais influenciados pelo contexto da renovação da igreja católica, proposta pelo Concílio Vaticano II.
Isabel Guillen, por sua vez, propõe-se a discutir as implicações do ensino de História da África, nos diversos níveis educacionais, nas políticas afirmativas para afro-descendentes, na definição de identidades e na memória social, principalmente na memória da escravidão. Seu objetivo é discutir a importância do estudo da história da África e da cultura afro-descendente para a consolidação da cidadania e para a definição dos patrimônios culturais no Brasil.
O último artigo desta Clio versa sobre as relações de organização espacial urbana e rural, representada pela vila de Olinda e por uma fazenda beneditina, ambas localizadas na Capitania de Pernambuco, considerando a estrutura social e de poder vigente, isto é, a Igreja, o poder do Estado e o povo. Para tanto, Mércia Carréra e Leandro Surya levam também em consideração dados arqueológicos.
Aura González Serna apresenta o livro de Edvânia Torres Aguiar Gomes. Recortes de Paisagens na Cidade do Recife. Uma Abordagem Geográfica. A obra se propõe a uma leitura de eixos escolhidos no tecido urbano, usando do conceito de paisagem em diversas definições, numa perspectiva sócio-ambiental.
Agradecimentos são devidos a todos os autores que participaram generosamente com seus escritos. Ademais, este número da Clio contou com a colaboração dos colegas Thomas Rogers e Bartira Ferraz Barbosa, esta última tendo concebido a capa. Agradeço à artista plástica Lorane Silva Barreto e ao fotógrafo Gustavo Maia, que cederam respectivamente a obra e a fotografia da lajota. Esta peça remete duplamente ao assunto aqui focado, pela técnica ‘canabarro’ utilizada pela artista e pela escolha da temática: o desenho é feito com caldo de cana e o traçado lembra trabalhadores africanos deportados para, precisamente, produzir açúcar.
Para a revisão final das traduções sou muito grata pela ajuda de alunos do Departamento de História da UFPE: Mateus Samico Simon, Michel Gomes da Rocha e, sobretudo, José Marcelo Marques Ferreira Filho, que contribuiu também para a edição final dos textos aqui apresentados. A equipe da Editora Universitária da UFPE mostrou, como sempre, muita perícia e empenho na publicação da revista.
Christine Rufino Dabat
DABAT, Christine Rufino. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.26, n.2, jul / dez, 2008. Acessar publicação original [DR]