Sociabilidades e territorialidade: A construção de sociedades de afrodescendentes no sul de Santa Catarina (1903/1950) | Júlio César da Rosa
O passado de Santa Catarina, cunhado nos discursos oficiais e acadêmicos do século XX, foi atrelado a uma memória, pautada, exclusivamente no imigrante europeu. Memórias formuladas e manuseadas, através de coordenadas ideológicas hegemônicas da sociedade moderna ao longo do tempo, fixaram a imagem de uma Santa Catarina branca e civilizada, incipiente ou quase inexistente da presença outros sujeitos, experiências e culturas que enfrentavam o quotidiano das cidades e das zonas rurais, marcadamente por diversos modos de vida.
Ocorre que, apesar dos territórios da região sul do Brasil e em vários países da América, receberem um contingente significativo de africanos, suas memórias e dinâmicas sociais angariadas no mundo diaspórico, não foram levadas em conta nas narrativas das fundações e desenvolvimento de cidades catarinense, relegando-as uma invisibilidade histórica.
A presença africana, entretanto, vem sendo protagonista nas últimas quatro décadas, dos estudos realizados por historiadoras e historiadores, num esforço de renovação das práticas historiográficas catarinenses, em diálogo com vertentes da História Social. Sua profunda dimensão, configurada num quotidiano de relações verticais e horizontais, desde ambientes de cativeiro a que foram submetidas, até as novas reorganizações e relações de solidariedade cunhadas na sociedade do pós-abolição, onde, incorporando elementos em contato com outros códigos culturais, deram novos significados socioculturais a sua situação em diáspora, revelando sujeitos partícipes e atuantes na sociedade e cultura de Santa Catarina.
A obra aqui resenhada, é fruto deste movimento historiográfico. Para além da denúncia da invisibilidade da presença de africanos e seus descendentes no passado catarinense, Sociabilidades e territorialidade: A construção de sociedades de afrodescendentes no sul de Santa Catarina (1903/1950) de Júlio César da Rosa reúne aspectos instigantes da pluralidade de práticas culturais dos afrodescendentes da cidade de Laguna, apresentando parte de uma multiplicidade de experiências e vivências afros em Santa Catarina.
Longínqua de interpretações homogeneizantes e racializadas seculares sobre as populações de origem africana, o pesquisador nos provoca a repensar conceitos, temas, metodologias, estratégias e olhares ao narrar como estes sujeitos históricos interpretavam e viam o mundo nessa nova forma de viver sob o prestígio da liberdade num Brasil pós-abolição. O emaranhado de análises e reflexões é resultante de constantes revisões e leituras adquiridas durante sua inserção e trajetória intelectual.
Júlio César da Rosa, é historiador e professor efetivo na rede estadual de Santa Catarina e municipal de Criciúma. Atualmente vem desenvolvendo seu estudo de doutorando pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) nas temáticas de história e associativismo negro em Laguna.
A obra é referente ao seu estudo de mestrado realizado na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) amparado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC) onde atuou como pesquisador associado no projeto de pesquisa “Experiências das populações de origem africana em Santa Catarina no pós-abolição”. Ela também resulta, de anseios e pretensões construídos durante sua graduação efetuada na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Neste estudo, o pesquisador buscou compreender duas sociedades recreativas fundadas no início do séc. XX por afrodescendentes na cidade de Laguna, localizada no sul Santa Catarina: a Sociedade Recreativa União Operária criada em 9 de fevereiro de 1903 e o Clube Literário Cruz e Sousa de 29 de junho de 1906.
Mergulhado no contexto do pós-abolição e dotado de todas as suas tramas históricas, seu objetivo é apreender aspectos das experiências de afrodescendentes, em especial, nos espaços de sociabilidade destes dois clubes, fundados por pessoas de origem africana, numa cidade localizada na região sul de Santa Catarina. O autor, busca construir uma interpretação possível do passado de como os afrodescendentes se organizavam, se percebiam como cidadãos e quais eram suas aspirações e expectativas enquanto sujeitos sociais. O estudo, finalizado em 2011, resultou na obra recém-publicada e lançada em 2019, composta por três capítulos.
