Sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto | Mara Rúbia Sant’Anna
Muitos livros já foram publicados sobre a história do Brasil desde que, entre 1619 e 1630, frei Vicente do Salvador resolveu escrever a primeira obra do gênero de que se tem notícia. Quase quatrocentos anos depois, o assunto parece ainda longe de estar esgotado e pesquisadores de diversos campos de conhecimento continuam – felizmente – a buscar diferentes abordagens para interpretar os fatos que contribuíram, ao longo do tempo, para a formação da nação brasileira.
Com Sociabilidades coloniais: entre o ser e o ser visto, a pesquisadora Mara Rúbia Sant’Anna, professora de história da Universidade Federal de Santa Cantarina, demonstra que é possível lançar novas luzes sobre a nossa história, ao dirigir o foco de seus estudos para as questões ligadas à aparência, um ponto de vista ainda relativamente pouco explorado nas obras de história do Brasil. Esse primeiro volume da coleção “O Brasil por suas aparências“ explora as relações entre o parecer e o poder desde o momento em que as primeiras naus portuguesas atracaram no litoral brasileiro, estendendo-se por todo o período que se convencionou chamar de Brasil Colônia, ou seja, entre 1500 e 1808. O segundo volume, Um império nos trópicos, ainda aguardando publicação, abordará os anos compreendidos entre a chegada da família real ao país e a partida de d. Pedro II para o exílio, em 1889, logo após a proclamação da República.
Com uma linguagem cuidadosa, precisa, apoiada por uma escrita fluida e agradável, a autora nos apresenta prováveis episódios ocorridos quando dos primeiros encontros entre os navegadores portugueses e os indígenas na praia da atual Porto Seguro. Um encontro que teria sido de difícil comunicação não apenas pelo barulho intenso das ondas que sacudiam os navios, mas pelo “fosso cultural“ que separava aqueles seres, em tudo díspares, a não ser por sua condição humana.
Impossível não se lembrar da narrativa de Darcy Ribeiro em O povo brasileiro, no capítulo em que descreve “o enfrentamento entre dois mundos“:
Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas de escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar (Ribeiro, 1995, p. 44).
De forma semelhante, Mara Rúbia aproveita toda e qualquer menção aos artefatos relacionados à aparência para inferir possíveis sentimentos advindos do estranhamento que, certamente, experimentaram navegadores e habitantes da terra ao se depararem com aparências tão distintas das suas. Nesse sentido, a autora desenvolve imagens quase cinematográficas sobre o episódio em que dois índios são levados a bordo da nau de Pedro Álvares Cabral e lá passam a noite, ao descrever cenário, vestes, objetos, assim como as reações e os gestos dos personagens que tomaram parte daquela cena.
Tanto Darcy Ribeiro como Mara Rúbia exercitam o que Marialva Barbosa (2006) entende como fundamental nos relatos históricos: a “imaginação criadora“, que permite ao pesquisador elaborar uma realidade que já não pode mais ser acessada, o que não significa falta de compromisso com a verdade. Todos aqueles que se dispõem a analisar experiências de outro tempo – sejam historiadores, antropólogos ou pesquisadores de outras áreas – fazem-no apoiados em rastros do passado e por atos de comunicação que subsistiram e permaneceram como vestígios até o presente (cartas, inventários e outros documentos e artefatos diversos). Assim, Mara Rúbia valoriza as descrições de adornos e vestimentas, tanto dos índios como dos navegadores, presentes, por exemplo, nos relatos de Pero Vaz de Caminha e do viajante Hans Staden, ou nos textos e desenhos do pintor holandês Albert Eckhout. Tanto os trajes por eles descritos como a própria descrição que produziram podem ser considerados, portanto, atos de comunicação que, impregnados de significados, permitiram à autora criar códigos próprios a fim de construir uma narrativa inteligível. Mais do que isso, a forma como os eventos são expostos tem a potência de instigar a imaginação de seus leitores e neles despertar o gosto pela pesquisa:
Como interpretar o presente de uma camisa e de uma carapuça que foram vestidas neles [nos índios], senão como uma iniciativa de aculturação, de desqualificação das suas formas de parecer e, por meio desta dimensão, tentar alcançar os demais níveis de dominação daqueles homens da terra. Mas a resistência era mais sutil do que se imaginava, pois, tão logo se juntaram aos seus, desfizeram-se da camisa e da carapuça e voltaram à sua nudez, muito natural para eles (Sant’Anna, 2017, p. 22).
A atenção para com o leitor interessado no mundo acadêmico fica bastante evidente quando, em certo ponto da narrativa, a autora inclui uma nota alertando para um tópico que seria “um objeto de pesquisa bastante interessante a ser explorado pelos alunos de graduação em moda ou de história do Brasil“ (Sant’Anna, 2017, p. 51). Em outro momento, há indicação de leituras que podem vir a interessar “todos aqueles que quiserem se aprofundar no conhecimento de como o consumo de bens e o cultivo da aparência estabeleciam as relações entre os sujeitos da época“ (Sant’Anna, 2017, p. 112). Generosidades de quem dedica sua vida à pesquisa e à formação de novos pesquisadores.
Não são apenas as qualidades didáticas que sobressaem nesse trabalho, que se mostra corajoso justamente por abordar um período em que as fontes, além de escassas, costumam mostrar apenas um dos lados do processo que levou à formação da sociedade brasileira. Como diz Darcy Ribeiro (1995, p. 30), nesse caso “só temos o testemunho de um dos protagonistas: o invasor“. Foi o europeu que nos deixou registros de suas impressões, na maioria das vezes impregnada por um etnocentrismo sem limites, que conduziam a descrições depreciativas de índios, negros e mestiços.
