Sob o signo de Atena: gênero na diplomacia e nas Forças Armadas – MATHIAS (REF)

MATHIAS, Suzeley Kalil (Org.). Sob o signo de Atena: gênero na diplomacia e nas Forças Armadas. São Paulo: UNESP; Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, 2009. 279 p. Resenha de: MOREIRA, Rosemeri. Igualdade de gênero nos meandros das missões de paz e na carreira diplomática. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

Temática ainda pouco explorada nos meios acadêmicos, a presença de mulheres militares nas missões de paz e na carreira diplomática é o ponto nodal dos dez artigos que compõem este livro organizado pela socióloga Suzeley Kalil Mathias.

Os quatro primeiros artigos fazem parte do projeto “La mujer en las Fuerzas Armadas y Policía: una aproximación de gênero y las operaciones de paz”, realizado pela Red de Seguridad y Defensa de América Latina (Resdal). Em comum, esses quatro artigos apresentam dados sobre a situação socioeconômica das mulheres diante das diversas realidades nacionais, a discussão histórica da inclusão de mulheres nas respectivas Forças Armadas e a análise da situação profissional das mulheres militares. Com relação ao último item, os dados traduzidos na riqueza de gráficos e tabelas enfocam os percentuais numéricos por sexo e as possibilidades femininas de acesso aos postos de comando e às armas de combate e, principalmente, discutem a presença de mulheres nas missões de paz. Pontos-chave das reflexões, as análises das autoras sobre essa presença vão ao encontro das concepções da ONU sobre a paz, defesa e segurança humana, apregoadas após a Guerra Fria. São apontadas as dificuldades, as resistências e/ou as deficiências das Forças Armadas em levar adiante o projeto de igualdade de gênero nos respectivos contextos nacionais. Comum ainda aos quatro textos é a reflexão sobre a carência, na maior parte desses países, de um debate civil e público sobre a questão que se configura ainda como um “não assunto”.

Preocupado com esse aspecto, o artigo de Suzeley Kalil Mathias, “Gênero, defesa e paz no Cone Sul”, acrescenta às reflexões já apontadas uma análise sobre os diferentes graus de participação dos militares nos processos de transição política dos regimes burocrático-militares para os regimes democráticos. Segundo a autora, as concepções atuais sobre defesa, papel das Forças Armadas e subordinação dessas ao controle civil, somadas ao debate sobre a atuação de mulheres nessas instituições (ou a ausência dessas), estão historicamente vinculadas a esses níveis diferenciados da participação militar. Mathias apresenta uma escala em que o Brasil aparece com o grau mais alto do controle militar sobre a transição e a Argentina, o nível mais baixo. Para a autora, disso decorreu a realização das reformas efetuadas nas instituições da área de defesa e segurança na Argentina, em que o controle passou dos militares ao poder civil; a defesa passou a ser um assunto público, e, no que tange às relações de gênero nas Forças Armadas e na participação de mulheres militares nas missões de paz, esse país se configura como o segundo em relação aos dados mais favoráveis à igualdade de gênero nos países do Cone Sul. Analisando ainda as Forças Armadas do Chile, do Paraguai e do Uruguai, Mathias aponta a participação deste último como excepcional com relação à presença de mulheres nas missões de paz, com o índice de 5%, que supera a média da ONU de 3% e contrasta ainda mais com o índice de 0,5% do Brasil.

O segundo artigo, “Mulher, Forças Armadas e missões de paz na região andina”, da cientista política Loretia Tellería Escobar, compara os dados sobre a inclusão, a ascensão hierárquica e a participação de mulheres militares dos países andinos nas missões de paz. A autora relaciona a presença de mulheres nos meios militares às exigências dos exércitos pós-modernos. Com base em dados quantitativos sobre igualdade de gênero, Escobar tece comparações entre os exércitos andinos (modernos) e os exércitos dos países da Organização do Trabalho do Atlântico Norte (Otan) (pós-modernos). Para Escobar, a classificação acima apresenta essencialmente a contradição entre a formação do “soldado profissional” e o “operador da paz”. Essa divisão posta pela autora parece ter por base mais as prescrições das Nações Unidas no que se refere à defesa e às missões de paz do que propriamente descreve as características dos exércitos da atualidade. Escobar discute a instabilidade política dos países andinos (frequência de governos militares, renúncias e destituições de presidentes) e as distintas tendências econômicas de alinhamento – ou não – com os EUA como cenários de complexos conflitos internos nesses países. A pobreza, a exclusão étnica e o narcotráfico se interrelacionam à presença estagnada dos dados relativos à igualdade de gênero na sociedade. No que tange às Forcas Armadas, Escobar apresenta os problemas que demandam do fraco sistema de controle civil-militar que persiste na região: resistência a mudanças, crise de identidade institucional, conflitos de legitimidade funcional com as polícias e ainda a ingerência de governos externos.

