A produção Sociedade e cultura na África romana de Julio Cesar Magalhães de Oliveira, faz parte da coleção Entr(H)istória da editora Intermeios que populariza trabalhos de historiadores do programa de pós-graduação da USP, existente desde a década de 1970. Seguindo o exemplo de outras publicações da coleção, a produção de Oliveira nos brinda com um texto rico em análises profundas e discursos atuais, inovando em sua abordagem do Norte da África numa antiguidade predominantemente romana e com investigação arqueológica necessariamente plural.
A Arqueologia da África Romana teve início em territórios colonizados, usada estritamente para a reafirmação da superioridade européia por meio da identificação dessas nações com o próprio Império Romano. O paradigma da romanização e a visão eurocêntrica da história do continente africano nortearam as investigações arqueológicas e a historiografia até o início dos trabalhos dos historiadores que propunham descolonizar a história do continente africano. A História da Arqueologia desvela um processo de rupturas e transformações que compreendem a construção de uma disciplina como autônoma e influente como conhecimento científico. A historiografia, desde o spatial turn do século XX, reformulou a compreensão que possuía acerca da realidade social, sendo o advento da New Archaeology, ou da arqueologia processual, responsável por desenvolver técnicas de análises propriamente arqueológicas e transformar o lugar da análise sociológica da realidade material.
Na década de 60, a arqueologia processual transformou o modo como a Arqueologia era encarada, deixando de ser uma disciplina auxiliar responsável por encontrar fatos, fact findings, que servissem à análise dos historiadores, e passando a ser uma disciplina autônoma capaz de realizar análises, desenvolvendo, para tanto, suas teorias próprias (FUNARI, 1988; MARTINS, 2018). Entretanto, no decorrer das décadas de 70 e 80, alguns arqueólogos, como Ian Hodder (1984), Daniel Miller (1984), Christopher Tilley (1984), apresentaram críticas a essa Arqueologia, apontada como positivista, por acreditarem empreender uma análise de dados completamente objetiva (JOHNSON, 2010, p. 143). A arqueologia pós-processual, ou interpretativa, compreende os dados como produtos da interpretação desenvolvida com base em aportes teóricos, mediante um determinado padrão e recorte de análise de materiais e, portanto, propõe análises que privilegiem a agência de indivíduos e grupos sociais subalternos, bem como a potência desses perante ordenamentos sociais (JOHNSON, 2010, p. 147-151). Tal processo coincide com o dos debates acerca do paradigma da romanização, apontando a necessidade de superação das visões eurocêntricas e de oposições binárias dessa realidade histórica.
É com essa perspectiva de análise que Oliveira constrói a sua Introdução, trazendo o desenvolvimento urbano e rural na região do que foi a África Proconsular, salientando a importância da ocupação fenícia e o posterior domínio romano. Por meio de suas escolhas de abordagens, o autor adianta o tratamento que pretende depreender nos seus capítulos e que acredita ser o necessário no atual contexto historiográfico, dizendo que: “Nas últimas duas décadas, os trabalhos sobre a sociedade e a cultura na África Romana se afastaram de modelos normativos e abstrações preconcebidas, voltando-se para questões de identidade social e para os processos concretos de formação de grupos” (OLIVEIRA, 2020, p. 28).
No primeiro capítulo, Nomadismo e pastoreio, a dicotomia “nômades” e “sedentários” é analisada a partir de novas perspectivas desveladas pelos estudos do pastoralismo na África do Norte. Fazendo uso de recentes fontes arqueológicas levantadas pelas escavações e prospecções do Projeto Fezã (1997-2001) e o Projeto Migrações do Deserto (2007-2011), dirigidos por David Mattingly e referentes ao território dos garamantes, na região desértica do Fezã, o autor buscou desvelar uma relação complexa instituída por uma sociedade de forma indissociável agrária, comercial e pastoril. Com o objetivo de permitir a abordagem de populações pastoris nas províncias romanas, as prospecções realizadas na região de Kasserine, nas altas estepes da Tunísia, e dirigidas por R. Bruce Hitchner entre 1982 e 1989, contribuem para a revisão dessa historiografia eurocêntrica.
No capítulo O forte romano de Gholaia (Bu Njem), é apresentado um conjunto de novos estudos acerca do exército e as fronteiras africanas, destacando os debates suscitados na década de 1970 e 1980 por Yan Le Behoc (1989) e Elizabeth Fentress (1979), Brent Shaw (1983) e David Cherry (1998). Cooperando com a discussão sobre o processo de romanização e o papel das fronteiras, na defesa, nas inspeções, na divisão de tribos e no trafego de pessoas e mercadoria, são usados dados arqueológicos das escavações do forte de BuNjem realizadas pela equipe francesa de René Rebuffat entre 1967 e 1976.
No capítulo As grandes inscrições sobre os colonos e arrendatários dos domínios imperiais, o autor analisa o complexo sistema que permitia a relação entre coloni e conductores nas propriedades fundiárias imperiais do norte da África. Para tal, o autor traduz e analisa sete reclamações dos coloni das regiões de Henchir Mettich, Aïn el-Djemala, Aïn Ouassel, Lella Drebblia, Souk-el-Khmis, Gasr Mezuar e Aïn Zaga contra os procuradores e os conductores dessas terras, sendo datadas do século II ao início do século III.