Isso não impediu, no entanto, que Mara Rúbia conseguisse dissertar sobre boa parte do complexo espectro da configuração social da época em questão, sobre as relações que o permeavam e as estratégias que garantiam prestígio e poder em estruturas hierárquicas pouco estáveis, que se organizavam de forma própria, de acordo com as condições econômicas, territoriais e culturais de cada momento e de cada região.
A divisão dos capítulos obedece a essas formas distintas de organização social, contemplando as etapas mais marcantes do domínio português sobre a Colônia. Dos primeiros anos de ocupação produtiva das terras brasileiras, marcados pela lavoura de cana-de-açúcar, tomamos conhecimento das diferentes categorias de lavradores, todos eles dependentes da mão de obra escrava e posicionados, na hierarquia social, abaixo do todo-poderoso senhor de engenho. Além disso, com a ocupação holandesa, a urbanização de alguns centros comerciais do Nordeste e o consequente aumento da circulação de pessoas e mercadorias, novos patamares no cuidado com as aparências foram estabelecidos, alavancando os níveis do consumo.
O capítulo seguinte é dedicado aos bandeirantes paulistas: uma população constituída em sua grande maioria por “brancos pobres sem qualquer fidalguia, que buscavam uma terra para viver“ (Sant’Anna, 2017, p. 87). Tensões entre índios e brancos se mostram inevitáveis e a autora dá o devido destaque a tais embates: “[…] no mesmo momento em que são parceiros numa empreitada comercial são, também, inimigos ameaçando um com a morte, e o outro com a escravidão“ (Sant’Anna, 2017, p. 89). Segundo Mara Rúbia, não havia espaço para o luxo na cidade de São Paulo e nos povoados que se desenvolviam naquela região – a desigualdade social não imprimia marcas significativas no interior das casas, nos objetos e na vestimenta como acontecia nas regiões canavieiras do Nordeste: “[…] as relações de poder se firmavam sobre a aparência desfrutada, entre os principais [fazendeiros, donos de escravos e autoridades], na usança de cargos burocráticos disponíveis“, ou seja, a distinção era buscada por meio da nomeação a cargos como juiz, ouvidor ou vereador e na constante afirmação de tal poder.
Tudo muda novamente com a descoberta das minas de ouro, no final do século XVII, tema do capítulo cinco. Além de transformações na ordem econômica, com implicações diretas para o desenvolvimento urbano e o movimento portuário da cidade do Rio de Janeiro, Mara Rúbia se detém nas consequências da riqueza decorrente das minas de ouro na esfera das relações sociais. Assim, ela nos relata o surgimento, na região aurífera, de uma nobreza composta por homens ricos, funcionários bem remunerados da Coroa, que realizavam, enfim, “o anseio de viver além-mar de igual modo à corte“. O empenho das classes mais ricas em cobrir-se de trajes vistosos e elaborados e de decorar suas casas com móveis e objetos importados da Europa teria levado, segundo a autora, a uma “barroquização da sociedade“, centrada em uma aparência marcada pelo exagero decorativo.
Finalmente, no capítulo intitulado “Negros de suor“, a autora nos dá um panorama das duras condições dos escravos africanos. Além de destituídos de todos os seus direitos, os cativos também se viam apartados de sua cultura de origem, sendo impedidos, inclusive, de usar as formas de comunicação que originalmente conheciam, já que, ao aqui chegarem, eram dispersos em diferentes fazendas, onde distintas etnias eram forçadas a dividir os mesmos espaços. Em relação aos trajes, os dos escravizados não poderia ser mais contrastante com os dos senhores: aos primeiros eram entregues tecidos rústicos de algodão para que confeccionassem “fraldas“, calções largos “apenas com um recorte entre as pernas“ e amarrados na cintura com um cordão.
Em todos os capítulos, algumas imagens pretendem ilustrar as descrições textuais, mas as condições de reprodução não são exatamente ideais. Tomei-as mais como referência para visualizá-las utilizando as conhecidas ferramentas de busca da Internet. Tarefa fácil, já que a autora tem o cuidado de providenciar todas as indicações para que isso seja feito sem problemas. Assim como nos são dadas condições para esmiuçar as imagens, uma lupa também é colocada sobre alguns conceitos, tais como “poder“, “território“ ou “nação“ – cuja complexidade não poderia, é claro, ser exaurida em tão poucas páginas. O objetivo, certamente, foi fornecer subsídios para que o leitor mais interessado pudesse se aprofundar no assunto, seguindo as pistas bibliográficas ali indicadas.
Sociabilidades sociais: entre o ver e o ser visto, portanto, se mostra como uma obra consistente de consulta ou de estudo, e uma base segura que pode servir como trampolim para novas aventuras acadêmicas.
Referências
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BARBOSA, Marialva. O filósofo do sentido e a comunicação. Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 139-149, jan./jun. 2006.
Resenhista
Rosane Feijão de Toledo Camargo – Doutora em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Referências desta Resenha
SANT’ANNA, Mara Rúbia. Sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017. Coleção O Brasil por suas aparências. Resenha de: CAMARGO, Rosane Feijão de Toledo. Aparência e relações de poder no período colonial brasileiro. Acervo. Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 138-141, maio/ago. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]