Abordar a intolerância, desde uma perspectiva historiográfica, é um grande desafio. E não apenas pelo seu caráter sensível. A negação da alteridade, a recusa em olhar o outro como um igual é fenômeno diverso, complexo e, também por isso, polissêmico em termos conceituais. Além disso, a questão do “outro” é algo de crucial importância para entendermos aspectos enquadrados nas mais diversas escolhas conceituais e cronológicas do campo historiográfico. Afinal, a intolerância é um fenômeno de lastro na experiência da modernidade, uma tradição arraigada nas relações humanas ou um fenômeno ainda mais hodierno?
Como se um eterno retorno daquilo que os humanos estariam fadados a ser, a intolerância pode ser observada em diversas práticas e representações da experiência humana. Contudo, enquanto historiadores e historiadoras, acreditamos que a intolerância não deve ser interpretada apenas a partir do prisma da rejeição como forma inata de (não) sociabilização entre os diferentes ou iguais. Mais que isso, é um fenômeno de implicação social (religiosa, política e econômica) construído em seus determinados tempos e espaços. Seja como forma de negação da razão humana ampliada ao “outro”, ou mesmo como uma estratégia industrial pensada para silenciar e exterminar os indivíduos diferentes e indesejados, a intolerância é um sinal presente nas complexas relações que marcam experiências históricas e expressões do tempo presente.
Desdobramento do Ciclo de Palestras realizado pelo curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus Três Lagoas), este dossiê tem como objetivo fomentar a discussão em torno da intolerância na história e apresentar algumas abordagens possíveis.
Em “A história da população negra no Brasil e os Direitos Humanos: Uma conversa necessária em tempos de intolerância”, Delton Aparecido Felipe aborda as lutas históricas dessa população no país. Questão umbilicalmente intrincada na construção de uma identidade nacional, por sua vez exclusivista e excludente por definição, o artigo problematiza questões como direitos, Direitos Humanos e a realidade histórica dos negros, fornecendo também uma grande contribuição para o entendimento da questão Republicana no Brasil.
Em “(In)tolerância e religiões afro-brasileiras: uma análise do jornal O Diário do Norte do Paraná (Maringá-PR, século XXI)”. Vanda Fortuna Serafim e Giovane Marrafon Gonzaga oferecem uma análise que põe luz à questões recentes da intolerância racial e religiosa. A partir dessa análise, compreendemos com mais propriedade o caráter histórico e atual do racismo no Brasil, a sua dimensão religiosa, e também a necessidade de compreender a intolerância como traço constituinte de uma nacionalidade, imaginada para ser excludente.
Wellington do Rosário de Oliveira em “No lodaçal dos vícios: mulheres meretrizes e o discurso jornalístico do Correio do Paraná (1932-1937)” parte também da análise de um periódico paranaense para estudar a prostituição nas ruas de Curitiba, em um contexto de higienização e modernização urbana, na década de 1930.
O dossiê conta também com dois artigos que tratam especialmente da ditadura civil-militar no Brasil. Com enfoques diferenciados, é possível observar a relação complexa entre Estado e Sociedade nas formas de repressão e negação da política como espaço de mediação, diálogo e representação. “A Ditadura Militar no Brasil e a narrativa histórica: Esquadrão da Morte na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo”, de Aline de Jesus Nascimento, focaliza a experiência de grupos de extermínio construídos em paralelo às estruturas do estamento ditatorial. Além disso, as complexas questões envolvidas nas relações entre memória e história são levantadas.
Em “Ditadura militar, propaganda e otimismo no Brasil dos anos 1970”, David Antonio de Castro Netto aborda as propagandas como forma de construção de consensos e enquadramentos sociais, observando como a propaganda foi utilizada como forma de desmobilização, assim como estratégia de negação do “outro” para além da violência e do exterminismo.
Trabalhando com um recorte cronológico que reflete o processo de transição democrática no Brasil, o artigo “Lésbicas e o combate às discriminações nas páginas do boletim ChanaComChana” de Paul Silveira-Barbosa e Gabriela Coutinho Sales, traz uma importante análise sobre a lesbofobia, a heteronormatividade, assim como as formas de resistência em um contexto democrático, todavia marcado por formas diversas dos legados autoritários.
A intolerância é, sem dúvida, um elo que une os textos deste dossiê temático, que trata de objetos que são, a princípio, desconexos. Agradecemos às autoras e aos autores, assim como desejamos a todos uma boa leitura!
Seções: Artigos livres, ensaio e resenha
Este número conta ainda com artigos livres, ensaio e fontes. Na primeira modalidade temos o texto Clayton Ferreira e Ferreira Borges “A historiografia francesa do século XIX nas páginas da Revue Historique (1876-1914)” que analisa quantitativamente e qualitativamente a produção historiográfica publicada no periódico francês Revue Historique, no periódico entre os anos de 1876-1914. O debate historiográfico também é abordado por Daniel da Silva Klein em “Tropologia em Hayden White: apontamentos historiográficos”. Onde o autor dialoga com os elementos centrais da tese de Hayden White, pensando sua recepção critica na historiografia e apontando caminhos possíveis para sua superação.
Na sequência o artigo “Os 50 anos da Assembleia de Deus no Brasil em pauta: múltiplos olhares na imprensa sobre as comemorações na cidade do Rio de Janeiro (1961)” de Augusto Diehl Guedes, na perspectiva da história das religiões, desenvolve análise de fontes da grande imprensa e da mídia confessional que cobriram o evento do cinquentenário da Assembleia de Deus no Brasil, em 1961. A imprensa também é a fonte utilizada por Jorge Tibilletti de Lara para discutir “As impressões da primeira grande epidemia de dengue do Brasil entre os jornais O Globo, O Fluminense e Jornal do Brasil (1986)” que aborda os debates em diversos grupos da sociedade, como médicos, sanitaristas, movimento popular e governos acerca da doença que aparece pela primeira vez como epidemia no Brasil.
A seção Artigos Livres traz por fim a contribuição de Carlos Prado para a compreensão de um debate que permeia os movimentos de esquerda desde a segunda década do século XX, sobre o caráter das revoluções em países periféricos, no texto: “A revolução chinesa e o problema das revoluções nos países ditos coloniais ou semicoloniais (1924-1927)”.
O texto da graduanda da Universidade Estadual de Maringá, Giovana Eloá Mantovani Mulza, na seção “Ensaio de graduação”, se soma ao debate da intolerância na História, foco do dossiê apresentado acima. Em “De la Demonomanie des Sorciers: a caça às bruxas na concepção de Jean Bodin” a autora discute a intolerância religiosa na França do século XVI, a partir da obra De la Demonomanie des Sorciers de Jean Bodin surgida em 1580.
Na mesma seara das intolerâncias a seção “Fontes” apresenta entrevista “Sobre a alteridade, a intolerância e a história: uma entrevista com Karl Schurster” realizada pelos organizadores do dossiê Rafael Athaides e Odilon Caldeira Neto. Por fim, esta seção traz a contribuição da graduanda na UFMS / CPTL, Núbia Sotini Santos, intitulada “Operários itinerantes: algumas considerações sobre as fichas funcionais da Noroeste do Brasil” que apresenta fontes de pesquisa sob a guarda do Núcleo de Documentação Histórica Honório de Souza Carneiro.
Odilon Caldeira Neto – Professor Doutor. Universidade Federal de Santa Maria
Rafael Athaides – Professor Doutor. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Santa Maria- RS e Três Lagoas-MS, junho de 2019
CALDEIRA NETO, Odilon; ATHAIDES, Rafael. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, n.16, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]
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