No capítulo seguinte, Camponeses e cultura escrita, o autor engaja uma discussão surgida no capítulo anterior, passando a analisar a gerência desenvolvida pela introdução da escrita no protesto camponês, iniciando pela abordagem de Leslie Dossey (2010). Para analisar a capacidade de penetração da cultura escrita no campo são utilizadas as tabuinhas Albertini, que compreendem um total de 34 documentos descobertos em 1928 no semiárido argelino-tunisiano, e contém registros de documentos diversos, mas em maioria contratos de venda redigidos no fundus Tuletianensis.
No capítulo Trabalho e sociabilidade plebéia, busca-se demonstrar a operacionalidade da análise da cultura material em conjunto com os documentos escritos para a compreensão das condições de vida e de trabalho nas cidades norte-africanas. Para isso, são usados relatórios de escavações dos sítios arqueológicos de Timgad e de Cartago, bem como os textos escritos por Apuleio de Madaura (125-170) e Agostinho de Hipona (354-430). Os vestígios arqueológicos dos bairros artesanais e/ou comerciais de ambas as cidades, quando relacionadas às fontes escritas permitem reinterpretações das relações entre trabalho e habitação.
No capítulo Grupos, identidades e estratégias sociais, é apresentada uma análise do uso da abordagem da identidade como subterfúgio estratégico, investigando as vantagens e as limitações do estudo da pluralidade interna do indivíduo e suas contribuições à discussão do conceito de identidade. Para operacionalizar a abordagem aplicada por Éric Rebillard em Christians and Their Many Identities in Late Antiquity (2015), o autor utiliza como fonte os sermões do bispo Agostinho de Hipona do início do século V, e aborda o modo como os cristãos da comunidade de Cartago utilizam as identidades “cívica” e “cristã”.
No capítulo As Atas de Munácio Felix e a perseguição de Diocleciano na África, o autor realiza uma nova tradução do documento de busca e de confisco dos bens da Igreja de Cirta, na Numídia, em 303, apresentado como as Atas de Munácio de Félix como sendo referente ao responsável pela diligência contra os cristãos. Destaca-se a importância do aprofundamento da análise do contexto da perseguição de Diocleciano, bem como a investigação das relações firmadas por essa comunidade local com os então cristãos perseguidos.
Dando sequência à abordagem das narrativas dos mártires, no capítulo Dos arquivos da perseguição às histórias dos mártires o autor analisa a transformação da hagiografia do século III ao século V, indicando os fatores de sociabilidade que influenciaram no uso dos textos oficiais na construção de narrativas a serem produzidas, incrementadas e difundidas pelas comunidades cristãs. São utilizados como fontes de análise os Atos de São Galônio e a Paixão dos mártires de Abitina, abordando o conflito entre donatistas e nicenos em torno das obras.
No capítulo Basílicas cristãs e violência religiosa o embate entre os grupos cristãos donatistas e católicos entre os séculos IV e V d.C. é analisado a partir da tomada ou da defesa das basílicas cristãs. A análise das duas basílicas de Sbeitla, pertencentes aos donatistas e católicos, em Timgad, permite a compreensão da construção da topografia cristã desses dois grupos dispares e as relações sociais estabelecidas nesses espaços da cidade, indistinguíveis em suas estruturas externas, mas em suas práticas litúrgicas e compreensões da espacialidade do sagrado.
Permanecendo na temática cristã, no capítulo Pode-se falar de mobilização popular nos conflitos religiosos da África Vândala?, o autor propõe a investigação dos conflitos religiosos entre arianos e nicenos entre os séculos IV e V como uma mobilização popular nos padrões apreendidos no conflito religioso com os donatistas. A partir de abordagens apresentadas por Yves Modéran (2003) que compreende as transformações trazidas pela conquista da África pelos vândalos, são investigadas as atuações dos reis vândalos e dos clérigos nicenos e arianos na gerência de mobilizações populares.
Em suma, a obra Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduções desvela novas leituras historiográficas acerca do Norte da África que rompem com o eurocentrismo e a oposição binária, apresentando discussões que constroem narrativas possíveis para a investigação do historiador de África e instrumentos de análise que permitem a compreensão do percurso investigativo do autor. Ademais, a demonstração da relação de fontes materiais e fontes textuais como instrumentos coesos e sine qua non para a pesquisa em História da África reafirma a importância da Arqueologia. A divulgação da pesquisa historiográfica como plural, bem como da operacionalização dos dados arqueológicos, insere a obra de Oliveira no importante campo da popularização das pesquisas historiográficas que trabalham a espacialidade do continente africano.
Referências
FUNARI, P. P. A Arqueologia. São Paulo: Editora Ática, 1988.
JOHNSON, M. Archaeological Theory: An Introduction. Oxford: Blackwell, 2010.
OLIVEIRA, Julio Cesar Magalhães. Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduções. São Paulo: Intermeios, 2020.
Resenhista
Igor Pereira da Silva – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS/UFES). E-mail: pereiradasilva.igor@gmail.com
Referências desta Resenha
OLIVEIRA, Julio Cesar Magalhães. Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduções. São Paulo: Intermeios, 2020. Resenha de: SILVA, Igor Pereira da. A Historiografia e a Arqueologia da África romana. Dimensões – Revista de História da UFES. Vitória, n. 49, p. 305-309, 2022. Acessar publicação original [DR]
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