Nesse quadro, a participação de mulheres nas Forças Armadas e como participantes das missões de paz ainda é uma questão bastante sensível, uma vez que a defesa, segundo a autora, não é pensada como um bem público. A pouca presença feminina ainda carece de regulamentação formal e de marcos institucionais que sejam parte de uma política de Estado. Mesmo que em todos os países andinos seja permitida a presença de mulheres em postos de combate, Escobar mostra que, com exceção da Venezuela, que conta com 10% de mulheres nas Forças Armadas, os demais não chegam a ter 3%. Os países andinos, contribuindo com 1% do total das tropas das missões de paz da ONU, ainda demonstram um processo de idas e vindas com relação à igualdade de gênero nos meios militares. Para a autora, questão urgente é o fomento de um debate público sobre o assunto que considere conjuntamente os benefícios a serem conquistados pelas mulheres e também os ganhos às corporações militares nessa empreitada.

O terceiro artigo – “A mulher nas Forças Armadas da América Central e México nas missões de paz” – se constituiu num documento do Instituto de Enseñanza para el Desarrollo Sustenible (Iepades) –, coordenado por Carmen Rosa de León Escribano, socióloga guatemalteca. Nesse documento são apontadas as dificuldades, regionais e nacionais, de implantação do modelo de segurança humana em detrimento do modelo de segurança nacional. Esse projeto foi posto em curso desde fins dos anos 1990, mas colocado em xeque com a entrada do tema “terrorismo” na agenda das Forças Armadas, após 11 de setembro de 2001. O Iepades aponta um retrocesso na reconstrução dos âmbitos de atuação das Forças Armadas, pois essa agenda coloca em risco a separação recente das funções policiais e militares na região. O terrorismo na agenda militar é apontado nesse documento como impactante aos problemas sociais da América Latina, uma vez que essa temática se encontra anexa às questões migratórias e da violência juvenil, que são, por sua vez, relacionadas à ausência de políticas públicas, emprego e educação.

Para o Iepades, mesmo não existindo consenso sobre as novas funções dos militares na região, o envolvimento das Forças Armadas nos esforços mundiais para manutenção da paz é um discurso plenamente aceito. Ao aumento de 747% no número de enviados da América Latina às missões de paz a partir do ano de 2000 são contrapostos os dados pouco significativos da presença de mulheres militares nessas missões. Na América Central, os dados apresentados no texto indicam que a incorporação feminina caminha a passos lentos e que historicamente esse processo seguiu o padrão latino-americano: sem a participação da sociedade civil e sem o debate público. No documento, mesmo que os percentuais da participação feminina na caserna não estejam acessíveis, são discutidas a incorporação plena e a assunção de postos de comandos pelas mulheres, permitidas em somente nove países da região. São analisados no texto os contextos internos e externos do México e da Nicarágua, que optaram pela não participação nas missões de paz, junto às reflexões sobre a participação significativa da Guatemala em cinco missões de paz da ONU, e a presença modesta de El Salvador e de Honduras. Estes dois últimos países, junto com a Nicarágua, estiveram presentes na Guerra do Iraque sob a tutela estadunidense. O que se depreende do texto é o tom regional das concepções de defesa e da ação das Forças Armadas, diretamente relacionadas aos variados graus de alinhamento político com os EUA.

Na mesma linha do documento do Iepades, o artigo “Gênero, Forças Armadas e missões de paz no Caribe”, da socióloga Lilian Bobea, relaciona a pequena representação, na atual geração de operações de paz dos países caribenhos, aos baixos níveis de controle civil sobre as questões ditas militares da defesa e segurança; de transparência do setor e de maturidade institucional. Além disso, o número inexpressivo de mulheres militares e policiais na região persiste como uma contratendência ao crescimento do papel das mulheres latinoamericanas na esfera pública e no mercado de trabalho. Apresentando as diversas realidades nacionais, Bobea analisa como inconsistente e limitada a implementação nos países caribenhos das reformas prescritas nos documentos do Conselho de Segurança da ONU com relação à transversalização do gênero. Questão ausente nos textos anteriores, Bobea reflete criticamente sobre o impacto para as sociedades e para as forças de defesa e segurança do redirecionamento das funções militares sob a perspectiva das missões de paz, como apregoa a ONU. Para a autora, a questão em aberto nessa perspectiva é sobre a suposta decorrente contribuição para o equilíbrio democrático das relações civilmilitares ou, ao se agregarem atividades não bélicas à função militar, se isso não aumentaria o nível de militarização da sociedade, ainda uma forte tendência nesses países. Militarização acentuada ainda mais com a presença do narcotráfico e o controle da migração nas agendas das Forças Armadas alinhadas politicamente ao Comando Sul, congênere do Comando Norte.

