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Sobre margens, diversidades e ensino na/da Idade Média | Signum – Revista da ABREM | 2019

Originalmente, os textos deste Dossiê Margens, Diversidades, Ensino foram expostos em conferências e em mesas temáticas que compuseram partes da programação do XIII Encontro Internacional de Estudos Medievais (XIII EIEM), realizado nas dependências do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (ILUFBA), em parceria com a Faculdade de História (FFCH-UFBA), entre 02 e 04 de outubro de 2019 (http://www.xiiieiem.letras.ufba.br/). Os temas do evento foram articulados nas primeiras reuniões da comissão organizadora do XIII EIEM.1 Questionávamo-nos à altura o que, por um lado, o Evento, e, por outro, a Instituição e a cidade de Salvador, como uma das mais antigas do país e sua capital por mais de dois séculos, poderiam oferecer-se mutuamente ao trazê-lo de volta à UFBA, passados quase duas décadas da realização do V EIEM, em 2003.2 A resposta não tardou a chegar.

Frutos da expansão marítima europeia, gestada ao longo do s. XV, o “achamento” do Brasil e a fundação da cidade de São Salvador da Baía de Todos os Santos, em 1549, são testemunhos do alargamento das margens geográficas – mas também políticas, religiosas, linguísticas e culturais – vivido pela sociedade medieval europeia. Idade Média que se alongava, como ensinou Jacques Le Goff, geográfica e temporalmente pelos “novos mundos”, promovendo a expansão de práticas sociais próprias da Europa medieval para outros espaços. Práticas sociais que são perceptíveis em diversos aspectos da vida da América portuguesa.

Por outro lado, a expansão marítima promoveu de modo mais intenso o encontro com o diverso, com o Outro. E o outro triangulou-se. O triângulo “Europa-África-Bahia” criou novas espacialidades. O Atlântico Sul, uma delas. Na conformação do Atlântico Sul, Salvador da Baía de todos os Santos é ponta triangular importantíssima: receptora, exportadora e transformadora da diferença. Mais do que isso, fruto e participante da diáspora africana, Salvador – maior cidade negra fora do continente africano – guarda memória, valores e práticas sociais e culturais de todo este processo em muitos dos aspectos de uma metrópole urbana do s. XXI. Some-se a tudo isso a necessidade de discutirmos com nossos alunos sobre este período distante temporalmente e muito importante para a construção da história da cidade e do país. Como confrontar as medievalidades divulgadas pela grande mídia, pelo cinema, pela propaganda, pelas séries, pelos memes..., com o imperativo de conhecermos e nos reconhecermos na Idade Média?

Almejando contemplar em nossas discussões a complexidade desta conformação histórica, geográfica e temporal, associando-a às prementes questões sociais do s. XXI, particular campo de interesse de nossos alunos, articulamos três eixos temáticos – Margens, Diversidades, Ensino – e convidamos investigadores brasileiros e estrangeiros a refletir, a partir de seus objetos de pesquisas e de sua metodologia de trabalho, sobre um ou mais daqueles eixos, articulando-os ao campo dos estudos medievais e ao prolongamento geográfico, temporal, político e cultural da Idade Média até nossos dias. É impossível reproduzir aqui os debates e as reflexões que cada apresentação suscitou durante o XIII EIEM. Todavia, estimulados pelos Editores da Revista Signum e de modo a não dispersarmos o conhecimento construído e acumulado naquelas discussões, renovamos o convite aos colegas que delas participaram para que dessem formato de artigos acadêmicos aos textos frutos de suas apresentações, de modo a construirmos o que agora temos a alegria de apresentar ao leitor da Revista Signum: o Dossiê Margens, Diversidades, Ensino.

Nos 10 estudos de que se compõe este Dossiê, encontram-se alguns dedicados à discussão e uso da categoria gênero no âmbito dos estudos medievais, como o de Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Considerações sobre o uso da categoria gênero nos estudos sobre o medievo. Reconhecendo e confirmando a relevância dos estudos de gêneros na contemporaneidade, Silva historia e investiga o uso da categoria no campo dos estudos medievais nas três últimas décadas, e discute a importância de “aspectos metodológicos para o estudo dos saberes sobre a diferença sexual”, observando algumas das pesquisas que realizou metodologicamente. Numa perspectiva ainda teórica, porém focada no testemunho literário, Luciana Calado Deplagne, em A contribuição dos escritos de mulheres medievais para um pensamento decolonial sobre Idade Média, demonstra que “nem sempre o lugar da mulher foi apenas de submissão e apagamento”. Por meio do estudo e de comentários aos textos de mulheres como Hildegarde de Bingen, Trotula, Isabel Villena, Christine de Pizan, as trobairitz, as místicas beguinas, Deplagne revela como a escrita de mulher atravessa os discursos teológicos, literários, espirituais, místicos, fisiológicos etc., contribuindo para a problematização e construção do pensamento científico, artístico, religioso e político medieval. Por outro lado, Carolina Coelho Fortes, em A legislação da ordem dos pregadores no século XIII: uma aproximação a partir dos estudos de gênero, recorrendo à documentação por primeira vez traduzida para o vernáculo – as Acta Capitulorum Generalis Ordinis Predicatorum ou Atas dos Capítulos Gerais da Ordem dos Pregadores –, demonstra como os homens, os frades, são, simultaneamente, autores, objetos e sujeitos da legislação da ordem, relegando às monjas à indiferença, à quase ausência. Fortes revela em sua análise das Atas dos Capítulos Gerais da Ordem dos Pregadores como a Ordem dos Frades Pregadores ao buscar ordenar e orientar seus membros acaba por criar “para si uma identidade legislativa absolutamente androcêntrica”, excludente e misógina.

