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Sobre política capixaba na primeira República | Nara Saletto

O Arquivo Público do Estado do Espírito Santo lançou, na coleção Canaã, relevante contribuição da historiadora Nara Saletto sobre a Primeira República no Espírito Santo. A pesquisadora possui destacada produção historiográfica a respeito da história regional, especialmente sua dissertação de mestrado, intitulada “Transição para o trabalho livre e pequena propriedade no Espírito Santo”, e tese de doutorado, “Trabalhadores nacionais e imigrantes no mercado de trabalho do Espírito Santo (1888-1930)”.

Nas duas últimas décadas, a historiografia colocou as investigações de Nara Saletto entre os estudos clássicos sobre o Espírito Santo. No livro publicado pela coleção Canaã em 2018, a pesquisadora oferece ao leitor novos subsídios para a compreensão da história capixaba na Primeira República. E, uma vez mais, ela apresenta estudo seminal sobre nossa história regional.

A obra, diferentemente das anteriores de sua autoria, reúne vários textos concebidos ao longo de sua participação como docente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em História da Universidade Federal do Espírito Santo. Naquela instituição, a professora Nara Saletto dedicou-se a refletir sobre a história política regional e orientou dissertações relevantes sobre a Primeira República, explorando, principalmente, aspectos como oligarquia, coronelismo, partidos políticos, entre outros. No mesmo período, a historiadora participou do Dicionário da Elite Republicana (1889-1930), publicado digitalmente pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Assinou verbetes sobre Aristeu Borges de Aguiar, Antonio Gomes Aguirre, Bernardino de Sousa Monteiro, Jerônimo Monteiro, Graciano dos Santos Neves, José Gomes Pinheiro Júnior e José Marcelino Pessoa de Vasconcelos. Muitos dos verbetes foram redigidos em parceria com o ex-orientando, Fernando Achiamé, a quem a professora Nara Saletto atribui a publicação do novo livro.

O título, “Sobre a Política Capixaba na Primeira República”, representa os dois elementos chave propostos pela autora para a compreensão do Espírito Santo entre 1889 e 1930. Em primeiro lugar, abandona-se a ideia de “Velha República” como tempo superado pela “Revolução de 1930”. Em segundo, demarca-se a Primeira República como temporalidade com feição própria, principalmente em relação às práticas políticas coronelistas e oligárquicas.

Nara Saleto identifica que, além de São Paulo e Rio de Janeiro, o republicanismo encontrava-se fortalecido em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e crescia no Espírito Santo em fins da década de 1880. A fim de explicar o destaque dado aos capixabas, a autora evidencia o papel da abolição para a penetração do republicanismo na antiga província, especialmente com a formação de clubes e associações. Até 1889, a maior parte dos grêmios localizava-se, inclusive, na região sul dominada pelos cafezais no Espírito Santo. Apenas três desses grêmios tinham sede em Vitória, enquanto os demais fervilhavam na porção meridional da província.

Curiosamente, a inauguração da República no Brasil dividiu seus adeptos em solo espíritosantense. A primeira articulação partidária deu-se, segundo Nara Saletto, a partir da oposição entre grupos do sul e de Vitória. Unidos na época da monarquia, na vigência da república, os republicanos capixabas separaram-se e estabeleceram alianças com antigos monarquistas de diferentes clivagens ideológicas – conservadores e liberais. Surgiram, no calor desse embate, os dois primeiros partidos republicanos: a União Republicana Espírito-santense (URES) e o Partido Republicano Construtor (PRC). Paralelamente, organizou-se ainda o Partido Operário do Espírito Santo, que propunha sustentar os direitos da classe, curiosamente, em lugar de raras manufaturas.

Consoante Nara Saletto, os anos iniciais da República no Espírito Santo foram muito conturbados. De um lado, os capixabas dividiram-se entre deodoristas e florianistas, de outro, apareceu a clivagem regional do republicanismo entre lideranças da região sul e de Vitória. A situação política somente se acomodaria no Espírito Santo sob a liderança de Moniz Freire, que deu ao PRC quase vinte anos de poder. Da liderança de Moniz Freire à liderança dos Monteiro, sobretudo de Bernardino Monteiro, Nara Saletto apresenta a consolidação da política oligárquica na Primeira República no Espírito Santo.

Nota-se, desse modo, a grande preocupação da autora em adotar o conceito de oligarquia como conexão dos governos da primeira república no Espírito Santo. Em suas palavras, oligarquia significava “grupo restrito de pessoas, com fortes vínculos entre si, que exercia de forma autoritária o poder em nível estadual”. Da literatura nacional, a historiadora identifica certa incompreensão da realidade capixaba, cuja singularidade se encontrava no predomínio de médias e pequenas propriedades na economia cafeeira. O próprio circuito de comercialização, para a autora, incluía pequenos comerciantes – os vendeiros, que se vinculavam a negociantes de médio porte para a distribuição do café às casas exportadoras. A estrutura diversificada da base produtiva e mercantil dos capixabas foi o tema de dissertação e tese de Nara Saletto, que, neste livro, alcança o problema da política.