Na introdução, o leitor terá acesso à apresentação do tema central desenvolvido no estudo: associativismo negro no pós-abolição. A pergunta chave que motivou o trabalho do historiador e, ao mesmo tempo formula seu problema de pesquisa, é: “porque a existência de clubes negros na mesma cidade?” Na busca para formular possíveis respostas e interpretações, o pesquisador despiu-se de sua visão racialista a partir do contato com uma bibliografia que o permitiu construir um outro olhar diante das múltiplas vivências e experiências desses sujeitos do passado. A escolha da categoria “afrodescendente” em substituição do termo “negro” foi adotada para afastar-se de pressupostos teóricos essencializantes como a expressão “identidade negra”, já que ela permite referir-se a totalidade de africanos e seus descendentes sem a pretensão de uma identidade étnica e uniformidade cultural, enfatizando, ao contrário da negritude, uma pluralidade da diáspora africana no tempo e no espaço.
Promovendo uma discussão bibliográfica, o autor expõe os teóricos e as categorias que configuram a metodologia adotada para análise de suas fontes. Corroboram com sua interpretação os estudos de Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Maria Odila Silva Dias acerca do conceito de “quotidiano”; E. P. Thompson e sua noção de “experiência”; Michel de Certeau com as ideias de “espaço praticado”, “espaços” e “lugares”; Jacques Le Goff, Michael Pollak, Eclea Bosi e Beatriz Sarlo para dialogar com os usos e funções dos registros orais e da memória como fonte histórica1.
Para promover o estudo do passado da cidade de Laguna, Júlio César da Rosa debruçou-se sobre os seguintes documentos, que possibilitaram interpretar e registrar o quotidiano dos clubes e daqueles que fizeram parte das sociedades recreativas pesquisadas: o jornal O ALBOR de 1903 a 1950, encontrado no acervo do Arquivo Municipal Casa Candemil; entrevistas transcritas dos netos, bisnetos, sócios, membros da atual diretoria do clube União Operária que compõe as fontes orais; documentos iconográficos da cidade de Laguna, do século XX, do acervo particular de Antônio Carlos Marega; fontes iconográficas do IPHAN do mesmo período, atas de registro de fundação dos clubes, localizadas no Cartório de Registro Civil de Laguna e atas de reuniões dos anos de 1903 a 1950 pertencentes à Sociedade Recreativa União Operária.
Intitulado “Sociedades Recreativas e Afrodescendentes: espaços praticados no pós-abolição” o capítulo primeiro, contém um diálogo com algumas das primeiras bibliografias que trataram dessa temática. O autor realiza uma análise das hipóteses que os autores/as antes dele construíram para identificar esses “territórios”, como conduziram a pesquisa e a metodologia selecionada para a investigação, buscando apontar os limites e os avanços que essas pesquisas possibilitaram, para compreender as relações raciais em nosso país em âmbito nacional, regional e local. Neste capítulo, Rosa ainda narra a trajetória e as motivações da escolha do objeto de estudo, destacando sua relevância para a historiografia.
No capítulo segundo “Negros em Laguna”, o autor aborda a cidade na primeira metade do século XX, seus espaços, sua economia, e a composição da sua população. Sob o objetivo de contribuir para dar visibilidade à presença das populações de origem africana na cidade de Laguna, a análise é conduzida com base na discussão com a historiografia catarinense, bem como, por meio do uso de dados de censos populacionais dos anos de 1900 a 1950. O pesquisador também utiliza como fonte, mapas do perímetro urbano e imagens da cidade desse mesmo período, com o objetivo de, ademais de situar sua configuração geográfica, identificar em que espaços as populações de origem africana estavam inseridas.
No capítulo terceiro e final, intitulado “Mulatos e Pretos em Laguna: Identidades e Identificações em Sociedades Recreativas de Afrodescendentes no Sul Catarinense” o historiador analisa a trajetória do Clube Sociedade Recreativa União Operária e do Clube Literário Cruz e Sousa desde suas fundações, no período que compreende a primeira metade do século XX (1903 a 1950). Nele, o autor procura responder as seguintes indagações: Porque estas associações foram fundadas? Como era sua organização? Quem eram seus frequentadores? E como se relacionavam com os outros clubes da cidade de Laguna? Para isso, são utilizadas como documentos as entrevistas, os Livros Atas, os Estatutos, jornais e imagens.
O cruzamento do conjunto dessas fontes, permitiu Rosa identificar como esses clubes eram organizados e qual a imagem que possuíam de si mesmo e como eram percebidos pela sociedade lagunense. O leitor também encontra neste capítulo, uma profícua discussão acerca das tensões entre mulatos e pretos, sujeitos com uma mesma ascendência africana, onde o autor procura compreender os sentidos dessas formas de identificação.