Atento ao “sofisticado apagamento histórico” sofrido por populações não hegemônicas, Arivaldo Sacramento de Souza, em seu Que dizem as cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas sobre negr-? Desafios para a história de uma palavra, recorre a um também sofisticado aparato metodológico, apoiado na filologia e na história da língua, para construir a história da palavra negr-. Sustentando sua narrativa histórica no estudo e análise da presença da palavra negrno corpus satírico trovadoresco galego-português, Souza encaminha seu leitor à conclusão de que, na história da língua portuguesa, o léxico da cor da pele é estruturante de discursos estéticos excludentes, que são construídos sobre uma engrenagem discursiva que alimenta uma narrativa de superioridade marcada por apagamentos e invenções de purezas raciais. Ainda no campo dos estudos filológicos e em diálogo com a historiografia literária, Maria Ana Ramos, em A emergência de uma identidade literária em Portugal. Entre história, textos e críticos, encaminha uma instigante e dinâmica investigação do processo de leitura e canonização das obras e da figura do poeta Camões. Acompanhando a recepção da obra do poeta desde seus primeiros críticos ainda no s. XVI até a introdução do método filológico em Portugal, no s. XIX, particularmente pelo labor científico de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Ramos revela como a filologia contribuiu para a construção de uma história literária nacional, processo que associou a obra de Camões à constituição de uma identidade portuguesa.

De modo mais específico, três dos textos do Dossiê dedicam-se a refletir sobre o processo de ensino da Idade Média a nossos alunos do s. XXI, enfrentando propositivamente toda problemática advinda desta especificidade. Gladis MassiniCagliari, em Indo aos manuscritos das cantigas medievais nas aulas de linguística histórica, por exemplo, toma um poema do trovador Nuno Fernandes Torneol (s. XIII), “Pois naci nunca vi amor”, para discutir o uso “de cantigas medievais galego-portuguesas, em edições de vários tipos (fac-similadas, diplomáticas, semidiplomáticas, críticas), em salas de aulas de Linguística Histórica”. Defende Massini-Cagliari que os recursos tecnológicos de que dispomos atualmente (plataformas digitais, sites específicos, bancos de dados online etc.) possibilitam proximidade e certa intimidade com objetos raros como manuscritos medievais, a partir de ferramentas e estratégias dinâmicas de análise, tudo conjugado de modo a estimular ou despertar o interesse de nossos alunos “pela edição e pelo estudo de textos antigos”. Na perspectiva dos estudos literários, Lênia Márcia Mongelli, em João Lobeira (português, século XIII), Cecília Meireles (brasileira, século XX), um poema: nos meandros da análise de texto comparativa, examina as escolhas da poeta Cecília Meireles ao construir seu poema Amor em Leonoreta, comparando-o com os dois testemunhos medievais da cantiga fonte da poeta brasileira, “uma em galego-português, atribuída ao trovador João Lobeira (século XIII), e outra, em castelhano, inserida no livro de cavalarias Amadis de Gaula (1508)”. O exercício de análise de Mongelli responde às indagações que propõe e, simultaneamente, cumpre seu objetivo didático declarado: “examinar, tecnicamente, os passos a serem dados para a melhor e mais eficaz realização [de uma] tarefa comparatista”, considerando as distintas temporalidades dos objetos em análise. Por outro lado, já no campo da História, Marcelo Pereira Lima, em Gênero, ensino de história e medievalidades: (des)conexões com o passado, discute e distingue teoricamente as categorias medievalística ou medievística, termos com forte carga adjetiva delimitadora de um campo do saber, e medievalidade, que “pode ser entendido como um conjunto mais disperso e heterogêneo de noções, valores, ideias, representações, imagens, saberes, discursos, atividades, ações, experiências, performances etc. sobre a Idade Média”, contribuindo com reflexões importantes para delimitação e uso dessas categorias. Em seguida, partindo da noção de medievalidade que delimita, analisa um clássico da filmografia infantil, “A bela adormecida (Sleeping Beuty), de 1959, comparando-o com as duas animações coetâneas, Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and Seven Dwarfs), de 1937, e Cinderela (Cinderella), de 1950, juntamente com outras narrativas dos contos de fadas, como as elaboradas por Giambattista Basile, Charles Perrault e os Irmãos Grimm”. Tudo isso com o propósito de demonstrar e defender que as medievalidades que “se manifestam em discursos e suportes multimidiáticos como filmes, séries de TV, vídeos, textos literários (romances, poesias, cordéis), iconografias, jogos eletrônicos, RPGs, brinquedos, roupas, feiras comerciais, performances teatrais, músicas, paródias, capas de discos, DVDs”, merecem maior atenção dos pesquisadores da área, considerando a penetração e uso desses suportes multimidiáticos pelos jovens estudantes.

