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Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduçõe | Júlio César Magalhães de Oliveira

Júlio César Magalhães de Oliveira, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), apresenta uma original coletânea de ensaios sobre a sociedade e a cultura na África romana, após sua tese já clássica Potestas populi: participation populaire et action collective dans les villes de l’Afrique romaine tardive (vers 300-430 apr. J.-C.), de 2012, coincidindo com a publicação de Late antiquity: the age of crowds?, um artigo que, apesar de recém-divulgado – 2020 – no periódico Past & Present, já repercute. O aparecimento do volume em português deve ser saudado por permitir o acesso de um público mais amplo ao tema, em particular de estudantes ávidos de leituras recentes, inovadoras e produzidas aqui mesmo, no Brasil. Neste aspecto, convém enfatizar a clareza e a facilidade da leitura, assim como o seu estilo envolvente. Mapas, plantas, imagens de época e fotos completam a preocupação de Oliveira com a fácil compreensão do leitor, assim como o uso de notas de pé de página, que apresentam referências e comentários de aprofundamento, mas podemos ler o texto principal de forma direta para melhor aprendermos os argumentos. Tais recursos incentivam a tão necessária segunda leitura, que possibilita o aproveitamento pleno das informações e discussões trabalhadas pelo autor.

Em termos teóricos ou de perspectiva, são discutidas seis polaridades, que estão disseminadas por todo o volume:

  • Resistência/integração;
  • Estudo da tradição textual/cultura material (Arqueologia);
  • Modelos normativos/teoria pós-colonial (conflitos);
  • Restrição às elites/subalternos vistos de baixo;
  • Historiografia: produção mais antiga/recente;
  • Modelos baseados em dicotomias/ênfase na interação.

Nem sempre os estudiosos do passado – historiadores, arqueólogos, classicistas etc. – explicitam a variedade de interpretações e apresentam, de forma explícita, as escolhas interpretativas adotadas. Isso pode induzir ao engano, na medida em que o leitor, ao ser privado de um contexto interpretativo claro, pode iludir-se e acreditar que o que está a ler é o que de fato ocorreu e/ou o estado atual e consensual dos temas tratados. Fatos e consensos são sempre inefáveis, e quanto maior for a maestria retórica do autor, mais alto é o risco de o leitor ser ludibriado. A explicitação epistemológica, por outro lado, induz o leitor a refletir sobre a documentação e os seus limites, bem como sobre os argumentos apresentados e a sua variável capacidade de persuasão. A adoção bem-sucedida desta estratégia de inclusão do leitor demonstra a destreza incomum de Oliveira e constitui excepcional característica de sua obra.

Caminhemos pelos capítulos. No primeiro, Oliveira questiona a oposição entre nômades e sedentários em relação simbiótica ao relacionar pastoreio e comércio caravaneiro pela junção de fontes literárias e arqueológicas, como as prensas de azeite. Em seguida, o forte romano de Gholaia – atual Bu Njem – agencia conceitos recorrentes, como simbiose e história social. Esta liga-se ao estudo das relações sociais, aos conflitos e às lutas. Já a simbiose, “vida em comum”, segundo o sentido original, ressalta a interação de diferentes. O uso de medidas de volume indígenas, do latim coloquial e do recrutamento local de tropas se insere em um contexto em que os habitantes locais não são passivos, mas ativos. No estudo das grandes inscrições sobre colonos e arrendatários de domínios imperiais, adquirem relevo camponeses e meeiros indígenas. A diversidade de aspectos e interpretações constitui uma lição metodológica da abordagem que perpassa todo o livro. A respeito da legislação imperial sobre o cultivo da terra e a sua gestão, analisada no terceiro capítulo, Oliveira apresenta quatro diferentes explicações ou objetivos das medidas imperiais, complementares em princípio:

  • Incentivar um aumento de produtividade;
  • Vigilar o interesse da humanidade em uma lógica humanista;
  • Responder a uma pressão demográfica e a uma demanda dos próprios colonos;
  • Preservar os interesses de longo prazo de colonos e do imperador frente àqueles imediatos dos arrendatários.

Ao tratar de camponeses e da cultura escrita, no quarto capítulo, o autor explicita a teoria pós-colonial em novas formas de articulação reivindicativas, tendo a escrita e o protesto no campo como sinais da difusão da alfabetização, assim como o uso do latim, eivado de indigenismo, na luta por direitos, em solidariedade entre si. Trabalho e sociabilidade plebeia, título do capítulo seguinte, mostra como a Arqueologia ultrapassa os limites da aristocracia. A resistência a um Estado totalitário sobre o mundo do trabalho, proposta por H. R. Hurst, pode ser contraposta à atenção às formas populares de cooperação e de sociabilidade, como nas termas. Os vestígios arqueológicos nos permitem ir além dos limites das fontes aristocráticas e dos preconceitos de classe da própria historiografia moderna.

O sexto capítulo, ao tratar de grupos, identidades e estratégias sociais, principia pela discussão da teoria social e da crítica aos modelos normativos, às identidades fixas e ao nacionalismo moderno. Sobressai-se a passagem do modelo de benemerência cívica do período imperial dos primeiros séculos, para aquele cristão, voltado aos pobres e à Igreja, a partir do século IV, como propõem Paul Veyne, Évelyne Patlagean e Peter Brown. “Povo” e “pobres” não eram alternativas irreconciliáveis, mas definições estratégicas. Foi a ação popular autônoma e agressiva a constranger Agostinho de Hipona a demandar ações contra os pagãos, visto que Santo Agostinho não queria perder o controle da situação. Não persuadiu, foi forçado a agir.