Esse debate, é posto em diálogo com a temática das múltiplas identidades e identificações propostas pelos teóricos Stuart Hall e Michel Maffesoli, bem como com o conceito de “raça” trabalhado por estudiosos como Kwame Anthony Appiah, Stuart Hall, Antônio Sérgio Alfredo Guimarães2. “As tensões geradas entre esses indivíduos nos permitirão abordar o mote de nosso trabalho que é a desnaturalização da ideia de “raça”, permitindo-nos dessa forma, perceber que afrodescendente e negro não são sinônimos muito menos termos isentos” (ROSA, 2019 p.34)
O estudo efetivado pelo historiador, nos apresenta uma interpretação possível e digna acerca da dinâmica desses espaços de sociabilidade e seus sócios. Considerada pelos estudiosos anteriores apenas como espaços beneficentes e culturais por alguns estudiosos, Júlio César da Rosa reconhece-os igualmente como espaços de lazer, onde o lúdico muitas vezes teve espaço privilegiado, mas única e exclusivamente sociedades dançantes. Para o autor, esses territórios foram locais de intervenção de uma parcela das populações de origem africana que, uma vez inseridas nesses ambientes, tinham a possibilidade de estudar, se profissionalizar, estabelecer laços de solidariedade, relações de compadrio, sempre respeitando as convenções sociais e os rígidos códigos de conduta.
Discordando das interpretações anteriores sobre agremiações como um local de construção de identidade negra, o autor caminha na perspectiva de perceber esses sujeitos na sua pluralidade. Para ele, a insistência em atribuir aos afrodescendentes uma identidade negra, acaba por reforçar a noção de “raça”, fortalecendo os essencialismos e alocando-as como um grupo homogêneo simplesmente por partilharem certos traços físicos comum “É uma interpretação frágil, que não explica as múltiplas vivências e experiências dessas populações.” (ROSA, 2011, pg128). Por outro lado, ao discutir os termos pretos e mulatos, o autor considera que carregaram diferentes sentidos e significados em contextos históricos distintos, revelando uma ambígua e complexa classificação racial no Brasil.
Segundo ele, os clubes não estavam isentos de conflitos, contradições e uniões, eram espaços autônomos, onde seus frequentadores, homens e mulheres, procuraram viver e se relacionar de acordo com seus interesses. Esses locais, conclui ele, foram de grande importância para as populações de origem africana dessas regiões, pois foram nesses espaços que os mesmos construíram sua autoestima, formaram famílias, ascenderam socialmente, lutaram por cidadania, visibilidade e respeitabilidade.
A pesquisa articulou produções historiográficas e preocupações relacionadas a temática do tempo presente, bem como um debate em torno da memória em uma perspectiva contemporânea, relacionado principalmente em salvaguardar o patrimônio material e imaterial das populações de origem africana no Brasil, em especial em Santa Catarina.
A obra representa, uma contribuição significativa a memória das ações dos afrodescendentes a partir de suas experiências sociais e culturais especificas, lidos e tratados com dignidade histórica. A leitura do trabalho do professor e historiador Júlio César da Rosa é fundamental, não somente aos pares de profissão, mas igualmente, aos catarinenses ludibriados e fiéis ao mito do “pedacinho da Europa” nos trópicos. Indico-a a todos e todas que estejam dispostos a conhecer uma Santa Catarina lar de sujeitos diaspóricos, de circulação de homens e mulheres comuns, e produtora de tensões, disputas e sonhos.
Notas
1 CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em Desterro: as experiências das populações de Desterro na segunda metade o século XIX. Tese de Doutorado, PUC/SP, 2004; DIAS, Maria Odila Silva. Hermenêutica do Quotidiano Na Historiografia Contemporânea. Revista Projeto História, v. 17, 1998, p.226; THOMPSON, E.P. O termo ausente: experiência. In.: A Miséria da Teoria, 1981; CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2008; LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2. ed. Trad. Bernardo Leitão. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1992, p.426; BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 12. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.p. 19; POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n. 10, 1992, p. 200-212; SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 51.
2 STUART, Hall. Dá diáspora. Identidades e mediações culturais. Ed. Humanitas. 2003; MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo pós-moderno. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005; APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997; GUIMARAES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo, Ed.34, 2002.
Resenhista
Ana Júlia Pacheco – Doutoranda em História – Programa de Pós-graduação em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Porto Alegre, RS – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: anajulia.hp@gmail.com
Referências desta Resenha
ROSA, Júlio César da. Sociabilidades e territorialidade: A construção de sociedades de afrodescendentes no sul de Santa Catarina (1903/1950). Curitiba: CRV, 2019. Resenha de: PACHECO, Ana Júlia. Memórias da diáspora africana no sul de Santa Catarina. História e Cultura. Franca, v.9, n.2, p. 616-615, 2020. Acessar publicação original [DR]