Por fim, duas discussões sobre processos de canonização também são atravessadas por questões propostas pelos três eixos deste Dossiê, revelando a complexidade que cada um pode assumir no interior das práticas culturais e sociais da Idade Média. María Cristina Balestrini, em La ficción autoral en la obra de Geoffrey Chaucer: entre la voz y las imágenes, examina como o processo de canonização de Chaucer como “pai” da literatura inglesa deu-se por meios de estratégias nas quais a “perspectiva metaliteraria constituye un elemento central, en un momento en que se están configurando nuevos modelos de lectores y en que el sistema literario en inglés medio busca posicionarse frente a tradiciones más prestigiosas”. Como demonstra Balestrini, da mesma forma que a autoficção revelada na obra de Chaucer, também a iconografia de manuscritos do s. XV reforça a conexão da imagem do autor com o livro e o leitor, acentuando simultaneamente o laureamento do poeta e da sociedade que o cerca, tomando “parte de la propaganda regia, y que fue concebido como una herramienta de promoción de la literatura en lengua inglesa entre las clases dominantes. Claramente, se trata de una apropiación cultural y política de la imagen del autor por parte del nuevo poder dinástico”. Por outro lado, revisitando o conceito de tempo de santidade cunhado anteriormente como mais pertinente para as análises dos processos de canonização, Igor Salomão Teixeira, em Processos de canonização e relatos hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV): um esforço de síntese e um foco de análise, revela a complexidade do conceito, possível de ser observado quando submetida à perspectiva comparatista proposta pelo texto. A comparação reforça a complexidade da questão temporal nos processos de canonização na medida em que deixa ver tempos muito distintos, motivados por questões variadas (gênero, identidade, estamento, contexto etc.) e construídos por modelos narrativos diversos. Tudo isso ampliando em muito o campo analítico desses relatos hagiográficos e dos processos de canonização, reposicionando-os e revalorizando-os como testemunhos importantes para a historiografia medieval.

Temos, assim, dez estudos que, movidos pelos eixos Margens, Diversidades, Ensino, testemunham que os estudos medievais são atravessados pelo nosso presente, e que, tomados os devidos cuidados, são enriquecidos por este entrecruzar de caminhos. Testemunham, ainda, que o alargamento das margens geográficas, temporais e culturais, a compreensão e assimilação das diversidades de toda ordem e a preocupação com o ensino e a recepção dos estudos sobre a Idade Média alimentam e atualizam nossas reflexões sobre este passado longínquo e, simultaneamente, nos aproximam das problemáticas de nosso tempo, contribuindo para que possamos forjar respostas para nossas angústias acadêmicas e humanas.

Gostaríamos, por fim, de expressar nosso agradecimento a cada um dos colegas que gentilmente aceitou compartilhar conosco suas reflexões e pesquisas, aos colegas que contribuíram com a organização do XIII Encontro Internacional dos Estudos Medievais, viabilizando a continuidade da Associação Brasileira de Estudos Medievais e, também, aos atuais editores da Revista Signum pela generosidade em aceitar a proposta deste Dossiê Margens, Diversidades, Ensino. Contamos que sua leitura sirva de ampliação do conhecimento sobre a Idade Média e de uma maior aproximação do leitor com os estudos medievais.

Notas

1 Compuseram a Comissão Organizadora do XIII EIEM, os seguintes colegas: Alícia Lose, Ariadne Almeida, Ari Sacramento, Célia Telles, Edilece Couto, Marcelo Lima e Risonete Souza, aos quais deixo registrados meus mais sinceros agradecimentos pelo espírito colaborativo, público, cidadão, acadêmico e educacional que fizeram imperar em nosso trabalho, tudo regado a muita empatia e alegria.

2 O V EIEM foi realizado também nas dependências do ILUFBA, sob a coordenação de Célia Marques Telles e Risonete Batista de Souza, entre os dias 2 e 4 de julho de 2003.


Organizador

Márcio Ricardo Coelho Muniz – ILUFBA/PPgLitCult/CNPq. E-mail: marciomuniz@ufba.br


Referências desta apresentação

MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Apresentação. Signum- Revista da ABREM, v. 20, n. 2, p.4-10, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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