No estudo das Atas de Munácio Félix e da perseguição de Diocleciano, ressalta- -se a presença de uma comunidade cristã em Cirta – pequena, mas rica e despreparada para a perseguição. Oliveira explicita aqui, assim como alhures, os critérios de tradução, algo de particular importância do ponto de vista histórico, pois justifica o uso de termos como triclínio, em vez de sala de jantar, ainda que prefira “vocês”, não “vós”, como em outras ocasiões. Os arquivos da Perseguição e as histórias dos mártires – hagiográficas, produzidas a partir do século III – serviram tanto a católicos quanto a donatistas como fontes de autenticidade. Oliveira não hesita em lembrar das guerras de religião na época moderna, dialogando com Natalie Zemon Davis, para estudar as basílicas cristãs e a violência religiosa, muito menos de recorrer a estudiosos da pré-história, como Chris Gosden. Recorre, ainda, ao aspecto indutor da ação da cultura material na forma do hábito (habitus), conceito sociológico tratado por Pierre Bourdieu cuja origem está no frequentativo do verbo haver aplicado à materialidade para Daniel Miller e Lynn Meskell. Ademais, menciona o caráter multissensorial dos edifícios de culto. Na basílica donatista, Domus Dei (Casa de Deus) e Aula Pacis (Morada da Paz) são inscrições que denotam a separação dos seguidores dos testemunhos – ou mártires – e donatistas dos universalistas – ou católicos. Domus não se restringe ao sentido de edifício, podendo se referir a uma comunidade – p. ex., a expressão domi militiaeque – e à vida comum civil dentro das muralhas da cidade e em meio aos soldados, para além dos muros. Aula remete a um lugar ao ar livre, em que sobra espaço, como que a dizer que a comunidade não se limita às paredes do edifício, mas compreende as suas testemunhas donatistas, onde quer que estejam. Há, pois, dois aspectos: um interno aos muros do edifício (domus) e o outro em meio aos outros (aula). No primeiro se encontra Deus, enquanto entre os outros resta a junção (pax) dos crentes, frente aos que cederam: os católicos comprometidos, segundo eles, com o exercício do poder terreno e temporal.

No último capítulo, Oliveira considera a mobilização popular nos conflitos religiosos da África vândala e conclui que os clérigos nicenos ou católicos não estavam mais em condições de organizar uma resistência efetiva apelando à mobilização popular, visto que considera a conquista dos vândalos como o marco de uma nova era na África do Norte.

Talvez a palavra que possa captar o conjunto da obra de Oliveira seja fluidez, uma vez que ele sempre apresenta análises abertas a revisão e tem constante atenção ao que muda na documentação, na sua interpretação, na historiografia e na teoria social. Aspectos sociais, culturais, religiosos ou econômicos da África romana aparecem complexos, contraditórios, conflitivos e em simbiose. Dicotomias como vontade de integração e resistência se apresentam como polos de uma gradação contínua e em variação perpétua. Ademais, conceitos como nomadismo, sedentarismo, pastoralismo, alfabetização, solidariedade, autonomia e arrendamento nunca aparecem rígidos ou imutáveis, mas em fluxo, sujeitos a revisão. Vem-me à mente as palavras conclusivas do coro de As Bacantes, de Eurípides:

Eurípedes, As Bacantes 1388-1392:

ΧΟΡΌΣ

πολλαὶ μορφαὶ τῶν δαιμονίων,

πολλὰ δ᾽ ἀέλπτως κραίνουσι θεοί.καὶ τὰ δοκηθέντ᾽ οὐκ ἐτελέσθη,

τῶν δ᾽ ἀδοκήτων πόρον ηὗρε θεός.

τοιόνδ᾽ ἀπέβη τόδε πρᾶγμα.

CORO

Muitas as formas das divindades, os deuses ordenam muito imprevisto. O esperado não chegou,

Deus encontrou passagem para o inesperado. Assim, sobreveio o fato.

(trad. de Pedro Paulo A. Funari)

CORO

Muitas são as formas do divino,

e muitas as ações imprevistas dos deuses.

O que esperávamos não se realizou;

para o inesperado o deus achou caminho.

Assim terminou este drama.

(trad. de João Batista de Mello e Souza)

A palavra-chave é ἀδόκητος, derivada de δοκέω, que significa esperar, pensar – δόξᾰ (opinião) –, significa o improvável, o não aparente ou o impensável – traduzida por mim como inesperado – e talvez resuma, de alguma maneira, a abertura ao imprevisto sugerida pela abordagem de Júlio César Magalhães de Oliveira. Ao final da leitura, sai-se com a sensação de expectativa por outras inesperadas páginas, ainda em gestação.

Referências

EURÍPEDES. As bacantes de Eurípedes. Tradução Eudoro de Sousa. São Paulo: Duas cidades, 1974.

EURÍPIDES. As bacantes. Tradução de João Batista de Mello e Souza. Secretaria da Educação do Paraná, Curitiba, [201-?]. Disponível em: http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/as_bacantes.pdf . Acesso em: 12 jul. 2022.


Resenhista

Pedro Paulo A. Funari – Professor titular do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). E-mail: ppfunari@uol.com.br


Referências desta Resenha

OLIVEIRA, Júlio César Magalhães de. Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduções. São Paulo: Intermeios, 2020. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. O inesperado no estudo da África Romana. Revista de História. São Paulo, n. 181, 2022. Acessar publicação original [DR}

Itamar Freitas

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