É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política da qual atravessamos, reveste o livro de importância, independentemente da relativa superficialidade com que aborda o tema. Tal superficialidade, no entanto, não deve ser encarada apenas como uma fragilidade argumentativa. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a escalada do autoritarismo bolsonarista, era urgente que algum historiador propusesse algumas respostas que dessem conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu público especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, sem, é claro, perder as especificidades da disciplina.
Uma importante reflexão do livro, quase chave explicativa para entendermos o principal público a que se destina a obra, trata-se de uma reflexão onde a autora encaminha uma diferenciação entre história e memória. Neste caso, a história seria um procedimento inconcluso, plural, composto em diversos debates, “incompreensões e lacunas”. Já a memória, um procedimento individual de atualização do passado no presente, uma produção. Se recupera “o presente do passado”, fazendo com que o passado também vire presente. Nesse sentido, o que pretende a autora é lembrar, ou seja, repensar o presente sob os auspícios do passado, ou seja, sem esquecê-lo, projetando ao mesmo tempo o futuro. Dessa maneira ela entende que não há como dominar totalmente o passado e que sua contribuição jamais se propõe a fazê-lo, se distanciando, agora, da história pois essa seria composta de uma diversidade de debates sem os quais ela pretende realizar. Com isso, podemos entrever que a obra busca uma maior amplitude de público que não somente o especializado, pois não se dedica a fazer história, mas, como bem quer a autora, a produzir memória, sendo esta produção, por fim, uma atitude individual, capaz de ser realizada por todos
Segundo nos conta sua introdução, um dos objetivos da obra é justamente tentar acalmar os ânimos daqueles que não encontram respostas para o crescimento acelerado da violência e da intolerância, questões que acompanham o Brasil da atualidade. Para tanto, a autora convida esse leitor a uma viagem pela História do Brasil, entendendo as bases de nossa desigualdade e conflito, o terreno fértil aos arranjos autoritários que acompanham a nossa política. Por completude, entende-se que esses regimes forjam sua legitimidade na construção narrativa da harmonia e paz social, mas funcionam de maneira a conservar suas práticas centralizadoras e segregacionistas.
É consenso que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é um momento inaugural na terceira república, rompendo o quadro democrático proposto na constituição de 1988. Para tanto, diz Schwarcz que essa ruptura foi orientada através de batalhas retóricas em torno de novas narrativas históricas, construindo uma verdadeira batalha entre modelos autênticos e falsos, causa e consequência da divisão política do Brasil atual.
Nessa batalha retórica, um dos argumentos encontrados na tradição autoritária brasileira é a constante reafirmação de um mito nacional, no qual lê-se o Brasil como um território onde os problemas nacionais são encarados de maneira harmoniosa e positiva. Esse argumento se estabelece numa leitura continuada da história do Brasil. Segundo a autora, o ponto original dessa elaboração é o naturalista Von Martius, um dos fundadores do IHGB, segundo ela o primeiro responsável por estabelecer a “metáfora das três raças”.
Na concepção da autora, a batalha retórica se materializa na prática governamental da seguinte maneira. O Estado, grande articulador da convivência social, busca sua própria versão da História, promovendo determinados acontecimentos político-militares e “suavizando” problemas que tem raízes históricas e que estão fincados no presente. Essa “história única” postulada pela retórica governamental de caráter autoritário, busca sobretudo naturalizar “estruturas de mando e obediência”, sem poupar esforços para exercer seu controle e violência institucional, abandonando, na prática e de certo modo, a leitura harmoniosa que embala a sua construção mítica.
Em sua viagem pela história do Brasil, na tentativa de estabelecer as bases onde se assentam a tradição autoritária brasileira, a autora começa pelo tópico “Escravidão e Racismo”. O argumento histórico é que a escravidão é uma instituição colonial aprofundada no Império e persistente na República, sendo “o racismo filho da liberdade”, pois perdura na organização social da contemporaneidade brasileira, uma vez que a população negra é a mais vitimizada do país. Outro ponto importante no trato do capítulo é a discussão que aponta para o vínculo dos projetos autoritários com a prática que remete ao legado colonial, onde tenta-se sistematicamente “recriar e obscurecer” o papel e a história das populações não europeias.
Dando sequência às temáticas, a autora propõe a investigação do “Mandonismo”, uma estrutura herdada da tradição colonial “assenhoriada” e aprofundada na sua forma coronelista. Para mim, esse é o principal ponto no qual gravita a tradição autoritária brasileira. Primeiro para entendermosas bases do mandonismo, é importante percebermos que segundo a autora, nossa aristocracia colonial foi meritória e não hereditária, onde o reconhecimento do privilégio era individual e tido como um favor do Estado. Nesse sentido, recorre a um importante argumento de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, qual seja, o uso de diminutivos e apelidos utilizadospelos subordinados para se direcionar a seu senhor, sendo uma maneira de confundir o público e o privado, ou melhor, uma prática que, ao aproximar as hierarquias distintas, confunde a dominação.
O terceiro tópico é o “Patrimonialismo” e este é mais uma vez apresentado segundo sua base colonialista. Desde o início da ocupação, os colonos centralizavam uma série de funções administrativas e de autoridade pública – marca administrativa da colônia brasileira. Nesse meio, cabe uma crítica na maneira com que a autora discute o conceito de patrimonialismo. Ela afirma que a prática atravessa diversos grupos ou estratos sociais e que está ligada ao sentido geral da propriedade. Porém, cabe discutir se no uso do conceito não seria melhor trabalha-lo a partir da perspectiva que entende o Estado como instrumento de uma classe, sendo mais eficiente para entendermos a tradição autoritária do Estado brasileiro.
