Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945 | João Fábio Bertonha
A emergência e afirmação de regimes políticos autoritários, impulsionados por idéias e princípios antidemocráticos, constituíram duas das características mais evidentes do entreguerras, a tal ponto que o “breve século XX” de Eric Hobsbawm já tinha sido batizado de “século das ideologias” por diversos historiadores que o precederam. Nesse conjunto de regimes autocráticos, o regime fascista inaugurado por Mussolini representou, sem dúvida, um paradigma do antiliberalismo, representando tanto do ponto de vista prático como teórico o protótipo do que ele mesmo chamou de “Estado totalitário”, termo depois estendido por Hannah Arendt para cobrir a modalidade soviética de poder político absoluto. Muitos historiadores e cientistas políticos, entre eles François Furet de O passado de uma ilusão, consideram aliás que o fascismo se desenvolveu especificamente em reação ao bolchevismo, dele retirando entretanto diversos elementos substantivos e formais, pois que combinando o estatismo do planejamento socialista e o monopólio do poder pelo partido único com uma ideologia anticapitalista e supostamente igualitária, como no caso da ideologia marxista.
O modelo mussoliniano de Stato totale teve muitos seguidores em vários continentes, a começar pelo Portugal de Salazar, ainda nos anos 20, pela Alemanha de Hitler, no início dos anos 30, e por vários outros regimes no continente europeu e alhures. O fascismo entendido como fenômeno político e cobrindo, portanto, o hitlerismo, o Estado Novo salazarista e várias modalidades de autoritarismo logo confrontou-se a correntes opostas, como os movimentos marxistas (comunistas ou socialistas), mas também os partidos políticos sociais-democratas e liberais. Essa luta também se desenvolveu no plano mundial, sendo o exemplo mais conspícuo dessa confrontação a guerra civil espanhola, entre 1936 e 1939. No Brasil, ambas as tendências se manifestaram desde cedo, tanto por emulação nativista como por transplantação desde as origens, a partir dos muitos emigrantes que aqui vinham se instalando desde o século XIX.
O livro, derivado de uma dissertação de mestrado de João Fábio Bertonha, enfoca precisamente as lutas entre fascistas e antifascistas no Brasil entre o final da Primeira Guerra e o final da Segunda, mais especificamente no contexto da imigração italiana em São Paulo, centro por excelência da agitação política pró e anti-Mussolini. Ele não se limita, no entanto, ao tratamento das lutas locais, pois que dedicou-se a um levantamento minucioso dos arquivos diplomáticos e dos aparatos de segurança da Itália, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, complementados por fontes policiais no próprio Brasil (DOPS). O resultado é uma descrição até aqui inédita, sem dúvida destinada a permanecer inigualada no futuro próximo, sobre a trajetória do antifascismo italiano no Brasil, nos anos de triunfo e declínio do mussolinismo. Bertonha analisa de forma cuidadosa, com base em imenso suporte documental (inclusive a imprensa militante), a mobilização política e as ações práticas das várias correntes engajadas nessa luta, desde os anarquistas e comunistas até os socialistas de extração quase liberal, como o grupo Giustizia e Libertà. Ele ressalta a fragilidade política e a debilidade organizacional desses grupos antifascistas, suas divisões internas e no quadro da imigração, bem como as dificuldades de coordenação e vinculação com as organizações italianas afiliadas ideologicamente.
O trabalho se qualifica, assim, tanto no contexto da história das lutas políticas no Brasil, como no quadro mais amplo do antifascismo mundial, ou talvez, mais especificamente como um capítulo brasileiro das lutas políticas italianas da primeira metade do século XX. Os primeiros capítulos são mais descritivos, recapitulando o itinerário do antifascismo italiano e a trajetória política dos grupos existentes e personalidades atuantes no Brasil, ao passo que os capítulos da segunda metade (terceira parte) apresentam uma feitura mais analítica, enfocando a “grande disputa” entre o fascismo e o antifascismo, suas estratégias de luta e seu enraizamento nos grupos sociais imigrantes e brasileiros. O capítulo final efetua um balanço do “fracasso” do antifascismo italiano no Brasil, incapaz (por compreensíveis razões internas e externas) de resistir ao assalto organizado e violento das forças pró-fascistas e insuscetível de receber apoio de forças simpatizantes locais (de resto, inexistentes ou elas mesmas reprimidas por um Governo simpático a Mussolini). Bertonha não deixa de reconhecer que o fascismo significou, para a imensa maioria dos italianos instalados no Brasil, a recuperação de uma “auto-estima” há muito perdida, pois que correspondendo também a uma espécie de “nacionalismo” que contribuiu para promover sua imagem em face dos outros grupos aqui instalados. Em todo caso, o antifascismo italiano no Brasil serviu para estimular a própria luta da oposição antiditatorial e moldou ideologicamente várias lideranças das lutas nacionalistas e progressistas do pós-guerra. Como conclui o autor: “Um ponto a favor dos antifascistas e um estímulo para que sua memória permaneça” (p. 279).
Resenhista
Paulo Roberto de Almeida
Referências desta Resenha
BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP; Annablume, 1999. Resenha de: ALMEIDA, Paulo Roberto de. Revista Brasileira de Política Internacional, v.43, n.1, 2000. Acessar publicação original [DR]