Para a autora, é indiscutível a incidência dos EUA nas dinâmicas e no intercâmbio regional sobre as percepções, as agendas e os treinamentos do setor. Bobea apresenta como características das forças de segurança no Caribe a recente fundação dos apenas sete exércitos; um histórico de serviço às ditaduras; e, principalmente, o status de território ultramarino sob a proteção de forças externas de segurança. Criticamente, Bobea lembra que a premissa da participação de mulheres carrega na região um potencial efeito de legitimar discursivamente o aumento do orçamento militar e a expansão do setor de defesa. Para ela, os exércitos caribenhos foram tangencialmente influenciados pelas antigas metrópoles em seu padrão de integrar contingentes femininos. Entretanto, isso se configura mais como um sinal retórico de modernização profissional e menos como promoção e mobilidade social das mulheres militares. Bobea, pontuando o terreno fértil das missões de paz para a operacionalização do conceito de segurança humana e a decorrente defesa da presença de mulheres militares e civis nessa empreitada, critica a participação de países caribenhos em experiências de manutenção de paz alinhados aos EUA e que não correspondem aos critérios estabelecidos pela ONU no que tange principalmente ao uso da força.

Passando da América Latina à Europa, os artigos de Bárbara Kristensen  “O processo de incorporação e o panorama atual das mulheres nas forças armadas espanholas” – e de Helena Carreiras – “O olhar dos homens: resistência e cumplicidade nas respostas masculinas à integração de mulheres nas Forças Armadas” –, respectivamente, enfocam discussões sobre as militares espanholas e sobre os militares de Portugal e da Holanda. Kristensen apresenta as hipóteses defendidas por diversos autores sobre a incorporação de mulheres nas Forças Armadas. São discutidas causas instrumentais relativas à esfera militar no que tange a tecnologia, concepção de guerra total e transformações no significado e no valor social dos combates e dos combatentes. As causas de cunho sociocultural apontam o padrão demográfico, as características da força de trabalho e as transformações no modelo de participação social e política das mulheres. Com relação à Espanha a autora postula que o sistema espanhol é um dos mais avançados da Europa no que se refere aos dispositivos legais de incorporação e considera que a profissão militar das mulheres já está consolidada.

A socióloga Helena Carreiras amplia a discussão ao incluir no debate a percepção de homens militares de Portugal e da Holanda sobre a incorporação das mulheres nas Forças Armadas. A autora analisa o processo em que os termos “masculinidade” e “militar” foram plasmados na “grelha simbólica”, que dicotomiza a relação mulheres e paz e homens e guerra, processo em que a imagem do “outro-mulher”, mesmo que não unívoca, desempenha um papel crucial na definição de militar como alteridade referencial. A ideia de mulher, segundo a autora, cristalizada pela sua ausência, constitui um elemento estruturante do universo simbólico da cultura militar. Mesmo que atualmente a relevância dos arquétipos de gênero como força integradora tenha sofrido um descenso, a autora defende que essas referências fazem parte de um processo de reconfiguração em que foram incorporadas ao tipo de masculinidade prevalecente acepções de produtividade e competência profissional, contudo sem suprimir o anterior. Carreiras, com base em entrevistas, elabora uma tipologia sobre os posicionamentos masculinos em relação à integração de mulheres nas Forças Armadas, demonstrando a heterogeneidade do pensamento dos militares. A autora classifica as respostas masculinas em seis tipos, a partir do cruzamento de dois eixos: as percepções sobre as diferenças de gênero (subordinação, sublimação ou igualdade) e a atitude relativa à presença de mulheres militares (concordância, não concordância ou concordância parcial). No quadro encontrado, Carreiras aponta uma visão mais tradicionalista, entre os militares portugueses, e a prevalência da visão integracionista, na concepção dos militares holandeses, que colocam o insucesso das mulheres em termos de deficiências organizacionais.