Ao desembocar no tópico da Corrupção, me permitam uma pergunta com a qual indaguei a autora durante a leitura de seu livro. A corrupção é cultural ou estrutural? Nas suas análises Lilia Schwarcz aposta na tese da continuidade histórica e afirma ser a corrupção uma herança dos tempos coloniais, ao meu ver, portanto, estrutural. Num esforço de origem, ela retoma um relato fundante de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão chega a apelar ao então rei português que facilite a vida de seu genro. Contudo, ao final, é apresentada a ideia, como encerramento da reflexão, de que a corrupção, nas palavras da autora, constitui um problema endêmico do Brasil, parte do caráter brasileiro e, portanto, fincada na cultura nacional. Ao menos assume não ser impossível de ser erradicada, sendo o grande desafio da atual República.
Ao se referir às práticas de corrupção no Império, é citado um dito popular utilizado para exemplifica-la naquele regime político: “Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é Barão, quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”. Tal abordagem não sinaliza apenas uma “questão de preço”, como indicado no livro, mas uma questão de classe, argumento que ela evita enfrentar diretamente ao longo da publicação aqui resenhada.
A Desigualdade – novo tópico – por sua vezé conclamada a partir da escravidão. Na sequência de sua argumentação, o passado colonial é sempre posto como ponto originário do desequilíbrio social, através justamente da concentração de terras e renda e suas respectivas práticas culturais patrimonialistas. No entanto, entre continuidades e rupturas, a autora infere que aquele tempo não deu conta de esclarecer porque o processo de industrialização do século XX não foi capaz de romper esse ciclo vicioso do passado, dando uma certa independência histórica ao fenômeno de nossa modernidade e contradizendo a perspectiva de que ela é na verdade carente, fruto de nossa dependência colonial.
Já encaminhando o desfecho do livro, Lilia Schwarcz propõe a discussão da violência, onde aqui destaco os argumentos que pretendem circunscrever sua forma autoritária e institucional. Parte fundamental é a discussão de que, no momento presente, sendo a violência uma marca estrutural de nossa história, estaríamos diante de um perigo eminente, tendo em vista os incentivos governamentais à brutalidade, à redução da maioridade penal e ao armamento. Contudo, o recrudescimento autoritário entendido nessas medidas não é capaz de entender e enfrentar a violência como um grande problema nacional.
A violência no campo é pouco ou quase nada trabalhada pela autora, tratando exclusivamente da questão indígena. Um ponto importante da argumentação sobre o tema é o fato de que a partir do Império se criou a imagem de que os indígenas a serem valorizados seriam aqueles capturados pela cultura nacional única e indivisível, os que tendiam a valorizar e defender sua existência sem passarem pelo processo de aculturação, seriam, enfim, tidos como bárbaros. Nesse sentido, argumenta a autora que essa visão romântica se transforma num processo violento que se eterniza na história nacional.
Em Raça e Gênero, sem muito me alongar no debate, apesar de considerar uma discussão importante para o equilíbrio social na contemporaneidade, apresento o apelo da autora para a criação de política públicas afirmativas, uma constante do livro. Mais caro ao esforço intelectual para o entendimento do autoritarismo, é a constatação de que o país se constitui na base de desigualdades socioeconômicas atreladas a questão de raça e gênero, mas também de geração e região.
Um ponto ao mesmo tempo já desgastado, mas importante de ser apresentado é quando a autora comenta que existe um racismo dissimulado no país, reservando à polícia a principal performer da discriminação. A partir desse ponto ela começa a citar casos de corpos negros vulneráveis como exemplos da violência policial, dentre os quais se destaca o recente assassinato de Marielle Franco.
Outro ponto que remete a questão de raça e gênero é a cultura do estupro. Ela é, ou ao menos deveria ser, um dos grandes problemas a serem enfrentados pelos governos em suas diversas esferas. Para exemplificar a construção patriarcal que ao longo do tempo tem autorizado, naturalizado e legitimado o estupro, a autora recorre às imagens da colonização, empresa de caráter masculino, onde o território colonial americano foi insistentemente representado como um corpo feminino a ser dominado e explorado. Ao final, em Intolerância, parte fundamental da imposição em torno das políticas afirmativas das minorias reside no argumento de que o Brasil é “uma nação de passado violento, cujo lema nunca foi a inclusão de diferentes povos, mas sobretudo a sua submissão, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas”.
Em dado momento em que discute a intolerância, a autora propõe que a crise política que engendrou o recente autoritarismo deu-se por um desgaste democrático ao longo dos últimos trinta anos, o que dá brecha para uma interpretação naturalizada da emergência conservadora. É uma interpretação confusa, pois em certo nível justifica a escalada autoritária, seus discursos e suas práticas, estas incompatíveis com uma organização política democrática, como bem defende a autora.
É evidente que a história do país e todos os argumentos dela derivados para definir as raízes de nosso recente autoritarismo, ilumina a cena atual. Contudo, a particularidade da política dos últimos anos, ou seja, o acirramento pós manifestações de 2013, escanteou os mitos fundantes da nacionalidade, e a proposta de sociedade harmônica do novo discurso autoritário nasceu envolta em meio daqueles que a buscam negar.
Filipe Menezes Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Atualmente pesquisa sobre os seguintes temas: teoria e metodologia da história, ditadura militar no Brasil, conflitos agrários, Nordeste e Amazônia. E-mail: menezes.fs@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2535-8538
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SOARES, Filipe Menezes. Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.519-524, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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