Ainda que o Estado se constituísse em arranjo produtivo diferenciado daquele verificado em outras regiões cafeeiras do Brasil, consoante Nara Saletto, coronelismo e oligarquia entrelaçavam-se na estruturação do poder político no Espírito Santo. Do ponto de vista conceitual, Nara Saletto discute a força das oligarquias no Espírito Santo, relacionando-a com o coronelismo e o poder econômico. Para a historiadora, o sul era a região capixaba que mais claramente manifestava o sistema político coronelista, no entanto, os coronéis concentravam, frequentemente, os poderes locais, mas raramente, alcançavam mandatos na política estadual. Nessa esfera, predominavam os profissionais liberais, denominados pela autora de oligarcas, vinculados ou não aos coronéis.

Nara Saletto identificou apenas 18% de fazendeiros dentre os titulares de mandatos estaduais no Espírito Santo. A despeito disso, a autora afirma a afinidade entre coronéis e representantes na política estadual – os oligarcas. Em geral, os coronéis confiavam a membros da família com formação ou profissão liberal a direção de mandatos estaduais. Estariam os fazendeiros impedidos de se afastarem da direção de suas propriedades rurais? A ausência prejudicaria os negócios? O governo do Estado ou os mandatos parlamentares exigiam permanência incompatível com a gerência de propriedades rurais? A própria autora salienta a precariedade de estudos sobre os governos municipais para o esclarecimento da dicotomia entre afazeres rurais e a política estadual.

No estudo das relações políticas da oligarquia estadual, Nara Saleto apresenta três tabelas com as principais lideranças políticas capixabas, o perfil profissional, origem local e ligações familiares. A primeira trata do período de 1892 a 1906, a segunda, de 1908 a 1920 e a última, os anos de 1920. As temporalidades indicam, dentro da tradicional periodização da primeira República, as modulações capixabas. Sucederiam nesses marcos temporais a liderança de Moniz Freire, os Monteiros e finalmente o retorno de certa influência dos políticos da capital no cenário estadual.

Para Nara Saletto, as lideranças de Vitória dominaram nos dois primeiros anos da República, no entanto, a prevalência caiu quase à metade entre 1892 e 1906. Com os Monteiros, operou-se extraordinário aumento da representação de parte do sul capixaba – Cachoeiro de Itapemirim, Muqui e Muniz Freire. A expansão retirou vagas no legislativo não apenas de Vitória como também de municípios do norte, como Linhares. No último período, nos anos de 1920, observou-se, na opinião da autora, o retorno de certo prestígio de Vitória, apesar da vantagem em cadeiras no parlamento da representação do sul.

Nara Saletto conclui que a República, como no restante do país, favoreceu o fortalecimento das oligarquias, protegendo os grupos políticos estaduais da antiga intervenção do poder moderador. A adesão ao republicanismo significou a reação dos adversários da reforma social, como a abolição, libertando os senhores da intervenção do poder central. Os partidos nacionais cederam lugar aos partidos estaduais, raptados pelos grupos oligárquicos. A representação política elitista distinguiu também os capixabas, com quase 60% dos políticos formados em algum curso de nível superior, especialmente, de Direito. Poucos eram apenas fazendeiros, raros possuíam como profissão o comércio.

O verdadeiro amálgama da adesão ao republicanismo no Espírito Santo, na opinião de Nara Saletto, foi o federalismo. Com a República, as oligarquias propalaram grandes projetos de modernização estadual, mas carregados de sentido “conservador”. Os republicanos visavam ao fortalecimento da imigração para atender à urgência de braços nas fazendas do sul cafeeiro, ao aumento das vias de escoamento da produção para desfazer as antigas relações comerciais com o Rio de Janeiro, que concorriam com o potencial exportador de Vitória, e à urbanização da capital para atrair novos investimentos.

A hipótese interpretativa de Nara Saletto mais original, sem dúvida, constitui na associação entre o federalismo e a disseminação do republicanismo no Espírito Santo. Com efeito, o federalismo transformou-se na cidadela das oligarquias que reclamavam sua autonomia diante do governo central para decidir como melhor dirigir a política. As lutas pelo poder, quase sempre conduzidas por jagunços e pistolas, contrastam com os meetings e clubs buscavam projetar imagem da elite moderna e civilizada. Nara Saletto retrata os momentos mais rasteiros da política conduzidos a tiros e facadas e, ao mesmo tempo, apresenta os projetos ambiciosos de modernização comercial e urbanística da capital.

Contraditória, violenta e conservadora, a elite política da Primeira República recebeu desenho mais nítido no texto de Nara Saletto, que colocou à disposição do público as informações empíricas obtidas ao longo dos últimos anos de investigação séria e sistemática, demonstrando a vitalidade de nossa historiadora quase octogenária. Para nossa sorte.

Adriana Pereira Campos – Docente dos Programas de Pós-Graduação em Direito e História da Universidade Federal do Espírito Santo; Pesquisadora do CNPq).


SALETTO, Nara. Sobre política capixaba na primeira República. Vitória, ES: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2018. Resenha de: CAMPOS, Adriana Pereira. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Vitória, v.3, n.5, 2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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