Mais concisos, os quatro artigos da segunda parte do livro enfocam discussões teóricas sobre gênero, paz e feminismo e sobre a presença de mulheres na carreira diplomática. Roberta Izzo, com o artigo “Igualdade de gênero: um caminho para a paz”, discute as diversas noções conceituais de “paz” desenvolvidas no decorrer no século XX e discorre sobre a classificação de 1ª, 2ª e 3ª gerações de missões de paz capitaneadas pelas Nações Unidas. Com base nas intenções constantes nos documentos da ONU, a autora defende a participação central das mulheres na construção da “cultura da paz”, apontando argumentos que vão desde a responsabilidade dessas com a educação das crianças, passando por surpreendentes razões neurológicas, segundo as quais as mulheres teriam maior predisposição ao diálogo e ao exercício da tolerância. Preocupados também com a questão de gênero e segurança, Juliana Alves da Costa, Lara Martim Rodrigues Sélis e Samuel Alves Rodrigues, com o texto “De Afrodite a Melíade? O feminismo nos estudos de segurança”, refletem sobre as transformações metodológicas e conceituais no campo das relações internacionais (RI) diante da crítica feminista. Mais do que postular a presença de mulheres como novas melíades no cenário internacional, este artigo delineia o declínio da concepção estadocêntrica, da dicotomia nacional e internacional e do androcentrismo dos estudos sobre defesa e segurança produzidos no âmbito das RI, a partir da incorporação do discurso feminista na década de 1980. Os autores demonstram como a teoria feminista abalou os fundamentos metodológicos, ontológicos e epistemológicos das RI, uma vez que a dicotomia iluminista do “fato-valor”, base da epistemologia objetivista, é posta em confrontação ao pensamento de que o mundo social é um constructo de ideias, conceitos e linguagens, e que o conhecimento não meramente o descreve, mas o constitui. Sob o olhar feminista, os autores ainda analisam a construção da concepção de Estado a partir do instrumental androcêntrico e as decorrentes limitações da defesa e da segurança à esfera militar.

Os dois artigos que fecham o livro abordam também as relações internacionais sob o enfoque do gênero. O texto de Lídia Possas e Sarah de Freitas, “Reflexões feministas acerca das relações internacionais”, apresenta estudos que passaram a visibilizar a presença de mulheres nas questões ditas internacionais. Além disso, as autoras, partindo do debate sobre a construção da dicotomia público e privado, analisam como a crítica feminista entrou na agenda das RI como contracorrente aos grandes sistemas de explicação da linguagem e do pensamento. No âmbito das RI, as autoras apresentam ainda como as concepções de nacional e internacional passam a ser permeadas à ideia de local e global, inserindo as mulheres na centralidade do debate. As autoras questionam o índice de 25% de mulheres presentes no Secretariado das Nações Unidas, que demonstra um êxito menor do que o do nível nacional e sugere o “desvio” do Estado e a articulação dos movimentos transnacionais para a inclusão de mulheres nas questões internacionais. O texto “A presença da mulher na diplomacia brasileira no início do século XX”, de Viviane Rios Balbino, em consonância com o projeto do Ministério de Relações Exteriores (MRE) de democratização do acesso à carreira diplomática, em voga desde o ano de 2003, apresenta um histórico sobre os critérios e os concursos exigidos ao cargo no Brasil. Balbino aponta a expectativa, não concretizada, de que o aumento de mulheres como diplomatas no Brasil dar-se-ia automaticamente com as transformações econômicas, políticas e culturais no que tange ao “papel” das mulheres, ocorridas no decorrer do século XX. A autora analisa a concentração das mulheres no Itamaraty nos níveis básico e intermediário e, partindo de entrevistas realizadas com mulheres oficiais de chancelaria e diplomatas, descreve um quadro que chama de “esvaziamento de gênero”.

Abarcando o livro, transparecem três questões principais que estão postas, combinadas ou não, nos dez artigos. Em primeiro lugar: a questão da (in)visibilidade de mulheres com relação à guerra como instituição e à política exterior. O livro, através de dados históricos e contemporâneos, serve ao propósito de auxiliar na desconstrução dessa mitificação. Em segundo lugar, as concepções sobre defesa e segurança humana das Nações Unidas são fio condutor às reflexões das autoras sobre a necessidade da presença de mulheres nas missões de paz da atualidade. No entanto, poucos artigos fazem a crítica à ONU como instituição situada política e economicamente. Decorrente dessa questão, em terceiro lugar, a visão que estabelece a dicotomia mulheres e paz e homens e guerra, mesmo que desconstruída no texto de Helena Carreiras, ainda serve como discurso legitimador, denotando uma concepção próxima do feminismo da diferença, mais ou menos acentuada conforme o artigo. A presença em alguns textos do uso universalizado dos termos “a mulher” e “a evolução” incomoda e contrasta sobremaneira com as reflexões que partem da teoria feminista como transformadora de paradigmas.

Importa lembrar a exaustiva pesquisa de dados referentes aos diversos Estados nacionais abordados e a diversidade de contextos políticos e econômicos analisados pelas autoras, que ainda trazem o bônus de atualizar o leitor nas questões referentes à política exterior ensejada pelos países latino-americanos e à relação com as Nações Unidas.

Rosemeri Moreira – Universidade Federal de Santa Catarina.

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